Discurso no Senado Federal

IMPACTOS SOCIAS DO PROCESSO DE ESTABILIZAÇÃO MONETARIA EM CURSO NO BRASIL. EXAGERO NAS ANALISES DO GOVERNO AO APRESENTAR OS EFEITOS DO PLANO REAL. INDIFERENÇA E INERCIA DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO NO CAMPO SOCIAL, ACHANDO QUE A ESTABILIZAÇÃO, POR SI SO, BASTA PARA PROMOVER A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA. INSUFICIENCIA DAS MEDIDAS ADOTADAS PELO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO PARA MODIFICAR A SITUAÇÃO SOCIAL DO PAIS.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • IMPACTOS SOCIAS DO PROCESSO DE ESTABILIZAÇÃO MONETARIA EM CURSO NO BRASIL. EXAGERO NAS ANALISES DO GOVERNO AO APRESENTAR OS EFEITOS DO PLANO REAL. INDIFERENÇA E INERCIA DO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO NO CAMPO SOCIAL, ACHANDO QUE A ESTABILIZAÇÃO, POR SI SO, BASTA PARA PROMOVER A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA. INSUFICIENCIA DAS MEDIDAS ADOTADAS PELO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO PARA MODIFICAR A SITUAÇÃO SOCIAL DO PAIS.
Publicação
Publicação no DSF de 07/03/1997 - Página 5070
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • NECESSIDADE, DEBATE, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, BRASIL, CRITICA, AVALIAÇÃO, GOVERNO, EFEITO, PLANO, REAL.
  • RECONHECIMENTO, IMPORTANCIA, ESTABILIZAÇÃO, MOEDA, CRITICA, EXCESSO, GOVERNO, VALORIZAÇÃO, ESTABILIDADE, OMISSÃO, POLITICA SOCIAL.
  • ANALISE, ESTATISTICA, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, PROPRIEDADE, TERRAS, ATUAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT-SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador José Alves, Srªs e Srs. Senadores, o debate sobre a distribuição de renda e da riqueza precisa ser tomado com maior cuidado e profundidade no Brasil. Tanto o Governo quanto a Oposição têm apresentado avaliações parciais e, portanto, insatisfatórias da evolução recente do problema, em especial do impacto do Plano Real sobre a distribuição da renda e o bem-estar dos mais pobres.

Naturalmente, são as avaliações do Governo que sempre recebem maior destaque nos meios de comunicação. Nem sempre essas avaliações são apresentadas com isenção. E, no entanto, informações que vêm sendo produzidas por institutos do próprio Governo Federal já permitem fazer uma análise um pouco mais fundamentada dos impactos sociais do processo de estabilização monetária em curso desde 1994.

Um diagnóstico isento da questão terá obrigatoriamente de reconhecer que a estabilização monetária traz, por si mesma, um impacto favorável sobre o bem-estar dos setores de baixa renda e sobre a distribuição da renda nacional. Isso é especialmente verdadeiro nos períodos em que a queda da inflação vem acompanhada de expansão dos níveis de atividade e de emprego, como ocorreu, por exemplo, na primeira fase do Plano Real, entre meados de 1994 e princípios de 1995. Os motivos pelos quais isso ocorre são, a essa altura, amplamente conhecidos. Têm sido expostos, com freqüência, em sucessivos pronunciamentos do Presidente da República e das autoridades da área econômica.

Quero reconhecer, inclusive, que os Partidos do campo progressista, de um modo geral, e especialmente o meu Partido, o PT, demoraram demais a perceber a importância política e social da estabilização monetária para sociedades como a brasileira. E pagamos um preço elevado por essa demora nas eleições presidenciais em 1994.

Por outro lado, também parece claro que o Governo Federal tem exagerado quase sempre, quando apresenta publicamente análises sobre os efeitos sociais da estabilização. Isso contribui para criar um sentimento de complacência na sociedade e nos meios políticos acerca da urgência e gravidade do problema social brasileiro. Favorece a inércia no campo das políticas sociais, comportamento que tem sido característico do atual Governo nos seus primeiros dois anos de mandato. Ainda que não o diga, o Governo Fernando Henrique Cardoso comporta-se, na prática, como se a estabilização monetária já fosse suficiente como política social.

Estudos recentes realizados no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, do Ministério do Planejamento, por Ricardo Paes de Barros, Marcelo Neri e Rosane Mendonça, confirmaram que a estabilização monetária recente teve impacto bastante limitado em termos de diminuição da desigualdade na distribuição da renda. Marcelo Neri, em declaração ao jornal Gazeta Mercantil, observou que a desigualdade na distribuição da renda do trabalho melhorou um pouco depois da estabilização, mas não o suficiente para compensar a deterioração ocorrida nos dois anos anteriores ao plano.

