Discurso no Senado Federal

COMENTANDO ARTIGO INTITULADO 'O AI-5 DE FERNANDO HENRIQUE', DE AUTORIA DO JORNALISTA MAURO SANTAYANA, PUBLICADO NO JORNAL CORREIO BRAZILIENSE, DO ULTIMO DIA 30 DE MARÇO. DETERMINAÇÕES ESPECIFICAS DE NOSSO PROCESSO DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL, QUE MODELAM AS FEIÇÕES DO AUTORITARISMO POLITICO BRASILEIRO, SEGUNDO O METODO E OS ESTUDOS ACADEMICOS DO SOCIOLOGO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • COMENTANDO ARTIGO INTITULADO 'O AI-5 DE FERNANDO HENRIQUE', DE AUTORIA DO JORNALISTA MAURO SANTAYANA, PUBLICADO NO JORNAL CORREIO BRAZILIENSE, DO ULTIMO DIA 30 DE MARÇO. DETERMINAÇÕES ESPECIFICAS DE NOSSO PROCESSO DE ACUMULAÇÃO DE CAPITAL, QUE MODELAM AS FEIÇÕES DO AUTORITARISMO POLITICO BRASILEIRO, SEGUNDO O METODO E OS ESTUDOS ACADEMICOS DO SOCIOLOGO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
Publicação
Publicação no DSF de 09/04/1997 - Página 7364
Assunto
Outros > PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • SOLICITAÇÃO, TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, MAURO SANTAYANA, JORNALISTA, ASSUNTO, AUTORITARISMO, PRESIDENTE DA REPUBLICA.
  • ANALISE, PROCESSO, INSERÇÃO, BRASIL, GLOBALIZAÇÃO, ECONOMIA, MUNDO, UTILIZAÇÃO, MODELO POLITICO, AUTORITARISMO, OBJETIVO, DESIGUALDADE SOCIAL.
  • GRAVIDADE, CRISE, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, CRITICA, PRIVATIZAÇÃO, EMPRESA ESTATAL, PROCESSO, ACUMULAÇÃO, CONCENTRAÇÃO DE RENDA, BRASIL, BENEFICIO, BANQUEIRO, CAPITAL ESTRANGEIRO.
  • COMPARAÇÃO, TEORIA, SOCIOLOGIA, AUTORIA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, INCOERENCIA, GOVERNO, NEGAÇÃO, DEMOCRACIA.

O SR. LAURO CAMPOS (PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, pretendo fazer um esforço para terminar hoje a leitura de um longo discurso que iniciei na penúltima vez que ocupei esta tribuna.

Para abrir com chave de ouro esta manifestação de hoje, lerei a parte final de um artigo publicado no Correio Braziliense de 30 de março de 1997, assinado pelo notável e brilhante jornalista, uma das pessoas mais inteligentes e cultas que tive o prazer de conhecer nesta minha já longa vida, jornalista Mauro Santayana, intitulado:

      "O AI-5 de Fernando Henrique.

      Neobobos somos todos: o cardeal-primaz, Dom Lucas Moreira Neves e seus companheiros de episcopado; o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e a maioria dos seus membros; os ex-Presidentes Itamar Franco, José Sarney, Aureliano Chaves e João Figueiredo; o venerando brasileiro Barbosa Lima Sobrinho, a maioria dos sócios do Clube Militar e militares conservadores, como o Almirante Maximiliano da Fonseca, o General Leônidas Pires Gonçalves e o Brigadeiro Ivan Frota. Inteligentes são os meninos do Banco Central e do BNDES tão ágeis em hipotecar a nossa soberania, e tão lerdos em fiscalizar notórios picaretas do mercado financeiro, isso, na melhor das suspeitas. Essa inteligência da equipe, no entanto, tem a sua amarração na excelsa inteligência de Sua Majestade Presidencial.

      Essa inteligência é também jurídica e editou, na quarta-feira desta semana de trevas, medida provisória que equivale a novo AI-5. Ao inviabilizar o exame pela Justiça de seus atos de violência, o Presidente da República assume, sem disfarces, a ditadura e desafia mais uma vez a consciência democrática dos brasileiros. Assume, da mesma maneira, a responsabilidade pelo que ocorrer diante da História, mas também no julgamento de seus contemporâneos."

