Discurso no Senado Federal

CRONICA DE CRUELDADE E SOFRIMENTO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL. INFLUENCIAS DA ESCRAVIDÃO, PRESENTES ATE HOJE NA MENTALIDADE, HABITOS E COSTUMES DOS BRASILEIROS. MITO DA 'DEMOCRACIA RACIAL'. OPORTUNIDADE DA ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS EM NOSSA SOCIEDADE. LOUVANDO A CRIAÇÃO DA SECRETARIA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • CRONICA DE CRUELDADE E SOFRIMENTO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL. INFLUENCIAS DA ESCRAVIDÃO, PRESENTES ATE HOJE NA MENTALIDADE, HABITOS E COSTUMES DOS BRASILEIROS. MITO DA 'DEMOCRACIA RACIAL'. OPORTUNIDADE DA ADOÇÃO DE MEDIDAS PARA PROMOVER OS DIREITOS HUMANOS EM NOSSA SOCIEDADE. LOUVANDO A CRIAÇÃO DA SECRETARIA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 18/04/1997 - Página 7986
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, BRASIL, EFEITO, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, ESCRAVATURA, IDEOLOGIA, POVO, ESPECIFICAÇÃO, VIOLENCIA.
  • ANALISE, PROCESSO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, PERMANENCIA, EXCLUSÃO, SISTEMATIZAÇÃO, VIOLENCIA, DISCRIMINAÇÃO, NEGRO.
  • ANALISE, VIOLENCIA, POLICIAL MILITAR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ESTADO DE SÃO PAULO (SP), REGISTRO, OPOSIÇÃO, SOCIEDADE, ALTERAÇÃO, LEGISLAÇÃO, JULGAMENTO, JUSTIÇA COMUM, CRIME, POLICIAL.
  • ELOGIO, CRIAÇÃO, SECRETARIA, AMBITO NACIONAL, DIREITOS HUMANOS, PRIORIDADE, OBJETIVO, REVISÃO, ORGANIZAÇÃO, POLICIA.
  • REGISTRO, EXPERIENCIA, ESTADO DO ESPIRITO SANTO (ES), ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), CONSCIENTIZAÇÃO, RESPEITO, DIREITOS HUMANOS, DEFESA, ORADOR, INCLUSÃO, DISCIPLINA ESCOLAR, CURRICULO, EDUCAÇÃO BASICA.

O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Com as graças de Olorum.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, um dos tristes recordes que o Brasil detém é o de ter sido o último País do Ocidente a abolir a escravatura. A assinatura da chamada Lei Áurea, a 13 de maio de 1888, pôs fim a mais de 350 anos de exploração da mão-de-obra africana, processo iniciado, segundo alguns historiadores, em 1530, quando o tráfico já estaria organizado e fornecendo mão-de-obra para a lavoura de cana-de-açúcar. A crônica da escravidão no Brasil, diferentemente da história edulcorada que por muito tempo se ensinou em nossas escolas, é uma crônica de crueldade e sofrimento, mas também de resistência e redenção. Episódios como o dos quilombos, símbolo maior da resistência negra nas Américas, atestam o quanto o espírito de liberdade animava aqueles homens e mulheres transformados em objetos do mais cruel sistema de dominação já imposto a um povo. A cruel repressão que sobre eles se abateu também é emblemática da mentalidade dos senhores de escravos, explícita nos instrumentos de tortura utilizados para garantir a ferro e fogo uma dominação que, não obstante, seria mais tarde descrita como "benevolente".

Tendo convivido por mais tempo do que qualquer outro povo com aquela que é descrita como a "abominável instituição", seria impossível que os brasileiros não tivessem sofrido uma forte influência da escravidão, presente até hoje na sua mentalidade em muitos de seus hábitos e costumes. A maneira, por exemplo, como os brasileiros geralmente encaram o trabalho, em especial o trabalho braçal, remete a uma época em que trabalho era coisa de escravo, pelo que brancos pobres - e até negros libertos - muitas vezes preferiam pedir esmolas do que trabalhar. Mas o principal reflexo da escravidão em nossos dias encontra-se na forma como encaramos e, mais do que isso, exercemos a violência em nosso quotidiano.

Evidentemente, a violência era o própria alicerce do regime escravista. Afinal, o elemento que mantinha o sistema era exatamente a violência, concreta ou simbólica, posta em prática no dia-a-dia dessa imensa senzala em que consistia este País. O chicote, o pelourinho, as máscaras de ferro, ao da espada, do mosquete e da garrucha, eram os instrumentos pelos quais se mantinha a dominação de um povo que constituiu, desde o Século XVII até a Abolição, a maioria esmagadora da população brasileira. Essa crônica de horrores não se esgota nos pequenos castigos impostos pelo total arbítrio de fazendeiros, feitores e capitães-do-mato, vai além, abrangendo a exploração da mendicância de escravos leprosos ou da prostituição de meninas escravas, fontes de respeitáveis famílias burguesas que estão na raiz de problemas bastante atuais, como é o caso da prostituição infantil.

