Discurso no Senado Federal

CARACTER MULTICULTURAL, PLURIRRACIAL E PLURIETNICO DA SOCIEDADE BRASILEIRA, ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. PERCEPÇÃO INADEQUADA DA PRESENÇA NEGRA NA HISTORIA BRASILEIRA, A QUAL NECESSITA SER REESCRITA. REIVINDICAÇÕES CONTIDAS NO DOCUMENTO 'POR UMA POLITICA NACIONAL DE COMBATE AO RACISMO E A DESIGUALDADE RACIAL'. MANIFESTAÇÕES ALENTADORAS DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, QUANTO AOS PRIVILEGIOS DA NOSSA DIVERSIDADE CULTURAL E ETNICA.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • CARACTER MULTICULTURAL, PLURIRRACIAL E PLURIETNICO DA SOCIEDADE BRASILEIRA, ASSEGURADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. PERCEPÇÃO INADEQUADA DA PRESENÇA NEGRA NA HISTORIA BRASILEIRA, A QUAL NECESSITA SER REESCRITA. REIVINDICAÇÕES CONTIDAS NO DOCUMENTO 'POR UMA POLITICA NACIONAL DE COMBATE AO RACISMO E A DESIGUALDADE RACIAL'. MANIFESTAÇÕES ALENTADORAS DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, QUANTO AOS PRIVILEGIOS DA NOSSA DIVERSIDADE CULTURAL E ETNICA.
Publicação
Publicação no DSF de 08/04/1997 - Página 7297
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, RECONHECIMENTO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DIVERSIDADE, GRUPO ETNICO, PLURALIDADE, CULTURA, PAIS, RESULTADO, LUTA, COMUNIDADE INDIGENA, REIVINDICAÇÃO, MOVIMENTAÇÃO, NEGRO, GARANTIA, RESPEITO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
  • ANALISE, NECESSIDADE, ALTERAÇÃO, HISTORIA, PROMOÇÃO, DEBATE, ESCLARECIMENTOS, CONSCIENTIZAÇÃO, SOCIEDADE, DIFICULDADE, POBREZA, MISERIA, COERÇÃO, GRUPO ETNICO, NEGRO, IMPORTANCIA, RESPEITO, PRESERVAÇÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
  • COMENTARIO, CONTEUDO, DOCUMENTO, MOVIMENTAÇÃO, NEGRO, APRESENTAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, OPOSIÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, VALORIZAÇÃO, INCENTIVO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
  • ELOGIO, INICIATIVA, PRESIDENTE DA REPUBLICA, CRIAÇÃO, GRUPO DE TRABALHO INTERMINISTERIAL, APRESENTAÇÃO, PROPOSTA, VALORIZAÇÃO, NEGRO, RECONHECIMENTO, IMPORTANCIA, DIVERSIDADE, GRUPO ETNICO, CULTURA, PAIS.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, sob a proteção de Olorum, inicio o meu pronunciamento.

Um dos traços distintivos da sociedade brasileira é o seu caráter multicultural, plurirracial e pluriétnico. formado por contingentes humanos das mais diversas origens, que para cá trouxeram diferentes hábitos e costumes, diferentes formas de ver o mundo, diferentes contribuições nas áreas do saber e tecnologia, o Brasil goza, por isso, de uma imensa riqueza de possibilidades culturais que lhe proporcionam uma extraordinária flexibilidade do ponto de vista de sua inserção num mundo em que as fronteiras se tornam cada vez mais difusas em razão das novas tecnologias de comunicação e do papel exercido pelas empresas multinacionais, responsáveis maiores pela chamada globalização.

A Constituição de 1988 registra, no Título VIII - Da Ordem Social -, o pluralismo étnico, consagrando esse capítulo à questão indígena, enquanto os parágrafos 1º e 2º do artigo 215 reconhecem a realidade de uma sociedade pluricultural cujas diversas manifestações culturais indígenas e afro-brasileiras devem ser reconhecidas e protegidas. O mesmo artigo 215 dá destaque, no parágrafo 2º, à etnia, usando a expressão "segmentos étnicos nacionais".