Portanto, peço que a íntegra desse artigo conste nos Anais do Senado Federal.

Como se vê, o meu longo pronunciamento está na mesma linha de constatação de que realmente se repete no Brasil uma situação que tende a ultrapassar, sim, a ditadura militar brasileira, instaurada em 64. E, de acordo com a interpretação do Professor Fernando Henrique Cardoso, isso ocorreria porque o processo de acumulação de capital é que determina o caráter da super-estrutura política.

Hoje, com essas montadoras, com esses artigos de luxo, com essa economia voltada para o capital estrangeiro, deveremos forçosamente concentrar mais a renda nacional, excluir mais os marginalizados e elitizar mais esse mercado de consumo de Primeiro Mundo, que é capaz de pagar, por exemplo, pelo produto mundial mais conhecido, o Big Mac, o grande sanduíche que os Estados Unidos globalizaram, colocando à disposição de todos os consumidores mundiais. Aqui no Brasil, o Big Mac custa R$3,30 (três reais e trinta centavos) e, nos Estados Unidos, custa US$0,55 (cinqüenta e cinco centavos de dólar). Aqui no Brasil, o Big Mac custa seis vezes mais do que nos Estados Unidos, e nós, brasileiros, ganhamos em média seis vezes menos. Seis vezes cinco são trinta vezes a diferença entre o custo social de comer um BigMac no Brasil e comê-lo nos Estados Unidos. E é por isso que há esse fluxo fantástico de turistas de classe média que invade o mercado americano atrás de mercadorias. Lá se paga pela quinta, pela sexta parte do que é oferecido neste mercado livre brasileiro.

É necessário que haja uma força, um despotismo nas relações políticas a fim de que essas injustiças sejam aceitas, a fim de que o paciente Brasil seja seguro e que se aplique sobre ele essas receitas desumanas ditadas pelo FMI ao resto do mundo, mas não usadas lá, nem nos Estados Unidos, repudiadas na Inglaterra pela derrota próxima da Madame Thatcher.

Rejeitado o próprio capitalismo - numa pesquisa recente na França - por 65% dos pesquisados nessa enquête. Sessenta e cinco por cento já dizem que não acreditam no capitalismo.

Tentaremos, no tempo que nos resta, acompanhando o método e a trilha do Professor Fernando Henrique Cardoso, compreender quais as determinações específicas de nosso processo de acumulação de capital que modelam as feições de nosso despotismo, de nosso autoritarismo político, que Sua Excelência, quando Professor, dizia que "muitas vezes beira ao fascismo".

À medida em que a crise das finanças públicas, que para mim é uma crise de desproporção, soma-se à crise de sobreacumulação de capital, chega ao fim o Estado desenvolvimentista. Os escassos recursos do Governo, em crise de desproporção, não se dirigem mais à acumulação produtiva que viu suas portas serem fechadas pela crise de sobreacumulação de capital.

As empresas estatais não recebem mais recursos do Governo. O dinheiro estatal, desfalcado cada dia mais do poder das novas emissões de papel-moeda, outrora copiosas, dirige-se para salvar os setores em crise; ao invés de fazerem empresas estatais, agora, doam-se os recursos públicos aos banqueiros falidos e aos grandes e "eficientes" empresários, que mostram a sua eficiência por meio de concordatas e falências.

Com o sucateamento industrial, a abertura para as mercadorias estrangeiras subsidiadas na origem e protegidas por uma taxa de câmbio suicida, com o desemprego crescente, as falências e inadimplências em elevação, o Governo passa a exercer o papel de bombeiro e a empregar seus parcos recursos para molhar a secura da base monetária que ele ajudou a provocar.

O sistema político brasileiro revela, na crise, sua natureza bancocrática. Enquanto os recursos para a saúde, educação, pagamento de funcionários e obras sociais são negados e sonegados, o Governo gasta U$20 bilhões para tentar salvar os banqueiros donos de estabelecimentos falidos.

