Discurso no Senado Federal

POSICIONAMENTO DESFAVORAVEL AO VOTO FACULTATIVO, ADOTADO NA ULTIMA SEMANA PELA COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A ANALISAR A EMENDA CONSTITUCIONAL DA REFORMA POLITICA. RAZÕES PELAS QUAIS S.EXA. E A FAVOR DO VOTO NÃO FACULTATIVO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA POLITICA.:
  • POSICIONAMENTO DESFAVORAVEL AO VOTO FACULTATIVO, ADOTADO NA ULTIMA SEMANA PELA COMISSÃO ESPECIAL DESTINADA A ANALISAR A EMENDA CONSTITUCIONAL DA REFORMA POLITICA. RAZÕES PELAS QUAIS S.EXA. E A FAVOR DO VOTO NÃO FACULTATIVO.
Publicação
Publicação no DSF de 08/04/1997 - Página 7292
Assunto
Outros > REFORMA POLITICA.
Indexação
  • OPOSIÇÃO, APROVAÇÃO, VOTO FACULTATIVO, COMISSÃO ESPECIAL, RESPONSAVEL, ANALISE, EMENDA CONSTITUCIONAL, REFORMA POLITICA.
  • ESCLARECIMENTOS, MOTIVO, OPOSIÇÃO, ORADOR, VOTO FACULTATIVO, PRESERVAÇÃO, CONSOLIDAÇÃO, DEMOCRACIA, PAIS.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a Comissão Especial que trata da matéria da reforma política aprovou, na semana passada, a figura do que se convencionou chamar de "voto facultativo".

É uma expressão equívoca, porque o voto no Brasil já é facultativo; vota-se em quem se quer. O que não é facultativo é o ato de votar. E mesmo dentro do ato de votar, quem não quer votar vota em branco ou vota nulo, razão pela qual a expressão "voto facultativo", a meu juízo, está usada de modo indevido e merece, do ponto de vista jurídico, reparos.

Feita essa observação preliminar, porém, quero trazer minha palavra contrária a essa decisão e, desde logo, antecipar meu voto neste plenário em favor do voto não facultativo. Faço questão de não chamar o voto não facultativo de obrigatório por algumas razões: uma de natureza psicológica, outra de natureza semântica.

É evidente que se é posta para a população a alternativa facultativo/obrigatório, ela opta pelo facultativo, pois tudo o que é obrigatório, tudo o que oprime, tudo o que constrange causa, de antemão, uma resistência. Portanto, há uma natureza psicológica na própria colocação do problema. É evidente que, do ponto de vista da sedução, do charme, o voto facultativo dá a sensação de que o eleitor está a ser tratado de modo muito mais evoluído. E ele vai votar se quiser.

O voto, no Brasil, não é obrigatório. O voto, pela Constituição brasileira, é um dever e um poder. E, a partir de agora, enumero as razões pelas quais sou a favor desse voto não facultativo:

1. O voto é um poder e um dever.

2. O voto chamado obrigatório, que não é obrigatório, promove uma educação política do eleitor;

3. promove também uma melhoria nas condições gerais de formação da cidadania - o estágio atual da vida brasileira versus voto facultativo significa dizer que uma quantidade enorme de brasileiros ficará fora do processo eleitoral e que o processo eleitoral brasileiro deixará de contar com um contingente significativo de eleitores.

4. A tradição brasileira e latino-americana, e sul-americana sobretudo, é uma tradição de voto não facultativo; é de voto como dever ou, se quiserem, de voto obrigatório - expressão, repito, que não gosto de usar;

5. voto, sendo não facultativo, traz benefícios à qualidade da representação popular; e quando o País vive uma crise de representação popular, grave como a que vivemos, e os políticos e o Parlamento constantemente estão na opinião pública sob a mira do mais forte escárnio e opróbrio, é evidente que qualquer beneficiamento da qualidade da representação deve ser bem-vinda.

