Discurso no Senado Federal

CERCEAMENTO DO EFETIVO EXERCICIO DA CIDADANIA AOS FAVELADOS, AS MULHERES, AOS NEGROS, AOS INDIOS E OUTROS SEGMENTOS DA SOCIEDADE. VIOLENCIA SISTEMATICA CONTRA OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL, A DESPEITO DAS CONQUISTAS E INOVAÇÕES CONTIDAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. IGREJA CATOLICA.:
  • CERCEAMENTO DO EFETIVO EXERCICIO DA CIDADANIA AOS FAVELADOS, AS MULHERES, AOS NEGROS, AOS INDIOS E OUTROS SEGMENTOS DA SOCIEDADE. VIOLENCIA SISTEMATICA CONTRA OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL, A DESPEITO DAS CONQUISTAS E INOVAÇÕES CONTIDAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988.
Publicação
Publicação no DSF de 18/03/1997 - Página 5961
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. IGREJA CATOLICA.
Indexação
  • ANALISE, RESTRIÇÃO, CIDADANIA, POPULAÇÃO, FAVELA, MULHER, NEGRO, INDIO.
  • ANALISE, AUMENTO, VIOLENCIA, BRASIL, COMENTARIO, CAMPANHA DA FRATERNIDADE, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), DEFESA, PRESO.
  • NECESSIDADE, ATENÇÃO, JUSTIÇA SOCIAL, DEBATE, PAPEL, CLASSE POLITICA, CIDADANIA.

A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a palavra cidadania é utilizada em três sentidos intimamente correlacionados: designa a qualidade ou estado de ser cidadão, todos os cidadãos, coletivamente, e o conjunto de direitos e deveres inerentes àquela qualidade.

Cidadão, por sua vez, é o membro de uma comunidade nacional, no gozo dos direitos individuais e coletivos (políticos, sociais, econômicos), assegurados pela Constituição ou pelas leis de seu país, e sujeito às obrigações e limitações impostas por elas. (Dicionário Parlamentar e Político, da Editora Melhoramentos).

A cidadania se exerce, entre outras formas, através do voto. O principal direito político do cidadão é o de votar e ser votado para qualquer cargo eletivo.

Além do direito de votar e ser votado, a Constituição especifica outros direitos e garantias dos brasileiros. Vale citar alguns: igualdade de todos perante a lei; liberdade de pensamento e sua expressão, vedado todo tipo de censura; direitos do trabalho e sua organização; homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações; a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão; é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; direito à nacionalidade e direitos políticos. 

O inglês John Locke, considerado o pai do liberalismo moderno, preconizou a divisão dos poderes para que o cidadão, caso se sentisse injustiçado pelo Estado, pudesse bater à porta de uma autoridade e obter proteção. Mesmo assim, Locke achava natural que só os proprietários, os homens que dispunham de bens, tivessem o direito de votar. Os pobres, por serem pobres, não podiam ser eleitores porque não conseguiriam ser realmente livres e não resistiriam à pressão dos endinheirados, que lhes comprariam o voto... Outros defendiam o voto ponderado: o voto de uns (os letrados) deveria valer mais do que o voto de outros, os ignorantes. São momentos bem conhecidos. Não é nenhum episódio inédito.

Ainda hoje o efetivo exercício da cidadania tem sido e continua a ser cerceado na nossa sociedade. As mudanças sempre se fizeram "de cima para baixo", sem participação efetiva da população.

O favelado é vítima de uma evidente discriminação: por um lado, como cidadão, ele tem direito à proteção da lei, seu domicílio é inviolável. Por outro lado, sua casa, seu barraco no morro não é reconhecido como "domicílio" e a polícia se sente à vontade para invadi-lo na hora que quiser, seja dia ou seja noite.

A cidadania das mulheres também não é plenamente assegurada. As mulheres só tiveram seu direito ao voto reconhecido a a partir dos anos trinta e, apesar de muitas de nós ocuparmos postos de importância (Senadoras, Governadoras, Prefeitas, Ministras em administrações passadas), ainda assim continuamos sub-representadas no poder.

Até recentemente o homem era o "cabeça do casal", o "chefe da família", detinha o "pátrio poder" e lhe cabia a administração dos bens do casal. Só com a Constituição de 1988 esse quadro foi efetivamente corrigido e a mulher obteve sua equiparação legal ao sexo masculino (Art. 226, § 5º: "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher").