O mercado e suas leis só funcionam para degolar os fracos, enquanto o protecionismo e o intervencionismo do estado neoliberal, que se declara falido, sustentam o sistema financeiro privado. A acumulação de falências sorve e destrói os recursos, que antes se traduziam em obras e empresas estatais, em acumulação de capital. Todo valor acumulado no patrimônio das estatais, calculado pelo Ministro Malan em R$20 bilhões, se somado às telecomunicações, de acordo com o Ministro Sérgio Motta, atingiria mais de R$100 bilhões. Os R$20 bilhões correspondem à importância que o Governo neoliberal de FHC doou aos bancos via Proer. Como o governo neoliberal não deseja investir na produção por questões de princípio, corre-se o perigo de que o despotismo erija o continuísmo como prioridade e gaste parte substancial da receita da venda das estatais na reeleição de FHC, a prioridade das prioridades.

A privatização-doação das empresas estatais retira as bases reais de um segmento importante da população: os diretores, técnicos e altos funcionários das estatais. Com a política de desemprego, os funcionários públicos federais, estaduais e municipais perdem renda, prestígio e poder e deixam de ser os destinatários e beneficiários de parte da massa de mais-valia, do lucro produzido pela produção. Essas mudanças na estrutura da propriedade de empresas produtivas e as transformações decorrentes do "enxugamento" visam colocar em disponibilidade uma parcela da massa de mais-valia, que, por meio da força, do despotismo, da persuasão (propaganda) será canalizada para banqueiros nacionais e estrangeiros e servirá de atrativo para as indústrias estrangeiras que ficaram fora do processo de transplante intensivo das décadas de 50 e 60. Assim, só se pode começar a compreender a direção e o sentido do autoritarismo do Governo FHC na medida em que se perceba que a crise, as contradições do processo de acumulação de capital e as tentativas de redinamizá-lo constituem o centro nevrálgico do leit motiv da ação governamental. Ao usar as receitas das vendas das estatais para resgatar os papéis da dívida pública, o Governo passará para os banqueiros e carregadores da dívida mobiliária que se tornara impagável mais R$20 bilhões, segundo cálculo do Ministro Malan. Diante dos R$200 bilhões da atual dívida pública mobiliária federal, o pagamento de R$20 bilhões é um pingo d´água no oceano.

Governado pela crise, envolvido no turbilhão de interesses assanhados pelo colapso, desnorteado, impossibilitado de declarar que não pode governar o ingovernável, o Presidente FHC cria um mundo imaginário, em que sua vontade alienada, e apenas ela, enxerga o crescimento sustentado, a distribuição da renda nacional, a prosperidade geral, a modernização tecnológica neutra e a reeleição, principalmente a reeleição! Sua imaginação cria um Brasil fictício, habitado por tudo que Sua Excelência sabe ser impossível numa situação de crise. Freud alertou, em seu Totem e Tabu, que são os conflitos surgidos no processo de trabalho, as frustrações e as angústias que levam as pessoas a construírem um mundo imaginário e a se refugiarem nele. O nome dessa ruptura não é agradável: esquiso, no grego, quer dizer cisão, ruptura, e frenia é nervosa. O conflito interno entre as sólidas bases marxistas de sua personalidade e o comportamento neoliberal, oportunista e esvoaçante, se somatiza, manifestando-se na hipocondria.

Dada a herança da estrutura produtiva brasileira e seus limites externos, decorrentes da forma de inserção do Brasil na divisão internacional do poder, do capital, da técnica, da renda, da exploração do mercado, a acumulação capitalista não pode inventar setores novos em que se objetivar. Reforça-se, no governo do Presidente FHC, a acumulação de capital nos mesmos setores em que ela ocorrera a partir da década de 50, dos dourados e enganosos anos do transplante intensivo de capital. Como bom marxista, o Professor Fernando Henrique Cardoso sabe que é a "produção que produz o consumo: um objeto para o sujeito, um sujeito para o objeto e a necessidade do objeto no sujeito", segundo a definitiva determinação de Marx. Os objetos que resultarão da acumulação de capitais, caso o processo não encontre obstáculos na consciência rebelada dos brasileiros, serão automóveis modernos, mundiais, barcos, telefones celulares, fac símiles, telefovisão, montados no Brasil com grande percentual de partes, peças e insumos produzidos nas matrizes das multinacionais e importados pelo País. O Professor Fernando Henrique Cardoso sabia e escreveu quais os resultados desse processo que têm de produzir o sujeito rico para comprar os automóveis, os produtos da linha branca, os computadores domésticos e de escritório, os celulares, os fornos de microondas etc.