6. A legitimidade do processo fortalece a democracia. Que quero dizer com isso? Quero dizer com isso que, quando o processo tem um grau de legitimidade maior por haver uma presença maior de eleitores, o processo democrático se beneficia.

Postos esses seis pontos, gostaria de entrar na análise de cada um, pois eles são a base da argumentação deste discurso. Poucos consideram o voto como um poder. E do ponto de vista constitucional essa talvez seja a sua principal característica. Por quê? O raciocínio é simples. A Constituição brasileira, na sua abertura, diz, de modo magnífico e definitivo: "Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido."

Ora, se todo poder emana do povo, é evidente que o povo tem que participar da escolha dos representantes de um poder. Portanto, o voto é a representação concreta da soberania popular pela escolha dos representantes do Poder Legislativo e dos representantes máximos do Poder Executivo. Não há como retirar esse poder do povo por um estratagema, até simpático, que, usando o nome de voto facultativo, abre a possibilidade para o eleitor de não votar.

Gostaria de ler uma breve passagem do jurista Nelson de Souza Sampaio a esse respeito.

      "Do exposto, conclui-se que o voto tem, primordialmente, o caráter de uma função pública. Como componente do órgão eleitoral, o eleitor concorre para compor outros órgãos do Estado também criados pela Constituição."

Enfatizo:

      ..."o eleitor concorre para compor outros órgãos do Estado também criados pela Constituição.

      Em geral, porém, as Constituições têm deixado o exercício da função de votar a critério do eleitor, não estabelecendo sanções para os que se omitem. Nessa hipótese, as normas jurídicas sobre o voto pertenceriam às categorias das normas imperfeitas, o que redundaria em fazer do sufrágio simples dever cívico ou moral. Somente quando se torna obrigatório, o voto assumiria verdadeiro caráter de dever jurídico. Tal obrigatoriedade foi estabelecida por alguns países, menos pelos argumentos sobre a natureza do voto do que pelo fato da abstenção de muitos eleitores; fato prenhe de consequências políticas, inclusive no sentido de desvirtuar o processo o sistema democrático.

      Nos pleitos eleitorais com alta porcentagem de abstenção, a minoria do eleitorado poderia formar os órgãos dirigentes do Estado, ou seja, Governo e Parlamento."

Isso está publicado em Eleições e Sistemas Eleitorais, na Revista de Jurisprudência, Arquivos do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, 1º trimestre de 1981.

Temos, portanto, a visão de um eminente jurista brasileiro a dizer que a obrigatoriedade cria, além do dever cívico e moral, um caráter de dever jurídico. A Constituição, ao prever o voto obrigatório, cria o dever jurídico. Eis a razão pela qual juntei a expressão "poder" com a expressão "dever": o voto como poder e o voto como dever.

O voto - e por isso não gosto da expressão obrigatório - não tem a natureza de algo absolutamente compulsório. O voto é obrigatório enquanto um dever. Ora, a Constituição brasileira prevê deveres para a cidadania. Cai por terra, portanto, o argumento principal dos defensores do chamado voto facultativo de que o voto é apenas um direito e, sendo um direito, pode o eleitor usá-lo ou não.

A Constituição impõe deveres aos cidadão: o serviço militar é um dever; o pagamento de impostos e taxas é um dever; a obrigatoriedade de cuidar dos filhos e dos pais na velhice e no desamparo é um dever; a escolha dos dirigentes é um dever, é um dever da sociedade, porque nesse está incluso o poder maior existente em uma democracia, aquele que lhe garante a soberania: o poder de escolha dos governantes.

A população não está com a possibilidade de abrir mão desse poder, porque esse poder lhe é inerente. Nem pode o Congresso, pelo expediente do voto facultativo, eliminar a existência desse poder inerente ao cidadão; poder ao qual corresponde o dever do voto e, claro, também um direito, mas não somente o direito.

Falacioso o argumento pelo qual se deseja deixar fora do processo eleitoral, e agora entrando nas razões políticas, a maioria do povo brasileiro.

