Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR - PIXINGUINHA.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR - PIXINGUINHA.
Publicação
Publicação no DSF de 24/04/1997 - Página 8339
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR, MUSICO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, INFLUENCIA, MUSICA POPULAR, MUSICA BRASILEIRA.

            O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Senador Abdias Nascimento traçou um quadro sintético da vida de Pixinguinha, de certa forma roubando-nos o expediente: traçar um esboço da vida de Pixinguinha.

            Para não me tornar repetitivo, faço aqui um esforço de superação do esquema que havia preparado, porque, em grande parte, ele já foi muito bem abordado pelo Senador Abdias Nascimento, que me antecedeu nesta tribuna.

            Tenho a convicção, Sr. Presidente, de que o povo é mais profundo do que culto. A expressão não é muito feliz, mas precisa ser dita assim para o que pretendo significar. A definição de cultura ficou um pouco aprisionada não a todas as formas da criatividade humana - como, aliás, está, felizmente, na nossa Constituição -, mas à idéia de um tipo de cultura, da cultura erudita, dessa cultura de origem ocidental oriunda da Grécia e de Roma. Cultura ficou, portanto, como sinônimo de um tipo de domínio verbal-racional da vida, que os setores populares, evidentemente não por culpa própria mas por causa de uma grande discriminação de natureza social existente no País, jamais tiveram a oportunidade de incorporar a seu patrimônio.

            Ocorre, porém, que os setores populares, embora não detentores dessa chamada - e já agora posso usar - “cultura”, conseguem, a meu juízo, a profundidade. E a profundidade é evidente que é uma forma de cultura. Conseguem a profundidade, em primeiro lugar, por razões de natureza ancestral. O nosso povo, nas suas origens, vem de culturas milenares: da cultura do índio, posteriormente massacrada neste País; da cultura do negro, milenar, própria, peculiar, fortíssima; e da cultura de herança portuguesa, num tal enlace consagrado por Olavo Bilac como a flor amorosa de três raças tristes.

            Pixinguinha é uma expressão, portanto, dessa realidade. Ele é uma expressão da capacidade de aprofundamento possível às manifestações do povo na arte. E só estamos, neste Senado Federal, a comemorar o seu centenário porque, no século XX, tivemos o privilégio e o milagre do disco, do rádio, da reprodução, pois se tal não ocorrera ficaríamos adstritos ainda à idéia de que a cultura é tão somente a cultura literária ou a cultura pictórica ou a cultura musical, digamos, dos chamados grandes gênios da música ou da chamada, erradamente, música erudita.

            Aliás, a esse propósito não há como classificar a música, porque qualquer palavra é inadequada. Recordo-me do maestro Guerra Peixe, que não aceitava a expressão “música popular”, porque - dizia ele - se a música popular é a música do povo, a outra é a impopular, o que não é verdade. Beethoven não é impopular. A expressão “música erudita” tampouco é boa, porque a música de Pixinguinha, por exemplo, é de alta erudição do ponto de vista harmônico, do ponto de vista melódico. Enfim, não há uma expressão correta e adequada. Nenhum país conseguiu música de concerto, música clássica tampouco, porque o Classicismo é um período da história da música. Haydn é um compositor clássico, porque pertence ao Classicismo. Schumann é um compositor romântico, não pertence ao Classicismo, não é clássico - clássico em oposição a popular tampouco. Não há uma adequação possível nessa matéria. Prefiro ficar com uma velha definição de que há dois tipos de música: a boa e a má.

            Pixinguinha está, portanto, situado no ápice da música de alta qualidade. E como? Em primeiro lugar, o choro brasileiro é uma expressão muito interessante nascida neste País. Talvez o choro seja o ritmo mais tipicamente carioca de todos, mais do que o samba, num certo sentido. As raízes negras, mescladas à melodia portuguesa, são evidentes e iguais às do samba. Porém, a batida do samba é muito próxima a toda influência negra - aliás, maravilhosa! - na América Central, no Caribe e onde quer que tenha estado a presença negra, desde logo, nos Estados Unidos da América, com esse ritmo, essa forma de música fabulosa, que é o jazz. Mas o jazz não tem um ritmo próximo ao do samba; o jazz vem encontrar-se com o samba muitos anos depois, na bossa nova, na década de 60.