O Governo FHC não tem escolha: os investimentos estrangeiros se dirigem para os mesmos setores, de carros, de artigos de luxo, em que se verificou a acumulação de capital nas décadas de 50 a 70. São setores que tentam se reafirmar como pólo de acumulação de capital ainda sobre os estragos sociais, o endividamento externo e o público, a concentração de renda, a despriorização da saúde, da educação, da recuperação penitenciária causados pela geração anterior de acumulação de capitais.

Que grande crítico, Sua Excelência, o Presidente FHC não seria hoje de tão perdido e kafkaniano programa de Governo que procura ressuscitar o padrão de acumulação que produziu a ditadura militar dos anos 60, que aumentou a dívida social interna e externa, levando o País à crise de sobreacumulação e à perdição, não de uma década, mas de 17 anos que preparam a barbárie.

O poder de acumulação de capital, sua capacidade de determinar a natureza despótica, autoritária do poder político se sobrepõe ao discurso social-democrata e se objetiva numa prática tida pelo próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso como arcaica, despótica, centralizadora de poder, concentradora de renda de um lado e excludente da massa de população de outro.

A política de abertura desesperada da economia e de apelo à participação do capital estrangeiro nos setores automobilísticos, de telecomunicações, de compra das empresas estatais, por meio de doação de toda ordem, mostra que, estancadas as fontes de acumulação estatal, devido à crise do governo keynesiano e a da exploração da mais-valia absoluta, imposta pelo nível de miséria atingido pela massa assalariada, o processo de acumulação de capital só poderia recuperar fôlego por meio do império da mais-valia relativa - como diz o Professor Fernando Henrique Cardoso -, do capital coisa, da tecnologia mecanizada, metálica, desumana e pela abertura e atração do capital estrangeiro.

"Se quisermos chegar ao miolo destas questões", diz o Professor Fernando Henrique Cardoso na pág. 13 de seu livro já citado, "(...) diremos que a pergunta-chave para ver como se acumula é: quem tira quanto, de quantos e de que maneira? Se respondêssemos a estas perguntas, teríamos resolvido o problema da acumulação". E, compreendida a acumulação, estaria resolvido o enigma do despotismo e do autoritarismo brasileiro.

As disputas em torno da acumulação de capital e de seus beneficiários e perdedores são essenciais para que se entenda o sentido das mudanças da Constituição, dos Poderes Legislativo e Judiciário, da ordem jurídica interna e das relações internacionais globalizantes impostas pelo Governo FHC. Os funcionários públicos civis e militares, os investimentos e a acumulação nas empresas estatais, a exploração dos trabalhadores e a acumulação de capital no campo, na agropecuária, os investimentos em saúde, na educação, no sistema viário, nas aposentadorias, nas pesquisas, estão deixando de ser os destinatários finais de parte da massa de mais-valia, do "quanto se tira".

E esses recursos, em vez de se destinarem aos funcionários, à saúde, à educação, etc., agora têm que encontrar um novo destinatário.

A quem serve a acumulação? A quem serve aquilo que se tira? Esses novos destinatários só podem ser encontrados através de forças despóticas e autoritárias.

O credo neoliberal é adequado às mudanças do padrão de acumulação em que a esfera estatal desempenhava um papel oficial. Do antigo tripé desenvolvimentista - capital privado nacional, capital estatal, capital estrangeiro - restou praticamente o último pé, o capital estrangeiro que a política neoliberal pretende transformar em base principal, senão exclusiva, do processo de acumulação capitalista.

Parece que grande parte do esforço despótico consiste em mudar o destinatário, os beneficiários do lucro, da mais-valia, e encontrar principalmente no capital estrangeiro e nos banqueiros nacionais esses felizes destinatários.

Assim é também específico do estado despótico brasileiro que o autoritarismo político, ao contrário de ser colocado a serviço da grandeza do estado nacional-fascista, como ocorreu nos anos 30 e 40, na Itália e na Alemanha, se mostra como autoritarismo dependente, agora subserviente, posto a serviço dos novos interesses do centro mundial. A superestrutura política está mudando a fim de tentar substituir a falida acumulação de capital na esfera estatal pelo incremento do capital estrangeiro que ingressaria pela porta da abertura, seduzido pelas desonerações tributárias por até 30 anos, pela doação de terrenos, pela redução do custo do capital variável, isto é, da contratação, da despensa, da aposentadoria, das indenizações a que os trabalhadores tinham direito, apelidado de custo Brasil. O Governo FHC centraliza o poder e a força necessários para destruir o antigo e instalar um novo padrão de acumulação capitalista brasileiro (o "quanto tira"), modernizar a tecnologia com "que se tira" e mudar de destinatário o resultado do processo de exploração (a quem beneficia).