O País possui baixas taxas de cultura cidadã, e o fato de que temos atrasos ancestrais na nossa formação, no nosso processo educativo leva enormes contingentes da população a ainda permanecer distantes de uma série de fatos, de uma série de andamentos da própria vida brasileira.

O Brasil só agora começa a desenvolver a sociedade organizada, só agora ele cresce gradativamente do ponto de vista da organização da sociedade, do ponto da vista da organização de entidades não-governamentais. E por quê? Exatamente porque o Brasil possui legiões de pessoas fora do processo de cidadania. Seriam, digamos assim, legiões compostas de indivíduos em estado de pré-cidadania.

Poderíamos, ao fazer um olhar sobre o nosso País, ver com clareza o seguinte: temos um enorme contingente em estado de pré-cidadania, temos um enorme contingente em estado de cidadania primária, temos um contingente um pouco menor em estado de cidadania, eu chamaria conservadora, mas cidadania, ou seja, grupos infensos à mudança, à modernidade e temos uma taxa pequena também de grupos de cidadania plena.

Pois bem, isso nos leva ao que vivemos dolorosa e dramaticamente nos Parlamentos: à crise da representatividade. A representatividade brasileira está em crise porque é oriunda de segmentos da sociedade que ainda votam, ou são levados a votar, por razões as mais distantes das razões profundas do exercício do direito de voto. São esses bolsões de pré-cidadania que são tangidos para o ato de votar por razões de natureza fisiológica, por razões de natureza ligada a pequenas ajudas, por coronelato, por formas cartoriais, por formas autoritárias, por formas anômalas de se aproveitar exatamente dos baixos estratos de cidadania da população, compelindo-a ao voto segundo o interesse das oligarquias políticas.

Aí está uma das causas mais graves da baixa qualificação do Poder Legislativo brasileiro, da baixa qualificação de nossa representação e do estágio a que chegou o Poder Legislativo diante da opinião pública, considerado por várias pesquisas como um dos órgãos de menor confiabilidade. Está a causa não no próprio Poder Legislativo. O político não é causa de nada; é conseqüência de um processo que, levado às últimas conseqüências, engendra a deficiência da representação popular.

Ora, dirão alguns: "Este argumento, então, parece conduzir ao voto facultativo". E, aqui, a grande falácia do voto facultativo: não, ele não conduz ao voto facultativo. O voto facultativo, em primeiro lugar, levará os setores que estão em desencanto com a atividade política simplesmente a não comparecer. E esses são até setores de massa crítica, capazes do discernimento, de acompanhamento do processo político. Mas, sem dúvida, significativos segmentos desses setores não irão votar. A forma de protesto não será mais o voto branco e nulo, será não ir votar. Há um outro segmento que não irá votar por razões prazenteiras; por falta até de espírito de cidadania. Talvez seja muito melhor um dia de lazer do que um dia numa fila de votação. Teremos, no quadro brasileiro que, hoje, é de 90 milhões de eleitores possivelmente a metade desse contingente a votar.

Pode-se então, fazer a pergunta: Quem votará? Votarão as classes dominantes e saberão fazer presente o seu voto. E os setores da classe dominante ligados ao latifúndio mais produtivo, às forças mais retrógradas do País saberão conduzir em ônibus e caminhões em troca de pequenas vantagens, do sanduíche, ou em troca da organização vertical das oligarquias interioranas e mesmo das oligarquias urbanas, esses saberão colocar, no dia da votação, aqueles eleitores que já irão com o voto pronto.

O absenteísmo, ou seja, a ausência do voto virá exatamente dos setores mais conscientes da sociedade. E se aprovarmos o voto facultativo no Brasil, teremos o predomínio absoluto das formas menos qualificadas de escolha de representantes populares, das formas oriundas ou da manipulação vergonhosa que ainda se faz presente, mas que ficará mais forte, ou, então, das classes dominantes, estas, até porque conhecem o processo, não quererão abrir mão do poder que nele está implicado.

