Pronunciamento de Abdias Nascimento em 23/04/1997
Discurso no Senado Federal
HOMENAGEM AO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR - PIXINGUINHA.
- Autor
- Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
- Nome completo: Abdias do Nascimento
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- HOMENAGEM AO CENTENARIO DE NASCIMENTO DE ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR - PIXINGUINHA.
- Publicação
- Publicação no DSF de 24/04/1997 - Página 8336
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ALFREDO DA ROCHA VIANA JUNIOR, MUSICO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, INFLUENCIA, MUSICA POPULAR, MUSICA BRASILEIRA.
O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho a esta tribuna para celebrar a passagem do centenário de um homem que, sem dúvida, não só na visão dos especialistas, mas também pelo reconhecimento popular, foi um dos maiores músicos brasileiros e, principalmente, o que mais influenciou gerações.
Menino precoce e de talento peculiar, aos 9 anos de idade, com toda a inocência da infância, mas já com a sabedoria de um artista magistral, tocava cavaquinho, seu primeiro instrumento, com a mesma competência e sensibilidade que ele viria a demonstrar ao longo da vida, dominando instrumentos como o bombardino, a flauta e o sax-tenor, que o consagraram definitivamente no mesmo nível de nossos maiores artistas.
Refiro-me ao negro Alfredo da Rocha Viana Filho, o magnífico e universal Pixinguinha. Nascido no Rio de Janeiro, em 23 de abril de 1897, filho de Maria da Conceição e de Alfredo da Rocha Viana, músico e operário que trabalhava na Usina de Eletricidade da Repartição Geral dos Telégrafos. Muito cedo, ainda menino, Pixinguinha despontava para a música, anunciando sua genialidade.
Quando nasceu, 9 anos apenas haviam se passado desde a Abolição da Escravatura. Africanos e descendentes ainda viviam, portanto, sob o impacto daquela resolução tardia, conscientes de um futuro de incertezas. Pizinguim foi o controvertido apelido que recebeu da avó africana, de nome Edwirges, que, segundo ele, falava meio atrapalhado. Mas Pixinguinha, o apelido consagrado, parece ter origem na fatalidade de haver contraído bexiga, resultado da epidemia de varíola que assolou o Rio de Janeiro na virada do século.
Filho de músico e vivendo com músicos, cantores e outros artistas, o menino negro de calças curtas participava atento, em sua própria casa, das reuniões de um grupo de Chorões, dentre os quais se destacava Irineu de Almeida, Candinho do Trombone e Quincas Laranjeiras. Quando a noite avançava, o pai o mandava ir dormir. Mas, no quarto, em deleite, apurava os ouvidos e se deixava levar pela harmonia das canções, num aprendizado auditivo que mais tarde se refletiria no artista ímpar que se tornou.
Aos 13 anos, já considerado pelos veteranos uma grande promessa para o mundo musical, Pixinguinha fez sua primeira composição, um choro insinuante intitulado “Lata de Leite”. O Senador Artur da Távola pode me corrigir se as minhas colocações não estiverem fidedignas. É um verdadeiro infortúnio para mim ter que falar antes de S. Exª e da Senadora Benedita da Silva.
No ano seguinte, tendo agora a flauta como principal instrumento, nosso homenageado, que mal chegara à adolescência, foi convidado a integrar o conjunto Choro Carioca, com o qual gravou seu primeiro disco.
Esse acontecimento, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nos dá bem a dimensão do virtuosismo de Pixinguinha, uma vez que naquela época as gravações eram feitas praticamente de uma única vez, pois o material empregado não permitia reutilização. Assim, qualquer deslize de execução no momento da gravação era visto pelas gravadoras como desperdício de recursos financeiros, o que fazia do ato de gravar um privilégio concedido apenas aos melhores músicos.
Em 1929, quando as fábricas de discos começavam a consolidar a gravação elétrica, Pixinguinha, já homem de destaque no meio musical, revelou-se de forma excepcional no campo da orquestração. Contratado por uma gravadora, cabia-lhe a responsabilidade de elaborar harmonias para os diversos gêneros musicais então em voga.
Com isso, Pixinguinha tornou-se também um pioneiro do arranjo na música brasileira. Sem o seu trabalho, afirmam os estudiosos, a evolução nessa área seria mais lenta, tais as dificuldades e o pouco conhecimento, na época, dos novos recursos de que as gravadoras dispunham.
A passagem desse talentoso afro-brasileiro pela vida nacional, por intermédio da música, serviu para consolidar nosso perfil de país pluricultural com a marca indelével da presença africana. Compositor, arranjador, instrumentista e regente, a singularidade artística de Pixinguinha, reconhecida por todos os estudiosos da música popular brasileira, está exatamente na sua capacidade de influenciar e, mesmo, possibilitar a criação de outros artistas.