Também as condições em que os negros exercem sua condição de cidadãos precisam ser reconhecidas como inteiramente anômalas. Nos quadros das Forças Armadas, entre generais, almirantes, brigadeiros poucos ou nenhum negro existem. No executivo, seja federal (exceção é o Ministro Pelé), estadual ou municipal, a situação se repete, com poucos negros eleitos no último pleito. No Poder Legislativo, apenas alguns parlamentares são considerados e assumem a condição de negros.

O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) calcula que quase metade da população brasileira (44%) têm sangue negro. Mas nas esferas de influência e de poder, no entanto, a presença de negros se restringe: 82% dos empresários, administradores e profissionais de nível superior são brancos. Os negros e mulatos são mantidos em estado de pobreza. A Pesquisa Nacional por Amostras Domiciliares (PNAD/IBGE) revela que, de cada cem "não brancos", 49 recebem um salário mínimo ou menos.

O caráter excludente do modelo de crescimento econômico que se adotou entre nós se reflete, igualmente, na tragédia dos índios, que eram cerca de cinco milhões na época do descobrimento e hoje estão reduzidos a pouco mais de duzentos mil.

A violência é, hoje, uma constante em nossas vidas. Tragédias como a de Acari, no Estado do Rio de Janeiro, onde 11 pessoas foram seqüestradas e mortas, sendo oito menores, e que acabou envolvendo tragicamente as mães de algumas delas; o massacre da Candelária, de 23 de agosto de 1993; o de Vigário Geral; os mais de mil índios ianomâmis assassinados nos últimos vinte anos; as mil e setecentas pessoas mortas em conflitos de terra; os 16 mil trabalhadores escravizados no ano de 1992; as 21 pessoas mortas por mês pela Polícia Militar paulista em 1994; as 84 pessoas linchadas na Bahia em 1993; as crianças e adolescentes prostituídas; os 3 milhões de crianças e adolescentes com menos de 14 anos que trabalham; as 3.110 pessoas que morreram de acidentes de trabalho em 1993; os 16.875 trabalhadores que ficaram inválidos no mesmo ano, tudo isto nos leva a meditar sobre a violação sistemática dos direitos humanos no Brasil.

Este ano, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB adotou como tema "A Fraternidade e os Encarcerados" e como lema "Cristo liberta de todas as prisões" e fez um estudo primoroso sobre a situação dos presos brasileiros, tecendo considerações profundas sobre o desconhecimento da cidadania pelo nosso povo. Lembra que os encarcerados merecem ajuda para se reintegrarem na sociedade, para esquecerem os sofrimentos por que passaram. Embora a criminalidade não seja um questão econômica puramente, está ligada a ela, pois quanto maior a miséria em um país, maior o número de delitos.

É impossível, pois, deixarmos de reconhecer que, no Brasil, a institucionalização dos direitos do cidadão continua muito distante de ser alcançada.

A Constituição de 1988 trouxe opções concretas e mais definidas em termos de cidadania. O fato de dedicar capítulos inteiros aos direitos do cidadão, como meio ambiente, cultura, educação, questão indígena, direitos da criança , do adolescente e do idoso, entre outros, por si só já representa grande avanço e inovação.

O povo que tiver consciência da importância da sua Constituição terá grande interesse em respeitá-la e exigir que ela seja respeitada, tornando mais difícil o desrespeito pelos governantes. A Constituição é a expressão da vontade política de um povo e não mera formalidade. E tal Constituição será, sempre, a garantia real da liberdade, da igualdade de oportunidades e da justiça social.

Não podemos esquecer que a falta de confiança nas instituições leva cada um a procurar proteger-se como pode. É isso que, no Rio de Janeiro, transforma os traficantes em protetores das comunidades carentes e leva o povo a fechar os olhos para os grupos de extermínio que estabeleceram uma pena de morte por conta própria.

Por tudo que aqui foi dito, Senhoras e Senhores Senadores, conclamamos todos a uma meditação profunda sobre a justiça social em nosso País, sobre o nosso papel como políticos e como parte do povo no exercício pleno da cidadania para todos os brasileiros, no respeito aos direitos humanos de cada um e de todos nós.

Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/03/1997 - Página 5961