Para aqueles que consideram que a missão histórica principal do capitalismo e, portanto, de seus governos nacionais é "acumular, acumular, isto é, Moisés e os Profetas", na expressão de Marx, nada pode haver de mais perturbador do que uma crise de sobreacumulação. Diante do paredão da sobreacumulação de capital, a missão histórica do capitalismo e de seus governos se vê paralisada: os investimentos se contraem, os gastos do governo diminuem, são submetidos ao "enxugamento", de acordo com o eufemismo neoliberal. A genialidade de Keynes se manifesta, entre outras oportunidades, quando, diante da crise de sobreacumulação que ele declarou existir "nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha" devido "à forte acumulação de capital ocorrida após a 1ª Guerra que fez com que a taxa de lucro esperada caísse abaixo do nível que a taxa de juros poderia fazê-lo", tal como ocorre hoje no Brasil, bloqueando os investimentos, esconde, ao longo de sua Teoria Geral que aquela era uma crise provocada por excesso de capital, excesso de eficiência, sobreacumulação. Keynes passa a chamar de investimentos as despesas do governo em habitação, em plantação de cactos, no estéril Vale do Tennessee, em estradas, em guerra, na contratação de funcionários para retirá-los do desemprego, em setores e atividades em que os investimentos tinham retorno zero ou negativo. Se a crise de sobreacumulação evidencia que é contraproducente, por agravar o problema do superinvestimento, que o governo invista em setores de atividades produtivas, o genial lorde, ciente de que o governo não pode jogar a toalha, passa a defender "investimentos" públicos em atividades "não apenas parcialmente dissipadoras, mas wholly wasteful, completamente dissipadoras, pagas com novas emissões de dinheiro-estatal, de papel moeda.

Na crise atual do capitalismo, além da crise de sobreacumulação de capital que bloqueia os investimentos produtivos, a crise de desproporção das atividades bélicas, espaciais, improdutivas, dissipadoras, financiadas pelos governos Keynesianos nos últimos 60 anos, que provocou a crise das finanças públicas, se manifesta como uma paralisia bilateral: nem a acumulação de capital nos setores produtivos, nem as atividades improdutivas de que são exemplos as 2.200 obras públicas paradas, paralizadas no Brasil, podem continuar a dinamizar contraditoriamente o sistema capitalista. O capitalismo e seu governo se encontram numa dupla sinuca de bico. As crises produziram sempre novas versões ideológicas, necessárias para redinamizar e dar sobrevida ao capitalismo.

Esta crise não produziu nenhuma questão ideológica nova, mas simplesmente um retorno ao neo-liberalismo nascido em 1873.

Ao Professor Fernando Henrique Cardoso a desestatização se apresenta como uma volta ao passado e "parece indesejável". Em seu lugar ele propunha novas formas de organização da sociedade, "mecanismos que assegurem, em primeiro lugar, informações sobre as decisões (nas empresas de Estado, na Administração etc.); em segundo lugar", continua o Professor Fenando Henrique, "tratar de ampliar o debate dentro do âmbito do Estado e seus prolongamentos; em terceiro lugar, imaginar fórmulas de participação nessas decisões, tanto por parte dos que estão diretamente implicados pelo trabalho nas organizações estatais, como por parte do público mais amplo" (op. cit., p.21). "Não se trata obviamente", diz ele, de substituir a luta de classes por uma panacéia de participação indeterminada", mas de criar as arenas e o clima de liberdade que permitam aos trabalhadores, aos assalariados em geral, aos sindicatos, às organizações culturais, religiosas e políticas - afirmava Sua Excelência - exercer sua ação transformadora" (p. 22). Se os sindicatos, as igrejas, as organizações populares - MST, por exemplo - se apresentam como órgãos de luta contra o autoritarismo, é óbvio que a ação do Presidente Fernando Henrique Cardoso no sentido de derrotá-los, esvaziá-los e desmoralizá-los pavimenta o caminho para o despotismo esclarecido de FHC.