            Na origem, o samba se aproxima de músicas centro-americanas basicamente: a rumba, a cumbia colombiana aproxima-se dos ritmos ligados à conga, que, hoje, nessa mescla que caracteriza a contemporaneidade, pode-se, digamos, sintetizar no que se convencionou chamar de salsa, que é o nome em moda dessa mescla de ritmos dos quais o ritmo do samba está próximo.

            O chorinho não; o chorinho é uma expressão típica do Rio de Janeiro por algumas de suas características: primeiro, no fim do século passado, havia grupos de músicos que saíam a tocar pelas ruas a encontrar as suas melancolias e as suas saudades, a que chamaram de chorões.

            Villa Lobos é marcado pelos chorões, tanto que Villa Lobos possui, na sua obra vastíssima, uma quantidade muito grande de choros, que têm origem nos chorões populares. Os chorões eram uma espécie de seresteiros que buscavam um tipo de música urbana, peculiar no Rio de Janeiro do final do século passado.

            Interessante que, como eram pessoas, em geral, pobres, os instrumentos que caracterizavam a sua música eram simples, razão pela qual essa qualidade musical surge com o violão de seis e sete cordas; com o cavaquinho, um pequeno instrumento de quatro cordas; com o bandolim e com o pandeiro - instrumentos absolutamente fáceis de comprar. É com esses instrumentos, particularmente o violão, que começa a se desenvolver um gênero de música feito pelos chorões.

            No alvorecer do século, começa a aparecer uma mescla do ritmo negro a esse trabalho dos chorões. O ritmo torna-se buliçoso, ágil; a expressão musical aproxima-se deveras da expressão barroca, isto é, uma expressão feita de elaboração contínua. Na música do choro, não há espaços praticamente disponíveis como na obra barroca, onde todos os espaços são ocupados por sons. E o ritmo negro agrega uma possibilidade rítmica ao choro. Nasce o que, então, se convencionou chamar o chorinho; ou seja, o chorinho é uma espécie de filho dos chorões.

            Muito bem, Pixinguinha é nascido em 1897; portanto, é criança na década de 10. A casa do seu pai era um casarão. O seu pai, músico, tinha por hábito abrigar músicos desempregados - os músicos sempre foram pessoas pobres -, que eram acomodados no porão da casa. E, ali, nesse pequeno ambiente, o menino Alfredo cresce, faz-se encantado com a música e, já aos 10 anos, domina, de modo muito eficiente, como acentuou o Senador Abdias Nascimento, alguns instrumentos. Ele domina o cavaquinho, toca a flauta e se inicia em outros instrumentos de sopro.

            É nesse quadro desse Rio de Janeiro que surge, portanto, a formação profunda de Pixinguinha, que imediatamente se revela de muito talento e é chamado para tocar em bandas com adultos. Ainda criança, para surpresa de músicos experimentados, demonstra uma capacidade formidável.

            Aqui, um ponto importante, que liga o chorinho brasileiro ao jazz norte-americano. Não há nenhuma afinidade do ponto de vista rítmico, nem do melódico, nem do histórico, mas jazz quer dizer improviso; jazz é um palavra que nada quer dizer, exceto improviso.

            Pixinguinha se revela um grande improvisador e, aqui, o chorinho, então, ganha uma característica musical qualificada - que, habitualmente, não é considerada: a enorme capacidade de revelar o talento dos instrumentistas. O choro é um gênero nitidamente instrumental, que, depois, vem a ganhar letra, poesia; mas é muito difícil de ser cantado. Pela rapidez barroca de seu andamento, parece uma bardinerie, um andamento acelerado de alguma dança antiga e é nitidamente instrumental. Nesse ponto, aproxima-se do jazz, repito, não do ponto de vista do ritmo, ou do histórico. O jazz nasce de outras formidáveis lutas do negro norte-americano contra a opressão, mas do ponto de vista da improvisação; e mais: da popularidade, ou seja, é uma música que sai dos extratos dominados da sociedade - e já temos aqui um elemento cultural de altíssima importância.

            No Brasil, País colonizado pelos portugueses, de enorme concentração de renda, de altos graus de discriminação social praticamente desde a sua descoberta, curiosamente é a cultura do dominado, aquela que vem ao primeiro plano do consumo das massas no século XX.