O escritor e crítico Sérgio Cabral, em seu livro, Pixinguinha, Vida e Obra, define com estas palavras, de forma objetiva e inquestionável, o papel desempenhado por esse grande artista: “A sua obra não se esgota nela mesma. Ao mesmo tempo que criou para as suas necessidades de artista genial, inventou também uma linguagem para os outros. Fez as suas obras e alicerçou uma cultura. É, sem dúvida, um dos pais da música popular brasileira. Assim é também um dos pais da nossa nacionalidade”.
Embora bastante sofisticado em muitas de suas composições, Pixinguinha não perdeu em momento algum, em seus choros e peças musicais de outros gêneros, a habilidade e a competência de transitar pela sensibilidade humana, mobilizando e comovendo tanto o público voltado para a música erudita quanto as pessoas simples do povo. Aos 16 anos, já era respeitado como um dos melhores instrumentistas do Rio de Janeiro.
Naquela época, morava no Bairro do Catumbi parte de uma extensa área de população predominantemente negra, mais tarde batizada de “Pequena África”. Expressão que alimenta o corpo e a alma dos africanos desde os tempos imemoriais, a música era ali praticamente onipresente. Quando perdeu o pai, em 1917, Pixinguinha já assumira de vez sua condição de músico profissional. Gravava discos, tocava em teatros e, num período em que o cinema ainda era mudo, integrava orquestras que se apresentavam nas salas de projeção acompanhando as películas.
Apesar de tudo o que significou para a música brasileira, Pixinguinha não poderia passar ileso pela vilania do racismo, muito mais explícito antes de o Brasil adotar a fachada hipócrita da “Democracia Racial”. No dia 7 de abril de 1919, o histórico conjunto “Os Oito Batutas”, do qual era fundador e componente, ao lado de outros músicos afro-brasileiros, se apresentou pela primeira vez no Rio de Janeiro. O local escolhido, o Cine Palais, era uma das casas de espetáculos preferidas pela elite, o que deixou enfurecido o maestro e compositor Júlio Reis, cuja insatisfação racista foi expressa em artigo publicado no jornal A Rua.
Isso, porém, não ficou sem resposta. Dentre as muitas manifestações de desagravo a Pixinguinha e seus companheiros de conjunto, não posso deixar de destacar as palavras do jornalista Xavier Pinheiro na Revista da Semana:”As canções que o público ouve, interpretadas pelo simpático Donga, Ernesto dos Santos; pelo inimitável flautista Alfredo Viana, o Pixinguinha; o José Alves e o Otávio Viana, que o povo conhece por Zezé e China; Nelson Alves, Raul Palmieri, Luiz Silva e Jacob Palmieri, são sempre ouvidas com atenção e muita gente vai ao cine propositadamente para ouvir esses corretíssimos intérpretes da música e da canção nacionais. (...) Deixemos de pedantismo, de exageros, caríssimo maestro - o povo, o exército, a armada, o clero, a aristocracia e a nobreza gostam de um samba, de um sambinha, de uma canção sertaneja, de um tango requebrado. (...) Hoje a aristocracia cochila quando ouve um artista cantar um trecho de qualquer ópera, ou a sua interpretação ao piano, ao violino, ao violoncelo.”
Irônico, mas pertinente, Xavier Pinheiro se revela, ao longo do seu artigo, um homem atento às mudanças do seu tempo, e continua: “Nos principais salões da nossa sociedade, as moças solteiras, as pudicas donzelas que gostam de dançar, preferem à valsa, à polca, o one-step, o tango, o samba, o sambinha, que é mais irrequieto, que satisfaz mais ao seus nervos (...)”
E Xavier Pinheiro encerra o artigo de forma categórica, expressando sua posição: “Se a aristocracia não gosta disso que vá aos salões do Jornal do Comércio (...). A injustiça de Júlio Reis foi clamorosa. O maestro perdeu uma bela ocasião de ganhar popularidade. Em vez de amesquinhar os Oito Batutas, que estão fazendo os encantos dos habitués do Cine Palais, deveria bater-lhes palmas e com a sua autorizada palavra mostrar que eles são dignos do apreço do público (...) Eles são da nossa terra, maestro!” Vivia-se naquela ocasião o fervor do movimento nacionalista, em que se destacava a valorização das manifestações culturais emanadas do povo, e que mais tarde culminaria com a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo.
