Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO DOS CENTO E CINQUENTA ANOS DE NASCIMENTO DE CASTRO ALVES, O POETA DOS ESCRAVOS.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO DOS CENTO E CINQUENTA ANOS DE NASCIMENTO DE CASTRO ALVES, O POETA DOS ESCRAVOS.
Publicação
Publicação no DSF de 25/03/1997 - Página 6543
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, SESQUICENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, ANTONIO DE CASTRO ALVES, POETA, ESTADO DA BAHIA (BA).

              O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, "Castro Alves não foi um homem: foi uma convulsão da natureza". Com essa citação de Agripino Grieco, inicio meu pronunciamento que vem se juntar aos demais que, nesta Casa, registram e saúdam a passagem dos cento e cinqüenta anos de nascimento do chamado "poeta dos escravos".

              Quando, em 1947, transcorria o centenário de nascimento de Castro Alves, o Brasil inteiro envolveu-se nas comemorações. O mais popular poeta de nossa história recebia as homenagens de um povo que com ele se identificava e cujos sentimentos via refletidos em sua obra. As manifestações públicas em torno da grande data, de norte a sul do País, mostraram o elevado grau de interação entre o poeta e o seu povo.

              As pessoas de minha geração hão de se lembrar que, por muitos anos, não havia uma sessão de grêmio estudantil sem que um poema de Castro Alves não fosse declamado; impensável, durante décadas, que um estudante pudesse passar pelos bancos escolares sem recitar uma poesia do autor de "Vozes d'África". Isso explica a latitude e a intensidade das comemorações de cinqüenta anos atrás.

              Neste ano de 1997, quando se comemoram os cento e cinqüenta anos do nascimento do "maior poeta romântico brasileiro", vivemos um quadro histórico bem distinto. O vigoroso processo de urbanização da sociedade, as incessantes e velozes transformações que a tudo e a todos atingem, o absoluto domínio de uma cultura essencialmente visual, o exacerbado individualismo e o pragmatismo acentuado, são características marcantes de nosso tempo, que se acoplam a outro elemento, talvez mais pernicioso: a inexistência, nos dias de hoje, de uma vinculação orgânica com o passado, reduzindo a História a um permanente presente.

              Nessa perspectiva, não é difícil entender que as comemorações do sesquicentenário aconteçam de maneira diferente do ocorrido há meio século. Entretanto, apesar de as circunstâncias do tempo presente serem tão distintas, em que a literatura foi tragada pela presença avassaladora da comunicação por meios eletrônicos -- especialmente pela televisão --, o País se mobiliza para homenagear Castro Alves, procedendo à releitura de sua obra e identificando sua notável contribuição para a cultura nacional.

              Assim, Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, espetáculos estão sendo programados para todo o corrente ano, exposições percorrerão diversas capitais brasileiras, reedição da obra completa foi providenciada, ciclos de debates propiciarão a especialistas a oportunidade de refletirem sobre a obra do grande poeta e até mesmo projetos de dois filmes sobre Castro Alves estão sendo ultimados. Enfim, nas condições específicas de nosso tempo, celebramos a expressiva data, ressaltando essa figura tão expressiva de nossa História.

              Antonio Frederico de Castro Alves, o poeta libertário que a Bahia deu ao Brasil, nasceu aos catorze de março de 1847, na Fazenda de Cabaceiras, Município de Muritiba. Faleceu em seu Estado natal, aos seis de julho de 1871. Uma vida de apenas vinte e quatro anos, tão breve quanto densa.

              Celebrar o sesquicentenário de nascimento de Castro Alves é mais, muito mais, que festejar um poeta que, como nenhum outro, foi amado por tantas gerações de brasileiros. É, antes de tudo, um convite à reflexão em torno de um autor e de uma obra que interpretaram, em seu tempo, com maestria e precisão, os sentimentos de todo um povo.

              Aí está, Senhor Presidente, seguramente, o diferencial que singulariza Castro Alves. Nele, a poesia não se contentava em exprimir sensibilidade; as palavras, escolhidas com esmero, não serviam apenas para atender a um apurado senso estético. Nosso poeta foi muito além: a palavra assumia a função de arma poderosa, a penetrar pelos caminhos da mente e do coração, sempre na defesa apaixonada de uma grande causa.

              Daí a extraordinária popularidade de Castro Alves. Era o poeta a emprestar seu talento a campanhas que empolgavam a Nação. Era o artista identificado com sua gente e sua época e que, com coragem e destemor, ousava enfrentar poderosos interesses na defesa do que considerava justo. Foi assim, sobretudo, em sua emocionante participação na campanha abolicionista.