            O Brasil não tem na música, por exemplo, a vitória da cultura do dominante, até porque a cultura do dominante recuou e não encontrou um modo próprio de expressão tão claro quanto o modo próprio da cultura do dominado. Reparemos: o maior espetáculo do carnaval carioca provém da cultura do dominado. O maior - não gosto desta expressão “maior” -, o considerado maior escritor brasileiro, Machado de Assis, vem da raça do dominado; e assim na pintura, com Di Cavalcanti, e assim na música, desde logo com uma infinidade de exemplos.

            O choro, portanto, é uma expressão urbana, nitidamente carioca, nascido das dobras daquela cidade, da forma espontânea pela qual o povo começou a fazer uma forma de música, com uma influência branca acentuada na melodia, triste - daí choro -, que tem muito a ver com a melopéia portuguesa, com a música dos antigos degredados, com as músicas da saudade, inclusive com a tristeza do próprio fado português, que, segundo autores, nasceu no Brasil. Não é uma música brasileira, mas é nascida no Brasil.

            O fado seria a forma de música cantada pelos degredados no século XVIII, dos que estavam longe da sua terra portuguesa. Eles viviam o fado, o fadário, que era a expressão do vernáculo, de viver longe da sua terra. Daí os acertos extremamente melancólicos da sua expressão. Então, ele tem a origem portuguesa na melopéia tristonha, a presença do povo nos instrumentos simples, a presença maior, a meu juízo, da cultura negra no seu alarde rítmico e, sobretudo, na sua grande capacidade de cantar o momento que passa.

            Há um paralelismo muito interessante com o jazz. O jazz nasceu nos campos de algodão dos Estados Unidos, quando os negros escravos eram proibidos de conversar, porque a conversa parecia aos patrões abandono de trabalho ou forma de conspiração. Eles, então, começaram a descobrir formas de lamento, que, através de onomatopéias, lançavam aos ares. Eram respondidas nos campos norte-americanos por outros grupos, que, ao emitir sons, estabeleciam uma forma de código de lamentos, que estava a superar as proibições dos dominantes. E, de alguma maneira, através da expressão lamentosa, através do gutural, através do onomatopaico, o jazz começa a se infiltrar como forma de canto que depois se consolida, quando os negros, nos seus pequenos momentos de lazer, se juntavam e, escondidos, faziam uma mistura com a cultura do branco até para que a sua forma de música não fosse reprimida de modo violento pelos dominantes.

            Gradativamente, o jazz ganha a cidade. Até hoje o jazz tem a presença desses lamentos. A própria estrutura musical e harmônica do jazz, com base na blue note, como é chamada, é uma expressão melancólica de sofrimento. Então aqui o chorinho tem uma ligação mais profunda com o jazz. Por quê? Porque os negros que fizeram o jazz começaram a cantar pequenos episódios do cotidiano. E era através da inserção musical dos pequenos episódios do cotidiano que eles contavam as suas histórias entre si e, mais ou menos, faziam um relato. Não tinham, para unificar a sua luta, jornais, rádio; não tinham a possibilidade de se organizarem, não tinham sindicatos, nada. A música era a única forma mediante a qual era possível passar alguma mensagem.

            Portanto, há um conteúdo político muito interessante nas origens do jazz. Quem observar a obra de Pixinguinha, com mais de mil músicas e ainda desconhecida da maioria do povo brasileiro, vai verificar que, nos choros, canta-se o pequeno acontecimento. Posso lembrar aqui “Um a Zero”, chorinho de Pixinguinha. “Um a Zero” conta a vitória do Brasil contra a Argentina num jogo importante não me lembro de que Copa pelo ano de 1919. Assim, uma infinidade de pequenos episódios são contados na melodia daqueles choros. E, como a maior parte dos choros do seu tempo não tinham letra, acontecia através da música a tentativa de expressão de tudo aquilo que estava em torno do músico, o que torna a obra extremamente mais interessante.

            Nada disso porém teria, digamos, valor musical; poderia apenas haver o valor sociológico, antropológico, político. Acontece que Pixinguinha foi, ou é, um grande músico. Um grande músico. Ele conhecia harmonia, ele era um executante primoroso primeiro de flauta, depois de saxofone, quando a flauta já não podia mais ser tocada por suas mão trêmulas. Ele ficou com as mãos trêmulas relativamente cedo, aos cinqüenta e poucos anos, ele é um músico de alta qualidade.