O trecho seguinte tem um impressionante cunho premonitório: "Como procurar nesta mesma maioria carente a energia para impedir que a única transformação posta como possível ao nível da realidade seja o reforçamento das tendências favoráveis AO DESPOTISMO ESCLARECIDO QUE TRANSFORMAM CADA GOVERNANTE NUM DEUS ANSIADO E TEMIDO; CADA TECNOCRATA NUM PETULANTE QUE SUBSTITUI O QUERER DOS HOMENS PELA PSEUDO RACIONALIDADE DO INEVITÁVEL "PROGRESSO"! (p. 23)

O Professor Fernando Henrique Cardoso faz um retrato de corpo inteiro de si e de seu próprio Governo. O professor é o profeta e FHC, o Presidente, o realizador das profecias. Nada há a acrescentar.

      O EXAGERO EXPOSITIVO COMO MÉTODO ADEQUADO PARA ABRIR ESPAÇO PARA AS NOVIDADES DE FERNANDO H. CARDOSO

O Professor Alain Touraine tem razão em apontar como uma das três causas dos êxitos do Professor Fernando Henrique Cardoso sua habilidade em se situar numa via intermediária entre duas correntes opostas do pensamento de esquerda no Brasil.

O Professor Fernando Henrique Cardoso se mostrou consciente de que "para que as transformações não se estiolassem numa pseudo-reforma das estruturas controladas por elites que se pensam iluminadas pela técnica e pela ciência (risco inerente às "reformas burguesas", mas não ausentes nas reformas socialistas), é preciso QUE A NOSSA REVOLUÇÃO VENHA DE BAIXO, COMO HÁ QUASE QUARENTA ANOS DIZIA UM ESCRITOR BRASILEIRO AO FAZER A CRÍTICA AO FASCISMO NASCENTE DAQUELA ÉPOCA" (FHC, AUTORITARISMO E DEMOCRACIA, p. 163).

Para quem trocou as transformações sociais pela "ESTABILIDADE", COMO FEZ O PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, os desmantelamentos das organizações sociais - sindicatos, partidos políticos socialistas e dos trabalhadores, Movimento Sem-Terra, pastorais da Igreja Católica, movimento estudantil -passaram a ser fundamentais para impedir que a "revolução viesse de baixo".

Escreveu o Professor Fernando Henrique Cardoso: "Sem a reativação das bases populares e sem uma ideologia antiburocrática baseada na responsabilidade individual e na consciência das necessidades sociais, o salto do patrimonialismo ao corporativismo tecnocrático pode levar os povos latino-americanos a reviverem "na selva das cidades" a barbárie tão temida pelos socialistas do século XIX. Se não houver a reativação da sociedade por meio de vigorosos movimentos sociais, forçando a participação e a definição de empresas, das cidades, do Estado e das instituições sociais básicas", afirma enfático o Professor Fernando Henrique Cardoso, movimentos que ele hoje desarticula e tenta desmobilizar, "há o risco da criação de um horroroso mundo novo"... Sim, o neomundo, neoliberal, se instaura no deserto da apatia social e REINSTAURA A BARBÁRIE URBANA ANTEVISTA PELO PROFESSOR NO TRECHO ACIMA CITADO.

Também se referindo aos "neobobos" e à inexistência de oposição, o Presidente Fernando Henrique Cardoso fala sobre a utopia regressiva.

E esta última parte do meu pronunciamento se intitula "Da utopia regressiva ao despotismo progressivo".

O panorama em que o Presidente FHC tomou posse diferia bastante do que veio a se formar ao longo do golpe de 64. Os militares perceberam o elevado custo que iriam pagar, como instituição, com o fim do milagre econômico e com a crise que o General Golbery percebeu que os aguardava na esquina do tempo, infringindo-lhes a derrota administrativa, a perda de legitimação e a desmoralização. O Governo FHC transferiu parte substancial do poder dos militares, que foram desalojados até da direção de estatais e de empresas privadas, para os tecnocratas. O Banco Central, o BNDES, a Radiobrás, o Ministério das Comunicações assumem não só o poder exercido pelos militares como passam a exercer funções que legalmente deveriam ser da competência do Senado e da Câmara. O professor Fernando Henrique foi dos poucos analistas que perceberam que a chave do entendimento do despotismo, do autoritarismo, do bonapartismo político se encontrava na infra-estrutura econômica, mais precisamente na acumulação de capital e em suas contradições.