Com essas diversas cláusulas, a Constituição de 1988 reconhece o País como uma Nação formada por diferentes etnias, confirmando um pluralismo que o Estado tem o dever de proteger. Isso demonstra que não existe oposição formal entre os conceitos de etnia e de nação, havendo mesmo uma coexistência entre ambos. Extremamente longo, o texto constitucional não entra, porém, no detalhe de conceituar o que seja etnia ou pluralismo cultural. No entanto, a análise mostra-nos que o espírito da Constituição remete a três concepções. A primeira, ao se referir à pessoa humana, remete a um universalismo fundamental que define o cidadão como tal, sem distinções de raça, religião, sexo e cultura. A segunda, usando nominalmente as expressões "populações indígenas" e "segmentos étnicos nacionais", reconhece implicitamente a diversidade étnica da Nação, admitindo particularmente a especificidade dos índios, aos quais consagra todo um capítulo. A terceira concepção, por fim, confirma o pluralismo cultural, visto como patrimônio comum da Nação e como tal devendo ser protegido.

O destaque dado na Constituição à diversidade étnica e ao pluralismo cultural não é, com certeza, aleatório. Resulta da luta dos povos indígenas, bem como das reivindicações do Movimento Negro de que seja reconhecida a igual dignidade dos grupos afro-brasileiros e garantido o respeito às culturas de origem africana. Corresponde também a uma nova visão das relações étnicas e culturais em sociedades multirraciais, radicalmente diferente do projeto assimilacionista que se expressa em teorias como a da "democracia racial", visão essa que vem sendo formulada nas últimas décadas por sociólogos, antropólogos e cientistas políticos, e que tem o apoio explícito, no Brasil, de intelectuais comprometidos com a transformação das relações sociais, entre eles o atual Presidente da República, sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

O reconhecimento da existência de um pluralismo étnico, imbuído do reconhecimento adequado da imagem dos grupos étnicos pelo Estado, representa um golpe profundo no discurso "universalista" dominante, baseado na idéia da fusão das raças e na assimilação por todos da cultura européia, supostamente superior. Tal reconhecimento adequado da imagem dos grupos negros e indígenas contraria, sem dúvida, o desejo daqueles que cultivam o ideal de homogeneização racial e que acreditam nas virtudes da assimilação cultural como solução para diluir as diferenças étnicas e as desigualdades sócio-econômicas.

Mas, para os que defendem o respeito às diferenças étnicas, o reconhecimento explícito e adequado da etnia representa o resultado de uma exigência existencial fundamental, na medida em que consideram a necessidade desse reconhecimento tanto em nível individual quanto coletivo. Para esses, é insuficiente o simples reconhecimento da igualdade individual sem o reconhecimento simultâneo e adequado do valor das particularidades étnicas, pois o Estado brasileiro, ao representar os interesses da etnia dominante, reconhece de fato o valor e a primazia desta última sobre as demais.

Não custa reafirmar, portanto, que a principal motivação dos que procuram libertar-se dos efeitos do racismo é o desejo do reconhecimento recíproco entre iguais - de ser reconhecido como ser humano dotado de mérito e dignidade inerentes. Essa aspiração corresponde ao valor que chamamos de auto-estima. Ela leva os negros a desejarem libertar-se do estado de inferioridade a que foram relegados e a desembaraçar-se das imagens depreciativas de si mesmos. Particularmente, leva-nos a lutar contra o racismo, que representa, acima de tudo, a negação radical do valor da herança histórica e cultural dos afro-brasileiros, de onde advém a discriminação.