            No entanto, a estrutura musical lhe permitiu um outro caminho: o caminho do organizador de orquestras, o caminho do arranjador, o caminho do orquestrador. E é nessa condição que, na década de 20, ele vai a Paris com o seu conjunto, que se chamava Os Oito Batutas, mas que, por alguma razão que se desconhece, foi para Paris com sete e não com oito membros, onde foi intitulado apenas Os Batutas. Fico a imaginar, na Paris delirante dos anos 20, esse conjunto de negros brasileiros, maravilhosos, Les Batutas - esse nome curioso -, exatamente nos anos 20, quando Paris passava por uma grande efervescência cultural. Os anos 20 são posteriores à Guerra de 1914, uma espécie de renascimento da vida européia. Há a descoberta do jazz pelo europeu - é também nos anos 20 que o jazz entra em Paris -, a presença dos ballets russos, desde 1913, a fazer uma verdadeira revolução na música, com Stravinsky, com o Pássaro de Fogo, com A Sagração da Primavera. É dos anos 23 a revolução dodecafônica na música. São anos de uma revolução fortíssima na pintura: o expressionismo está em andamento, o surrealismo começa nos anos 20. Portanto, há efervescência cultural notável nesse momento em que Pixinguinha é mandado, com o seu grupo, pela lucidez da família Guinle, a Paris. Foram para ficar um mês, ficaram 6 meses. E, nesse período, de certa forma, encantaram Paris com a qualidade da sua música. Mas quem estava ali? Esse Pixinguinha compositor só? Não! Estava ali o músico, o arranjador, o harmonizador, o orquestrador, o chefe de orquestra.

            Aliás, quando Pixinguinha volta ao Brasil dessa excursão exitosa, na década de 20, ganha, ainda dos Guinle, o seu primeiro saxofone, quando se transforma num grande saxofonista.

            Ao falar no saxofone, um pequeno parênteses para dizer que, quando se ouve o trabalho de Pixinguinha ao saxofone, não se ouve apenas um saxofonista. O ouvido musical desenvolvido encontrará no trabalho do saxofone de Pixinguinha harmonias que o igualam a qualquer harmonia da chamada música erudita. Interessante! E isso fazia com que os músicos o admirassem muito. Os músicos têm grande admiração por quem conhece harmonia, porque a harmonia é a alma da música. A melodia é o rosto da música, a harmonia é a alma da música. É claro que todos nós, em geral, consumimos a melodia, porque é acessível, é fácil, é o desenho, é o rosto. Os músicos consomem a harmonia, porque na harmonia está a verdadeira estrutura anímica, a verdadeira alma musical - e grandes compositores são os grandes conhecedores de harmonia. Pixinguinha era um grande conhecedor de harmonia. Nesse sentido, a sua capacidade de harmonizar, seja nas orquestrações, seja na sua presença como intérprete, é uma capacidade de músico da mais alta qualidade.

            Não está, portanto, o Senado brasileiro a comemorar o centenário de um compositor a mais neste País. Não é por outra razão também que os jornais, as rádios, as escolas hoje param para homenagear esse vulto.

            E quem era, ao lado de tudo que já disse, esse vulto, do ponto de vista humano? Era uma pessoa absolutamente encantadora. Nunca se lhe ouviu queixa ou agravo a quem quer que seja. Pixinguinha era um homem de silêncio, que gostava da sua bebida, tranqüilamente, que jamais incomodava os demais, que nunca se utilizou de máquinas promocionais para coisa alguma, que não entrava em disputas menores de vaidade ou de poder. E exatamente com isso, a que muitos já chamaram o Santo Pixinguinha, consegue singrar os mares da glória, sem qualquer cortejo à mesma.

            Ele é a representação de uma qualidade que se impõe por si mesma, independente de quem a possui, até da vontade de quem a possui, sobretudo independente das vaidades de seu possuidor. Pixinguinha era um ser de extrema beleza.