À medida em que avança seu Governo, estímulos, incentivos, doação de terrenos, desoneração tributária por 20 ou 30 anos acabam concentrando no Brasil um grande número de montadores de automóveis, quantidade que ultrapassa a existente nos Estados Unidos.

O trecho seguinte evidencia que são tão parecidas as situações autoritárias antigas com as modernas que não se sabe se o professor Fernando Henrique está se referindo aos anos 70 ou se descreve seu próprio Governo: ..."Neste aspecto, não só o Estado liquidou ou controlou as organizações de classe (sindicatos, partidos) e os meios de expressão e os meios de oposição (Congresso, imprensa) que poderiam ser utilizados pelos setores de classe derrotados (em 64) - inclusive a parte do empresariado e da classes média ligada ao populismo -, como assegurou uma política econômica que, às expensas dos trabalhadores (arrocho salarial), de parte da classe média (funcionalismo etc) e mantendo a exclusão social e econômica que herdara do regime anterior (no campo e nas cidades), permitiu a reconstituição dos mecanismos de acumulação. Os instrumentos para isso obrigaram uma modernização do aparelho do Estado, bem como à adoção de políticas econômicas claramente favoráveis à ação empresarial" (op. cit., p.177)"

Não cabe à oposição fornecer diretrizes e planos ao capitalismo caótico nacional e internacional. Os donos da boiada que peguem no chifre. Quem pariu Mateus que o embale. A oposição deve se opor, sair dos corredores palacianos, participar dos movimentos e das organizações sociais, mostrar que o capitalismo keynesiano deu no que deu e que o capitalismo neoliberal conseguiu ser ainda mais desumano, mais bárbaro. O desafio do Governo à oposição para administrar o inadministrável é uma piada de nobres, de gente fina, que o populacho não pode entender.

A grande pergunta prévia que deveríamos fazer neste fim de século e final de linha é a seguinte: haverá proposta digna, haverá saída com grandeza dentro dos limites do capitalismo? Os que acharem que sim devem aderir ao Governo, embarcar na nau perdida. Os que considerarem que as soluções keynesianas e neoliberais faliram e que dentro do círculo de giz do capitalismo não há solução, devem ser otimistas, entender que estamos no limiar da história. Novas relações entre os homens, libertas da exploração, da evisceração, da destruição e da guerra; uma tecnologia limpa, depurada de seu rancor político, de sua vocação tanática, de sua direção elitista e excludente; novas formas de organização das cidades que já mostraram seu colapso, sua barbárie; novas formas de alimentação, sem-fome de um lado e sem-obesidade do outro; novas relações e organização do trabalho social, e formas novas, alegres, de trabalhar, de produzir para nós todos; a acumulação de instrumentos de trabalho e conhecimentos científicos serão totalmente diferentes da acumulação de capital que provoca a cizânia social desde a origem, desde a produção; um mundo sem banqueiros e sem dívida externa. Ora, vamos ajudar a enterrar o presente e sua barbárie capitalista, cujo corpo, quase defunto, pesa nos ombros magros da humanidade, e preparar a síntese que selecionará e conduzirá para o futuro o conteúdo positivo, humano, respeitoso, ecológico de nossa experiência histórica. Os homens têm de escolher entre a maximização do lucro e a maximização da vida social e da natureza. Não há como optar por ambas, de vez que elas são incompatíveis: a maximização do lucro com a maximização da vida.

A afirmação do despotismo e do autoritarismo faz recuar a utopia de um socialismo democrático e possível. De novo, repete-se a escolha difícil: socialismo ou barbárie; futuro ou pré-história. Não falta por que lutar, e o sonho é um ingrediente da luta, por ser essencial à vida e à sua afirmação. A discussão política tem de ganhar coragem, altura e aprofundamento, diante da crise de uma era que afirma ser eterna, mas que sente suas pernas se vergarem sob a ruína do corpo e a decadência do espírito.

Sr. Presidente, obrigado por permitir o resumo do meu pronunciamento.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/04/1997 - Página 7364