              De Castro Alves já se disse, praticamente, tudo. Creio, no entanto, que ninguém foi mais feliz que o também poeta Bruno Tolentino, ao falar da atualidade do autor de "Espumas Flutuantes": "Castro Alves não envelheceu, antes redimiu o tempo. E não o seu tempo, nem o nosso, mas a noção mesma do tempo como inimigo do belo e carrasco do ser (...). O século e quebrados que nos separa daquela assombrosa produção de apenas sete anos de ofício na curta vida de um jovem vai-se ele mesmo encurtando a cada página relida. Relê-las é humilhar o tempo que acreditávamos o dono de tudo; a esse roedor só de nossas pobres certezas e categorias assumidas, assistimos ao poeta i-lo despindo de seu poder de parálise pela tensão viva de cada estrofe, não raro de cada verso num inteiro poema".

              Primeiro de nossos poetas consciente do social, como bem assinalou o gaúcho Érico Veríssimo, Castro Alves soube, como nenhum outro autor brasileiro do século dezenove, tratar da questão do negro em nosso País, focalizando seu papel primordial na constituição do Brasil. Numa época em que a literatura desfrutava de absoluto destaque na vida nacional, "funcionando -- nas palavras de Jean Marcel Carvalho França -- como um importante pólo de agregação da inteligência nacional e, conseqüentemente, como um veículo privilegiado para a expressão daquilo que, a partir de século dezenove, passou a ser definido como cultura brasileira", Castro Alves desempenhou papel vital para a construção de uma imagem do negro na história nacional.

              De um lado, a obra de Castro Alves leva ao ponto máximo o propósito de valorização poética do negro. De outro, mergulha no fenômeno social da escravidão, combatendo-a com virulência e paixão. Como salientou Carvalho França, "Castro Alves, ao pôr em cena os seus protagonistas negros, torna-se o intérprete por excelência daquele grupo que via o flagelo da escravidão como uma nódoa de sangue no solo da Pátria e uma máquina produtora de estropiados sociais. Com a longa série de cativos martirizados que aparecem nos seus versos, o poeta busca não só denunciar o caráter desumano da escravidão como também dar a conhecer os desastrosos efeitos de uma prática que não cessava de produzir potenciais inimigos do corpo social".

              Dono de um lirismo em que a precariedade da vida e o sentimento da morte foram elementos centrais, Castro Alves bradou contra a escravidão. Numa época em que as grandes causas eram debatidas nas praças e na qual os poetas faziam seus poemas ao ar livre, ele impregnou-se intensamente da atmosfera de seu tempo. Lembra Léo Schlafman que o autor de "O Navio Negreiro", entregando-se por inteiro à causa abolicionista, "na efervescência política brasileira do século dezenove, investiu a sua criação poética no espírito libertário e incorporou em definitivo o negro à literatura".

              Castro Alves, "a voz que se uniu à eterna e alta voz dos homens", que "cantou bem", que "cantou como se deve cantar", na memorável definição de Pablo Neruda, teve sua singular presença na cultura brasileira sintetizada, com perfeição, por Amadeu Amaral: "Não foi apenas um poeta, na acepção literária do vocábulo. Foi um apóstolo, um propagandista, um lutador, ciente e consciente dos frutos bons e dos frutos amargos de sua semeadura. Ele foi o querido da mocidade e do povo, o mais amado, o mais admirado, o mais fascinador, o mais compreendido dos nossos poetas".

              Conquanto ainda não suficientemente explorada por nossa crítica literária, como assinalou recentemente Alexei Bueno, a poesia de Castro Alves -- quer seja a amorosa, a lírica, a social ou a épica -- teve seu sentido captado por todos, especialistas ou não. Para o modernista de primeira grandeza Manuel Bandeira, por exemplo, "o único autêntico condor nesses Andes bombásticos da poesia brasileira foi Castro Alves; criança verdadeiramente sublime, cuja glória se revigora nos dias de hoje pela intenção social que pôs na sua obra. Em Castro Alves cumpre distinguir o lírico amoroso que se exprimia quase sempre sem ênfase e às vezes com exemplar simplicidade, como no formoso quadro de "Adormecida", do épico social desmedindo-se em violentas antíteses, em retumbantes onomatopéias".

              Feliz a nação que pode cantar o sesquicentenário de nascimento de um filho cuja obra acalentou amores, deu dignidade aos desclassificados e valorizou a liberdade como bem excelso, perseguindo-a como a utopia possível, realizável, redentora.

              Feliz um povo que pode celebrar a memória de um poeta que venceu a prisão do tempo: o "poeta dos escravos" de ontem é o "poeta dos excluídos" de hoje. Passado tanto tempo, Castro Alves, homem e poeta, permanece intocado em sua integridade. Sua obra alcançou a dimensão da perenidade, para consolo de quem ama o idioma, para o deleite de quem sabe ser a poesia necessária.

              Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/03/1997 - Página 6543