Um indicador muito utilizado para mensurar o grau de concentração da renda é a relação entre a parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos e participação dos 40% mais pobres. Em princípio, quanto mais alta esta relação, mais concentrada é a renda no país. Dados referentes à renda familiar mostram os seguintes resultados, reproduzidos pelo economista Álvaro Zini em artigo publicado na Folha de S.Paulo domingo último. Em 1986, ano do Plano Cruzado, a relação era de 4,8, ou seja, a renda total dos 10% mais ricos era 4,8 vezes maior do que a renda total dos 40% mais pobres. Nos anos seguintes, a renda concentrou-se ainda mais. O referido indicador alcançou 6,1 em 1990, 6,5 em 1993 e chegou a um máximo de 7,2 em 1994.

Quais terão sido os efeitos do Plano Real, Sr. Presidente?

Os efeitos do Plano Real se fazem sentir nos dados referentes ao ano seguinte. Em 1995, o indicador cai significativamente para 6,4, mas volta a aumentar um pouco em 1996, quando se situa em 6,5. Note-se que os índices para 1995-6 são praticamente iguais ao de 1993. O de 1996 é pior que todos os resultados observados no Brasil entre 1985 e 1992. A despeito do Plano Real, a distribuição da renda em 1995 ainda era pior do que em 1990, por exemplo. Recorde-se de que 1990 foi marcado por uma hiperinflação aberta no primeiro trimestre e pela recessão provocada pelo famigerado Plano Collor no segundo e terceiro trimestres.

Diante desses dados, não há como justificar a indiferença e a inércia do Governo Fernando Henrique Cardoso no campo social. Os programas implementados pelo Conselho do Comunidade Solidária não constituem políticas que transformem em profundidade os resultados de uma política econômica que, basicamente, continua a reproduzir um quadro marcado por gritante injustiça, por mais meritórios que sejam esses programas e intenções. Em verdade, esse Conselho apenas coordena ações dos diversos Ministérios. Cabe ressaltar, ainda, que esses estudos recentes do IPEA vieram confirmar e detalhar um diagnóstico que já podia ser extraído da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios - PNAD, referente a 1995. Já aí podíamos observar o caráter limitado das repercussões da estabilização monetária sobre os indicadores de desigualdade. Segundo o IBGE, o índice de Gini sofreu redução modesta de 1993 para 1995, passando de 0,603 para 0,592. Como se sabe, esse índice, que é um dos mais utilizados internacionalmente para mensurar a distribuição da renda, varia entre zero e um. Quanto mais próximo da unidade, maior é o grau de concentração da renda em determinado país. Em 1995, o índice de Gini ainda era superior ao registrado em 1992, de 0,575.

O fato é que o Brasil continua a ser um dos países de renda mais concentrada em todo o mundo. Segundo os especialistas do IPEA, quando estiverem disponíveis os dados mais atualizados de distribuição para o resto do mundo, é até possível que venhamos a concluir, novamente, e a despeito dos festejados efeitos do Plano Real, que o Brasil continua a ser o campeão mundial em termos de desigualdade distributiva. Certamente, ainda não estaremos senão dentre aqueles com maior desigualdade no mundo.

Tenho consciência de que esses dados são ainda bastante incompletos e não permitem uma visão abrangente da evolução do quadro social, e mesmo da questão específica da distribuição da renda. Sei, também, que as estatísticas que acabei de citar se prestam a interpretações às vezes divergentes. Quando aborda essa questão, o Presidente da República costuma adotar outro ângulo, enfatizando em geral os dados sobre a evolução do consumo de alimentos e de bens duráveis, notadamente eletrodomésticos, para não dizer do aumento de consumo de iogurte.

Contudo, não cabe confundir distribuição de renda com níveis de consumo dos setores de baixa renda. Esses últimos cresceram no passado recente não apenas em função de fatores como a forte diminuição do imposto inflacionário, que reconhecemos como importante, mas também como resultado da ampliação do acesso a crédito, concedido a taxas de juros extraordinariamente elevadas. O nível das taxas de juros internas, particularmente no crédito ao consumidor, é aliás um dos fatores que contribuem para explicar o limitado efeito distributivo do Plano Real. Os setores mais pobres da sociedade brasileira estão tendo maior acesso a bens de consumo, é verdade, mas freqüentemente à custa de endividamento a taxas de juros extorsivas.

Infelizmente, o IBGE não se empenhou até hoje para também avaliar a distribuição da riqueza das pessoas. A estabilização da moeda contribuirá para que se possa melhor avaliar o valor do patrimônio de cada um. Há hoje estimativas apenas para uma das formas de patrimônio, a propriedade da terra. O Atlas Fundiário do Brasil, publicado pelo INCRA em 1996, indica que, em 1992, 2,8% do número total de imóveis rurais ocupavam 56,7% da área total desses imóveis. O índice de Gini mostra que a concentração da terra, 0,8278, é ainda muito mais acentuada do que a da renda, 0,575, para o ano de 1992.