Se pôs fim a séculos de escravidão oficial, a Lei de 13 de maio de 1888, da forma como foi feita, encerra também os fundamentos de uma ordem racista e autoritária, imposta aos descendentes dos africanos escravizados em nosso País. Feita para resolver antes os problemas dos brancos, preocupados em inserir o Brasil na nova ordem mundial imposta pela Revolução Industrial, a chamada Lei Áurea não se preocupou em dotar os recém-libertos de instrumentos que lhes permitissem ingressar num mercado de trabalho que se tornava mais competitivo com a imigração subsidiada de europeus acostumados ao trabalho nas fábricas. Ao mesmo tempo,, era ignorado o projeto do engenheiro afro-brasileiro André Rebouças, pelo qual a Abolição se faria acompanhar de uma reforma agrária que permitiria aos descendentes de africanos permanecer no campo, em condições de subsistir e de se incorporar com mais harmonia à nova situação de homens e mulheres livres. Some-se a isso a cláusula da legislação eleitoral adotada pela República, um ano depois, restringindo o direito do voto aos alfabetizados, e se terá em resultado a ampla marginalização social, econômica, política e cultural a que foram submetidos os negros neste País. É quando nascem os cortiços e favelas, e surgem as crianças abandonadas, que mais tarde se incorporariam definitivamente à paisagem de nossas grandes cidades. Para manter tal situação, dispunha-se da mesma ferramenta, fartamente empregada, com comprovada eficácia, durante a escravidão: a violência quotidiana e sistemática.

A polícia substitui, assim, os capitães-de-mato, enquanto o chicote e o pelourinho dão vez ao pau-de-arara, e à cadeira-do-dragão. Mas o espírito que preside esse processo é exatamente o mesmo: manter os negros - e, por extensão, os pobres em geral - no seu lugar, ou seja, na periferia, à margem do processo de desenvolvimento do País, sem condições de reivindicar um quinhão mais justo do bolo nacional. Mantém-se, dessa forma, um grau de desigualdade sócio-racial sem paralelo entre as nações que se pretendem democráticas, para o que concorreu também a elaboração de uma ideologia de dominação extraordinariamente eficaz: o mito da "democracia racial".

Desse modo, não deixa de ser curiosa a "indignação" manifestada por diversos setores da sociedade brasileira diante dos escabrosos acontecimentos protagonizados, nos últimos tempos, pela Polícia Militar em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Pará e em outros Estados. Primeiro, por não se tratar de "fatos isolados", como pretendeu uma primeira explicação oficial, mas de peças de um processo sistemático com profundas raízes fincadas na nossa História, como tentamos rapidamente expor. A única diferença, agora, foi a utilização da câmara de videoteipe como instrumento de defesa da cidadania, o que é mais surpreendente dada a característica de brinquedo de rico com que esse aparelho costumava ser visto. Também não podemos esquecer que muitas das pessoas que hoje se declaram "estarrecidas" com as chacinas de Diadema e da Cidade de Deus são as mesmas que se opõem às políticas de direitos humanos, supostamente formuladas para beneficiar malfeitores, e que costumam cobrar da polícia um tratamento violento àqueles que, aos olhos desta, infringem a lei, ou são suspeitos disso. Não é à toa que, flagrados pelas câmaras de vídeo e expostos à fúria popular, alguns policiais têm-se mostrado surpresos com a reação do público, que sempre os estimulou a "baixar o pau" nos "suspeitos" - palavras que quase sempre equivalem a "pretos e pobres"

Como, no entanto, há males que vêm para o bem, o clima de verdadeira comoção que se apossou do País após a exibição dessas fitas pelas grandes redes de TV acabou gerando um ambiente propício à adoção de medidas, não só para coibir a violência policial como, de maneira mais ampla, para promover os direitos humanos em nossa sociedade. Entre elas se encontra o projeto do Deputado Federal Hélio Bicudo, que transfere para a Justiça comum, desde a fase de inquérito, os crimes cometidos por policiais militares contra civis. Não há dúvida de que, sem a impunidade garantida por foros privilegiados, compostos quase totalmente por colegas de corporação, os policiais militares pensariam duas vezes antes de descarregar suas frustrações sobre pessoas indefesas.