            Há uma passagem na vida de Pixinguinha que eu gostaria de contar aos Srs. Senadores. Ele teve um primeiro agravo cardíaco algum tempo antes de morrer. Logo depois desse agravo cardíaco, sua mulher passa mal e é levada, por coincidência, para a mesma casa de saúde onde ele estava internado. Ele então, quando soube, mandou dizer à esposa que já estava bom, que já tinha ido para casa. E durante uns dois ou três dias, todos os dias, Pixinguinha vestia o seu terno no quarto do hospital, saía do quarto e visitava a mulher como se tivesse vindo de casa, para que ela nem de longe supusesse que ele também estava enfermo e tivesse preocupações num momento tão difícil. Aliás, acontece com Pixinguinha e a mulher algo que ocorre com muitos casais que têm uma ligação profunda de amizade, de afeto, de amor: o fato de um não sobreviver muito tempo ao outro. A mulher de Pixinguinha morre em 1972 e cerca de seis meses depois ele morre, em 1973.

            Era, portanto, também no plano humano, um ser de delicadezas; dessas figuras que quem conhece admira e que, gradativamente, vão ocupando, pelo bem, o respeito dos demais. Nenhuma arrogância, nenhuma violência, nenhuma das regras tradicionais com as quais o ser humano supõe apor a sua superioridade sobre os demais.

            Do ponto de vista musical, eu diria que Pixinguinha era o Mozart brasileiro, se me querem dar o direito de uma comparação. Por que Mozart? Porque Mozart é, em toda a história da música, um músico em que a expressão artística surgia de uma certa inocência. A tristeza em Mozart é cantada de modo inocente; a alegria é cantada de modo inocente.

            Era de tal ordem a facilidade, a exuberância do temperamento mozartiano, que a música lhe fluía de modo natural, sem esforço, sem a necessidade de recursos musicais. Reparem que a obra de Mozart é música pura, é só música, não é efeito, é música, daí a sua genialidade. No seu caso, também há genialidade pela prodigalidade musical, ou seja, é um homem que com trinta e poucos anos faz mais de mil composições e escreve quarenta e poucas sinfonias, concertos e óperas em grande quantidade. Aos 14 anos, já fazia ópera como adulto, etc. Mas o dado fundamental é a inocência.

            O dado fundamental da música de Pixinguinha é a inocência e é essa inocência linda que o liga a um modo de ser do Rio de Janeiro, peculiar à cidade do princípio do século, uma cidade que ainda era amena, já era bastante pobre e vivia os primeiros momentos depois da libertação dos escravos. Ainda era, portanto, preconceituosa em muitos pontos - alguns dos quais não desapareceram com o tempo -, mas era uma cidade deliciosa, era o trópico na sua plenitude, uma cidade de árvores, repleta de vida, pelo mar, pela beleza natural, até pela facilidade da vida. A música de Pixinguinha é a representação disso tudo, através de uma paleta de inocência, de um toque de inocência que a transforma numa das músicas mais puras e delicadas dentre todas as do populário brasileiro.

            Não estamos, portanto, Sr. Presidente, apenas a comemorar o centenário de um músico que é famoso. Estamos a comemorar o centenário de alguém que é uma representação muito profunda da alma de seu País, muito profunda dos problemas de seu País, das dificuldades de seu País, mas, sobretudo, da capacidade de seu País de permanentemente criar - capacidade que não se pode tirar do povo brasileiro na sua trajetória pelo desenvolvimento.

            Pixinguinha representa, portanto, um dos momentos mais elevados da cultura deste País - entendida a palavra “cultura” no seu sentido amplo -, de toda e qualquer manifestação criativa do espírito humano, independentemente de classe social, de credo, etc. Ele é um representante da cultura, por esse lado, e da profundidade do povo, pelo outro lado.

            É, portanto, com muita emoção, com enorme respeito que, ao pedir a dedicação do tempo do nosso Grande Expediente a homenagear os 100 anos de Pixinguinha, venho a esta tribuna trazer este pequeno testemunho de alguém que, ao longo da vida, nos seus 61 anos, tendo conhecido brevemente o seu autor, aprendeu a conviver com a beleza de sua música, com a expressividade da mesma, com o seu calor e, sobretudo, com a sua capacidade de simbolizar em profundidade a beleza, a inocência, a pureza, valores de vida que, por mais que se pense estejam derrogados, ainda aí estão a nos desafiar permanentemente.

            Muito obrigado, Sr. Presidente. Muito obrigado, Srs. Senadores, pela atenção. (Palmas)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/04/1997 - Página 8339