Não podemos perder de vista que o problema da má distribuição da renda e da riqueza é um problema crônico da sociedade brasileira. Trata-se de um dado estrutural da nossa história, muito anterior à crise inflacionária dos anos 80 e 90. Se é assim, como podemos esperar que a mera redução da inflação, para patamares mais civilizados, pudesse ser suficiente para modificar o quadro?

O problema só será resolvido se existir algum dia, neste País, algo que, infelizmente, nunca tivemos: um governo seriamente comprometido em alterar o quadro da distribuição da renda e da riqueza. Um governo determinado a enfrentar essa chaga com coragem e competência.

Hoje, Sr. Presidente, 6 de março de 1997, passados dois anos, dois meses e seis dias do Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, podemos afirmar com certeza: até agora, as medidas adotadas não foram de molde a transformar essa realidade de distribuição da renda e da riqueza tão iníqua.

Até agora, os instrumentos de política econômica utilizados que contribuíram para baixar a inflação fizeram com que a distribuição da renda melhorasse apenas moderadamente. De 94 para 95 houve melhora razoável. De 95 para 96 ligeira piora, que o Governo ainda não está reconhecendo. E quais foram os instrumentos que caracterizaram o final do ano de 95 e o ano de 96? Qual foi o grande instrumento que mobilizou a ação, a energia do Governo, desde a implantação do Plano Real? Foi, por exemplo, o Proer, a salvação das instituições financeiras. Será que isso contribuiu para melhorar a distribuição da renda? Aqui estão os dados. Não contribuiu em profundidade para alterar um quadro iníquo, estruturalmente considerado e detectado como um dos mais injustos na história da humanidade e no mundo hoje.

Assim, Sr. Presidente, espero que seja o Presidente Fernando Henrique Cardoso mais de acordo com suas palavras em seu pronunciamento do dia 14 de dezembro de 1994, quando falava, se despedindo do Senado e já eleito Presidente, da estabilidade macroeconômica, que "o primeiro ponto é a continuidade e o aprofundamento do processo de estabilização econômica, não como um fim em si mesmo, mas como condição para crescimento sustentado da economia e para o resgate da dívida social"; quando ele falava, nesse mesmo pronunciamento, que "o Brasil tem pressa, portanto. E nós, seus mandatários, temos prazo, um prazo limitado, para tomar as medidas que garantam a continuidade da estabilização e preparem o terreno para um novo ciclo de desenvolvimento"; quando falava:"dispenso-me de repisar os horrores de um quadro social que os Senadores conhecem tão bem e com o qual se angustiam tanto quanto eu. Quadro que a retomada do crescimento econômico por si só não vai reverter - devemos ter isto muito bem claro. Que será dos milhões de adultos analfabetos e semi-analfabetos, inempregáveis pela indústria, pelos serviços e até pela agricultura moderna? Ao menos os filhos deles terão direito à esperança de uma vida melhor?"

Por enquanto, Sr. Presidente, as medidas adotadas não são suficientes. No campo da reforma agrária, ainda, conforme mencionei ontem ao Ministro Raul Jungmann, deixam a desejar. É importante que o Governo venha a pensar melhor, dedique mais energias.

Sr. Presidente, nos próximos dias voltaremos a este assunto, falando dos instrumentos de política econômica, os instrumentos como a reforma agrária e outros como a expansão do crédito popular, do minicrédito, da política de garantia de renda de cidadania ou de renda mínima, da formação e estímulo de formas cooperativas de produção, a ampliação da prática do orçamento participativo e, enfim, de outras políticas, que acreditamos poderão contribuir para que de fato tenhamos uma redistribuição da renda em profundidade, com prioridade para a erradicação da miséria em curtíssimo prazo.

Até agora o diagnóstico é que o Presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu Governo, passados dois anos, dois meses e seis dias, não fez o suficiente para estar condizente com suas próprias palavras de busca de justiça.

Sr. Presidente, há aqui um quadro que mostra a desigualdade da renda no Brasil. Este apresenta, nos anos de 1984 a 1996, a evolução da participação dos 10% mais pobres, dos 10% mais ricos, o coeficiente Gini e a relação dos 10% mais ricos para os 40% mais pobres, de tal maneira a se poder detectar com maior precisão essa evolução de deterioração, a médio prazo, desde meados dos anos 80 para a década de 90, da configuração da renda no Brasil; ou seja, concentrou-se a renda, sobretudo se considerarmos que em 1992 tínhamos um coeficiente de Gini de 0,575; em 1993, 0,603 e em 1995, novamente, embora tenha abaixado, ficando em 0,592, pior que em 1992.

Peço que seja anexado esse quadro ao meu pronunciamento.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/03/1997 - Página 5070