Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

Autor
Ademir Andrade (PSB - Partido Socialista Brasileiro/PA)
Nome completo: Ademir Galvão Andrade
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL PELA ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Publicação
Publicação no DSF de 21/03/1997 - Página 6187
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, ELIMINAÇÃO, FORMA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, MUNDO.

O SR. ADEMIR ANDRADE (Bloco-PSB-PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o dia 21 de março é data a ser celebrada por todo os homens e mulheres que, em qualquer parte do planeta, estejam comprometidos com a causa da liberdade, da democracia e da defesa da dignidade humana.

O dia 21 de março é um convite à reflexão em torno da construção de uma sociedade que, respeitando as diferenças, seja capaz de fazer prevalecer os mais elevados princípios e valores que referenciam, de forma positiva e criativa, a nossa existência.

Instituído pela Organização das Nações Unidas em 1966, o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial, que hoje comemoramos, é também ele fruto de um processo histórico, longo e difícil, em que o sofrimento de milhões de pessoas somente não foi maior do que a consciência - que gradativamente se universalizou - de que o quadro discriminatório teria que ser superado. Daí que, tanto quanto as celebrações festivas, a data nos impele ao exame crítico do que foi feito e do muito que ainda resta a fazer, no sentido da total eliminação de toda e qualquer manifestação de discriminação racial.

Felizmente, Sr. Presidente, a sociedade contemporânea já conseguiu avanços extraordinários nesse campo. Em primeiro lugar, não existe mais espaço para que se repitam atos e atitudes como as que acompanharam o processo de expansão européia desde o início da chamada Idade Moderna. Naquele momento, a submissão das áreas conquistadas ao domínio europeu se fez com a brutal tentativa de completa substituição das culturas autóctones, massacradas pela força dos dominadores. A experiência vivida, nesse momento, pelos povos americanos e africanos, por exemplo, não deixa dúvida a respeito.

De igual modo, não se admite mais, nos dias de hoje, algo como o ocorrido por ocasião da grande expansão imperialista a que o século XIX assistiu. Não me refiro à exploração material propriamente dita - pois esta subsiste sob o manto charmoso da chamada globalização -, mas, sim, às incríveis justificativas ideológicas então utilizadas. Expressões como "o fardo do homem branco", para simbolizar a "missão civilizadora" da Europa por sobre áreas denominadas por eles "incultas", "atrasadas" e "selvagens" não mais se sustentam e agridem o senso comum.

Transformar esse quadro, Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não foi tarefa fácil, nem se fez sem o martírio de muitos. A própria data escolhida para simbolizar a luta mundial para a eliminação da discriminação racial - o 21 de março - é uma referência direta a um episódio que, por sua intrínseca dramaticidade, calou fundo na consciência universal: em 1960, manifestantes sul-africanos que, desarmados, protestavam pacificamente contra a discriminação e a segregação raciais em seu país foram impiedosamente massacrados; ao final, 69 pessoas haviam sido assassinadas e outras 150, feridas.

Faço um parêntese, Srª Presidente, para prestar uma homenagem à Rede Globo, que ontem levou ao ar um filme, após a sua novela, que retratou esses fatos. Quem assiste um filme daquele percebe a realidade do que aconteceu, durante anos, naquele país sul-africano.

Creio que aquele filme foi colocado propositadamente, num momento tão importante como este, para esclarecer a opinião pública brasileira, de uma maneira geral, do sofrimento por que passaram os negros na África do Sul.

Não me deterei, aqui, na análise minudente do que ocorreu, ao longo do século XX, em relação à luta contra as mais variadas práticas racistas. Registro, no entanto, seu fortalecimento nos últimos cinqüenta anos, sobretudo a partir do surgimento da Organização das Nações Unidas, no final da Segunda Guerra Mundial.

Em verdade, o mundo que surge após 1945 é por demais distinto daquele que o precedeu: o flagelo de duas conflagrações mundiais no espaço de uma geração; a falência do domínio de tantos séculos da Europa, a bipolaridade do poder mundial, conduzida pelos Estados Unidos e pela União Soviética; a emersão afro-asiática, configurando um novo cenário mundial, em que jovens nações buscam conquistar os espaços que lhes são devidos, caracterizam, em linhas gerais, a nova realidade histórica.

Embora sem poder decisório ou coercitivo, a ONU procurou cumprir seu papel, sobretudo em função das pressões produzidas pelos países do emergente bloco do Terceiro Mundo. Assim é que, já em 1946, ocupava-se da explosiva questão do apartheid, inicialmente atendendo a uma solicitação da Índia, que se queixava de leis sancionadas pelo Governo da África do Sul, que atingiam sul-africanos de origem indiana. Daí em diante, até o momento em que o regime racista de Pretória deixou de existir, a ONU insistentemente se manifestou, inclusive determinando o boicote comercial à África do Sul.

Em nosso País, este 21 de março apresenta um significado todo especial: Zumbi dos Palmares, o gigante da luta quilombola contra a abjeta escravidão, vai deixando de ser apenas um herói da comunidade negra. Rendendo-se à História, o Estado brasileiro inscreve o nome de Zumbi no Livro dos Heróis da Pátria. A decisão, eticamente justa e historicamente correta, resulta de projeto de lei apresentado pela Senadora Benedita da Silva, aprovado pelo Congresso Nacional e sancionado pelo Presidente da República no último dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra e data do aniversário da morte de Zumbi.

A presença de Zumbi no Livro dos Heróis da Pátria é, antes de tudo, o reconhecimento da participação da etnias negras no processo de constituição da sociedade brasileira. Como tão bem assinalou a Drª Dulce Maria Pereira, Presidente da Fundação Cultural Palmares, atos como o tombamento, em 1988, do Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, como monumento nacional, e a inclusão de Zumbi no Panteão dos Heróis Nacionais representam o reconhecimento do "ideal libertário e socializador dos negros aquilombados" e a identificação de seu líder maior, Zumbi, nos dias de hoje, como "a continuidade do processo de libertação e de visibilidade positiva da comunidade afro-brasileira".

A criação do Grupo de Trabalho Interministerial, contando com representantes do Governo e da sociedade civil, e voltado para a elaboração de políticas públicas de valorização da população negra, é outra decisão do Estado brasileiro que merece aprovação de todos nós. De igual modo, o trabalho da Fundação Palmares, especialmente no que se refere ao mapeamento das comunidades remanescentes de quilombos, visando à efetiva materialização do disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que tivemos a honra de colocar na Constituição de 88 - "Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos" - é também digno de aplauso e apoio.

Ao encerrar, Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, lembro que, apesar dos avanços e das conquistas, há que se ficar atento. Para quem, como nós, acredita que o respeito às diferenças - sejam quais forem - é condição necessária e insubstituível para a construção de uma sociedade democrática, justa e fraterna, é preocupante o ressurgimento, neste final de século, de idéias e práticas esdrúxulas que pensávamos enterradas para sempre. Reporto-me aos movimentos neofascistas europeus, com toda a carga totalitária e racista que os caracteriza, e que, por isso mesmo, não podem e não devem prosperar. Afinal, episódios como o genocídio dos judeus, armênios e ciganos, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, foram lições pesadas demais para serem esquecidas.

Da mesma forma, massacres como os ocorridos com povos indígenas em nosso País, a exemplo do que foi feito com tribos localizadas na Amazônia, merecem nosso inteiro repúdio e nosso compromisso de impedir sua reprodução.

É assim que se constrói um mundo melhor.

É assim que se faz História.

Este é o nosso trabalho, enquanto representantes do povo brasileiro.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/03/1997 - Página 6187