Com os Oito Batutas, Pixinguinha deu continuidade ao seu processo criativo e à sua atuação musical, não só no Brasil como no exterior. Fato marcante, contudo, foi a quantidade de manifestações racistas - inclusive originárias de intelectuais à época considerados “liberais” - quando da viagem do conjunto a Paris. São, no entanto, agressões de um pensar demasiado medíocre, revelando uma pobreza de espírito tão grande que sequer merecem um comentário neste momento. Apenas frutos do complexo de inferioridade da elite brasileira, que se autopercebia como branco-européia. Mas o que buscamos aqui é celebrar o centenário de nascimento desse inigualável artista, “a flauta mágica que encantou Paris”, no dizer de Prudente de Morais Neto.
Antes, porém, em 1926, outro fato importante marcara a vida e a carreira de Pixinguinha. Depois de uma temporada de sucesso em São Paulo, de volta ao Rio de Janeiro, era criada a Companhia Negra de Revista. Compunham-na 32 atores negros, dentre eles a atriz e cantora Jandyra Aymoré, nome artístico de Albertina Pereira Nunes, futura esposa de Pixinguinha. A Companhia estreou em junho daquele ano com o espetáculo “Tudo Preto”, tendo Pixinguinha como diretor musical e, no elenco, além de Jandyra Aymoré, De Chocolat, Djanira Flora, Benedito de Jesus, Rosa Negra e Soledade Moreira. A paixão pela esposa, ao que tudo indica, fez com que Pixinguinha optasse por trabalhar ao lado dela, em detrimento das atividades dos Oito Batutas.
“Urubatã”, “Página de dor”, “Sofres porque queres” são alguns exemplos da boa música desse extraordinário compositor que trazemos na memória e, vez por outra, cantarolamos distraidamente. Mas como falar de Pixinguinha sem fazer referência à sua obra mais conhecida, uma das mais gravadas e tocadas na história da música popular brasileira? Estamos necessariamente falando do choro intitulado “Carinhoso”, composto e gravado muitos anos antes de receber a letra. Ele constitui o ponto mais alto e mais belo da musicalidade afro-brasileira.
No início de 1937, foi planejado um espetáculo beneficente a se realizar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Convidada a participar, a jovem atriz Heloísa Helena manifestou a intenção de interpretar um número inédito. Em ocasião como aquela, diante da alta sociedade local, não lhe parecia bem apresentar-se com um número já divulgado por cantores profissionais. Com essa preocupação, talvez somada a um pouco de vaidade, Heloísa Helena procurou o compositor João de Barro e lhe solicitou que escrevesse a letra para uma canção de Pixinguinha, gravada já havia algum tempo, mas pouco conhecida pelo público.
Assim, “Carinhoso” recebeu letra de João de Barro e foi cantada pela primeira vez, em 1937, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Recusada por vários intérpretes, teria sua primeira gravação na voz do cantor Orlando Silva, transformando-se num imenso sucesso que dura até os dias de hoje.
Mas o tempo faz seus aprontos com a vida. E foi assim que, em 25 de junho de 1964, o professor Alfredo da Rocha Viana Filho, o nosso Pixinguinha, foi surpreendido por um edema pulmonar que o obrigou a se submeter, por mais de 50 dias, a um rigoroso tratamento. Quando recebeu alta, não sabia se poderia voltar a tocar o saxofone, instrumento que adotara depois de abandonar a flauta. Afortunadamente, Pixinguinha ainda pôde compor e tocar sax por mais alguns anos.
No dia 17 de fevereiro de 1972, quando a Banda de Ipanema desfilava os ritmos carnavalescos pelas ruas do bairro, ritmos que tanto marcaram sua juventude e trajetória, Pixinguinha, que fora batizar o filho de um amigo na Igreja Nossa Senhora da Paz, não teve tempo de perceber outras razões para a vida. Uma vida que se resumira ao amor e à doação pela música. O povo, incrédulo e ansioso, aglomerou-se em frente à igreja. Mas, rápido e sem retorno, tudo caiu num irremediável e triste silêncio: Pixinguinha morreu... em paz.
Assim, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao comemorarmos o centenário de nascimento do inesquecível mestre Pixinguinha, estamos celebrando também a excelência e universalidade da nossa cultura. Nesse afro-brasileiro se incorpora o que de melhor este País pôde oferecer às gerações passadas e, com certeza, pode oferecer às gerações presentes e futuras. Seu companheiro do grupo O Trio, o bandolinista Pedro Amorim, resume de forma magistral a personalidade desse músico de gênio:
E o Brasil, quando descobrir que sua língua é Pixinguinha, seu valor é Pixinguinha, vai se descobrir um País muito melhor, mais justo e mais generoso do que este Brasil que tenta escondê-lo.
Isso no passado, porque hoje sua grandeza humana e artística é unanimidade nacional, segundo o Senador Artur da Távola, com quem concordo plenamente.
Pixinguinha, fundador da nossa cultura, Pixinguinha fundador da nacionalidade brasileira.
Axé, Pixinguinha! (Muito bem! Palmas.)