Se de 90 milhões de eleitores passarmos para 40, teremos uma queda absolutamente bárbara no número de pessoas responsáveis pela escolha de dirigentes no Brasil. E aqui, então, ressalta um outro argumento: vivemos num País de constantes crises institucionais. De 1923 até hoje, apenas dois governos civis chegaram ao fim do mandato. Apenas dois governos eleitos chegaram ao fim do mandato: um de um civil, Juscelino, outro de um militar, Dutra. Somos uma sucessão de golpes militares, de golpes civis, de golpes de Estado, de interrupção do processo democrático, de fechamento de partidos políticos, de garroteamento das liberdades. Somos uma dolorosa história de golpes no século XX.

Ora, um dos grandes argumentos que sempre acompanhou os golpes militares foi o de não haver relação entre o governante e a vontade da sociedade. Se passarmos, no Brasil, que apenas recomeça, há poucos anos, a tentativa de uma democracia estável; se passarmos, no Brasil, a entrega da legitimidade da escolha de governantes e de parlamentares à minoria do povo brasileiro e dos eleitores, cairá por terra o argumento da legitimidade, cairá por terra o argumento da vontade popular. Dá-se também para o segundo turno esse mesmo argumento. Isso será objeto de outro discurso em outra oportunidade.

Hoje estamos apenas a analisar essa questão do voto facultativo. Ao cair por terra o fato de que os governantes foram escolhidos sem os ser pela maioria, subirá, de imediato, o argumento de que o governante não tem legitimidade, sendo, portanto, alvo fácil de uma contestação frontal ao seu poder, porque passaremos a eleger pessoas com 15% dos votos, 20% do eleitorado ou, no máximo, 30% dele. Suponhamos que, junto a isso, ainda caia o segundo turno numa eleição majoritária em um Estado que tenha cinco candidatos - normalmente há muito mais. Assim, será eleito alguém com cerca de 15% dos votos, ou, no caso de um Presidente da República, havendo cinco ou seis candidatos, será eleito alguém com pouco mais de 20% dos votos, tendo 80% do restante, se não contrários, pelo menos indiferentes; se não contrários, pelo menos indiferentes à sua sorte, fora da legitimidade necessária à consolidação de um processo democrático necessário, fundamental, básico para o futuro deste País.

Este tema nos toca em profundidade, Sr. Presidente, Srs. Senadores, porque pertencemos a uma geração que foi marcada pelos golpes militares, que teve que muito lutar para reconstruir o processo democrático que aí está, de uma geração que sabe o quanto custa cicatrizar o tecido social amarfanhado ou, de certa maneira, arrebentado pelas constantes interrupções do processo democrático. E, portanto, esta geração não pode deixar passar, sem muita luta, esse verdadeiro atentado contra o futuro deste País, que está incluso na ilusão sedutora do voto facultativo como expressão apenas de uma liberdade e de um direito a mais do eleitor.

Não se trata disso. Direito ele tem e terá. Facultativo o voto é, porque não se está obrigado a votar em ninguém, e se não quiser votar em alguma pessoa, ainda tem o voto nulo e o voto em branco a seu dispor, para usar a faculdade e o direito de votar. Mas o voto como dever significa a consolidação da legitimidade indispensável no processo.

Por essa razão, Sr. Presidente, ainda em forma preliminar, de vez que essa matéria voltará ao Plenário, mas já foi votada na Comissão do Senado na semana passada, trago essa palavra antecipatória de uma luta que, espero, seja uma luta ferrenha pela defesa de princípios que ajudam a consolidar a frágil democracia brasileira, que tanta luta e esforço nos custou. Não será por uma manobra de caráter elitista, uma manobra das classes dominantes que agora será imposta ao povo brasileiro a adoção desse voto supostamente chamado de facultativo, que nada mais é de que um voto facultativo exclusivamente para a classe dominante e para as oligarquias.

Muito obrigado, Sr. Presidente, pela atenção.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/04/1997 - Página 7292