Os resultados de uma pesquisa realizada em 1996 pelo Instituto Vox Populi, publicados na revista Veja, confirmam a péssima impressão da sociedade brasileira quanto à participação dos negros na formação do Brasil. Enquanto 36% consideravam ser positiva a influência européia, apenas 9% tinham a mesma idéia sobre a influência africana. Essa percepção inadequada da presença negra na História do Brasil é compartilhada por brancos e negros, que absorveram e reproduzem a história da etnia dominante e de seus heróis brancos, e tem como resultado mais grave a interiorização, pelo negro, de uma imagem menosprezada, o que o torna complexado e alienado. Para reverter tal situação, faz-se necessário reescrever a História e promover um amplo debate sobre a verdadeira censura exercida pela História oficial durante mais de 450 anos.

Ao mesmo tempo em que estabelece a ligação entre nossas raízes e nossa luta de libertação, essa História reescrita - poderoso agente libertador - vai nos ajudar a entender e amadurecer a consciência de nossa pobreza e miséria como resultado da opressão de que temos sido vítimas nestes quatro séculos, ao mesmo tempo em que permitirá preencher as lacunas da História oficial, dotando os afro-brasileiros de referências históricas e de meios para interpretá-las. Mas, para que a História reescrita possa alcançar o público, aumentar o grau de consciência étnica e pavimentar a coesão comunitária, é ainda necessário que ela seja ensinada nas escolas, introduzida nos manuais e livros escolares e, também, difundida pela mídia.

As diferentes formas nas quais e pelas quais os negros materializam sua humanidade, exercem sua criatividade e exprimem sua personalidade não se limitam à arte, à religião ou à história. Priorizar tal enfoque - o que é comum para os adeptos de uma certa visão anacrônica da questão racial - seria reduzir a ação do Movimento Negro a uma dimensão meramente simbólica e cultural. A total reversão da imagem negativa do negro passa também por sua ascensão econômica e seu acesso ao poder político. Mas não é tudo. É preciso também que o negro tenha acesso paritário aos meios de comunicação de massa. Sem isso, a percepção social do negro continuará submetida ao poder decisório dos responsáveis pela mídia, os quais tendem a excluir a imagem dos afro-brasileiros, bem como a dos indígenas, por considerar que, de um lado, esses dois segmentos étnicos não dispõem de poder aquisitivo suficiente e, de outro, não correspondem aos cânones estéticos greco-romanos que dominam a sociedade e, conseqüentemente, a própria mídia.

O documento "Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial", apresentado oficialmente pelo Movimento Negro ao Presidente Fernando Henrique Cardoso em 20 de novembro de 1995, por ocasião da Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, mostra que a valorização da imagem do negro está no centro dos objetivos políticos e culturais das organizações afro-brasileiras. Pode-se ler no documento que o programa de combate ao racismo e à desigualdade racial implica o fomento à cultura, a preservação da memória do povo negro brasileiro e a valorização das religiões de origem africana; mas também inclui objetivos como a ampliação da legislação anti-racista e o desenvolvimento de políticas compensatórias que ampliem o acesso de negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta; reivindica, também, a concessão imediata de títulos de propriedade definitiva das terras às chamadas comunidades remanescentes de quilombos, bem como a revisão dos textos escolares para eliminar as imagens negativas dos negros e também as referências pejorativas e racistas. As reivindicações alcançam, também, a necessidade do estabelecimento de medidas que assegurem um melhor acesso dos afro-brasileiros ao mercado de trabalho, tanto quanto a representação proporcional dos grupos étnicos e raciais nas campanhas de comunicação do governo e de entidades que com ele mantenham relações econômicas e políticas.