Outra ação importante, que merece nossos elogios, é a criação, pelo Governo Federal, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, órgão que tem, entre suas prioridades, rever a organização, formação e ação da polícia, seja ela civil ou militar. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma louvável iniciativa do Executivo, pois é urgentemente necessário repensar o modelo de polícia vigente em nossa sociedade, fruto das milícias estaduais da República Velha, reformulado à luz da famigerada doutrina da segurança nacional do período da ditadura militar. Formados na visão do combate ao "inimigo interno", que tanto podem ser os adversários do regime quanto os negros em geral, e os pobres em particular, soldados e oficiais da Polícia Militar carregam consigo umas percepção freqüentemente distorcida da sociedade em que vivem. Uma percepção muitas vezes estimulada em cursos que, supostamente, deveriam prepará-los para defender os cidadãos, que a Constituição considera inocentes - e não suspeitos - até prova em contrário.

Na realização dessa tarefa difícil, pois que se contrapõe à visão predominante não somente no seio da polícia, mas em amplos setores da sociedade como um todo, será útil aos responsáveis pela nova Secretaria considerar experiência que vêm sendo implementadas em alguns Estados nos últimos anos. Destacam-se dentre elas o trabalho de ressocialização de presidiários que está sendo realizado na Universidade Federal do Espírito Santo pelo esclarecido reitor dessa instituição, o competente professor José Weber Freire Macedo, bem como o trabalho com a Polícia Militar do Rio de Janeiro desenvolvido, sob minha direção, pela Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras, órgão criado no segundo Governo Leonel Brizola. Trata-se de estabelecer, entre os policiais, uma cultura favorável aos direitos humanos, capaz de orientar suas ações no duro quotidiano de suas vidas profissionais.

Nossa experiência nos apontou, contudo, que não basta atuar apenas sobre a polícia. Como diz um experimentado oficial da PM do Rio, não é a polícia que ensina o policial a ser racista ou a desrespeitar os direitos humanos. Quem lhe incute tais sentimentos e atitudes é a própria sociedade, que ensina ao brasileiro, desde pequeno, quem é "suspeito" e quem não é, bem como o tratamento correspondente que lhes deve ser dispensado. Assim, faz-se necessário introduzir programas de direitos humanos e de combate ao racismo desde a escola primária, com o que se vai criar uma nova mentalidade, contrária às práticas de humilhação e de tortura, infelizmente tão comuns nas relações da polícia com os cidadãos que ela vê como de segunda classe.

A escola elementar deve constituir, por sinal, um dos pontos focais de qualquer programa de direitos humanos. Também nesse caso, é inevitável a referência ao Governo Leonel Brizola, responsável pela revolucionária - e por isso mesmo tão combatida - experiência dos Centros Integrados de Educação Pública, conhecidos pela sigla CIEPs. Conscientes da infinidade de carências de que são portadoras as crianças das classes menos favorecidas, os formuladores desse programa, dentre os quais se destacava o inesquecível Senador Darcy Ribeiro, planejaram uma escola que não se limitava a fornecer uma educação de qualidade. Nela a criança também recebia alimentação, assistência à saúde e noções de higiene, além de praticar esportes e atividades de lazer. E, o que é muito importante neste contexto: permanecendo quase o dia inteiro na escola, esses meninos e meninas ficavam menos expostos à cultura da violência, responsável pela produção e reprodução da criminalidade urbana característica de nossos dias. Infelizmente, porém, as forças do atraso e do privilégio, interessadas em perpetuar o estado de alienação e marginalização das grandes massas populares neste País, orquestraram uma campanha, amplamente difundida por certos veículos de comunicação, visando desqualificar essa experiência como "utópica" ou "demagógica". É nossa esperança que essa visão distorcida possa ser revista neste momento em que a Nação procura novas armas para combater a violência.

Assim, ao mesmo tempo em que louvamos a iniciativa do Governo de criar a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, queremos afirmar aqui nossa intenção de acompanhar atentamente o trabalho que ela se propõe realizar, e conclamamos a fazerem o mesmo todas as pessoas e organizações comprometidas com a defesa da justiça e da liberdade. Colaborando, sempre que possível, cobrando, sempre que necessário, para que a nova Secretaria não se transforme em letra morta nem venha a servir tão-somente para tapar a boca dos que defendem a liberdade, a justiça e a democracia neste País.

Termino, Sr. Presidente, enviando, desde aqui, a minha saudação a todas essas pessoas que estão em Brasília, realizando a Marcha dos Sem-Terra. Trata-se realmente de uma revolução social de grande importância e devemos depositar nela muitas esperanças, não só no que se refere à reforma agrária, mas também na necessidade de uma modificação das estruturas ainda coloniais deste País.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/04/1997 - Página 7986