Cabe aqui ressaltar a forma como o documento foi recebido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, numa audiência especialmente concedida às lideranças do movimento negro responsáveis pela marcha. Integrante, com Florestan Fernandes e Octavio Ianni, da chamada Escola Sociológica de São Paulo - responsável, entre outras coisas, por uma profunda reformulação no estudo das relações raciais em nosso país -, cuja tese de mestrado teve como tema a mobilidade social dos negros em Florianópolis, o Presidente instituiu nesse mesmo dia o Grupo de Trabalho Interministerial para a valorização da população negra. Composto de militantes negros e representantes de dez ministérios, o Grupo tem por missão apresentar propostas de políticas públicas na área das relações raciais, em especial as chamadas medidas compensatórias, ou de "ação afirmativa", adotadas em muitos países para remediar a situação de grupos historicamente discriminados, como negros e mulheres, mas ainda encaradas com muita má vontade em nossa sociedade, até mesmo por setores que se pretendem "esclarecidos" e "progressistas".

É curioso - mais que isso, alentador - perceber o quanto a visão do atual Presidente da República se distancia, nesse aspecto, daquela da maioria de seus correligionários e aliados políticos. Essa visão, que, no que tem sido exposto, coincide com a do Movimento Negro e de seus parceiros no mundo acadêmico, vem sendo explicitada reiteradas vezes. Ao abrir, por exemplo, o Seminário Internacional Multiculturalismo e Racismo: o Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos, o Presidente reafirmou ser fundamental, no mundo contemporâneo, nossa diversidade cultural e étnica, que ele - tal como nós - considera um privilégio, cujos imensos benefícios, contudo, só advirão "se nos organizarmos democraticamente, ou seja, se aumentarmos as oportunidades de acesso à cultura, à participação na economia, aos poderes decisórios aos diversos segmentos da população brasileira".

Para o Presidente, já passou "a época em que o Brasil se contentava em dizer que, havendo essa diversidade, ele não abrigava preconceitos". Dizer o contrário, como ele mesmo teve ocasião de provar na própria pele, equivalia a fazer uma afirmação contra o Brasil. "De lá para cá, muita coisa mudou, no sentido de que o Brasil passou a descobrir que nós não tínhamos assim tanta propensão à tolerância como gostaríamos de ter. Pelo contrário, existem aqui alguns aspectos de intolerância, quase sempre disfarçados pela tradição paternalista do nosso velho patriarcalismo e sempre um pouco edulcorados, adocicados, porque nós não manifestamos nossas distâncias e as nossas reservas, geralmente, em termos ásperos."

Uma das dificuldades apontadas pelo Presidente na elaboração e, principalmente, na implementação de medidas concretas para acabar com o racismo e a discriminação, e ao mesmo tempo para promover a população afro-brasileira - o Presidente confessa-se um adepto das medidas compensatórias, embora enfatize a necessidade de serem planejadas com criatividade, evitando-se a cópia pura e simples de experiências estrangeiras -, consiste exatamente na hipocrisia que reveste as relações raciais em nosso país, hipocrisia essa que oculta valores muito profundos, e também profundos interesses. Essa hipocrisia está por trás, por exemplo, de manifestações como aquela que tive de enfrentar, faz poucos dias, nesta mesma casa, quando artifícios maliciosos foram empregados para me impedir de expressar a indignação e as reivindicações de minha sofrida comunidade.

Sei muito bem que meu discurso costuma ser desagradável num país que se acostumou achar que negros bons são aqueles que conhecem o "seu" lugar, que é o da submissão e o da inferioridade. Mas eu estou aqui justamente para subverter essa visão. Para mostrar que a construção de um Brasil moderno, justo, democrático, que não tenha de se envergonhar todos os dias perante o mundo com as imagens de violência, miséria e discriminação divulgadas pelos veículos de comunicação, passa necessariamente pelo fim do racismo e do preconceito que se abatem sobre seus filhos de ascendência africana. Nessa luta sem tréguas enfrentando inimigos quase sempre ocultos sob os véus da hipocrisia e do paternalismo, é com alento que vemos manifestações como a do atual Presidente da República, infelizmente desconhecidas ou desvalorizadas pela maioria daqueles que dizem ser seus seguidores. O que mostra que ainda é muito árdua a luta que temos pela frente; mas também que, felizmente, já dispomos de aliados nos mais altos escalões do País.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.

Axé!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/04/1997 - Página 7297