Discurso no Senado Federal

REPUDIO A COMENTARIOS RAIVOSOS DO JORNALISTA ARNALDO JABOR, DECEPCIONADO E REVOLTADO COM O EXITO DOS SEM-TERRA. ANALISE DOS EFEITOS DA MARCHA DOS SEM-TERRA A BRASILIA.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • REPUDIO A COMENTARIOS RAIVOSOS DO JORNALISTA ARNALDO JABOR, DECEPCIONADO E REVOLTADO COM O EXITO DOS SEM-TERRA. ANALISE DOS EFEITOS DA MARCHA DOS SEM-TERRA A BRASILIA.
Aparteantes
Ademir Andrade, Eduardo Suplicy, Marina Silva, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 23/04/1997 - Página 8269
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • LEITURA, RESPOSTA, AUTORIA, ORADOR, REPUDIO, COMENTARIO, ARNALDO JABOR, JORNALISTA, CRITICA, MARCHA, TRABALHADOR RURAL, SEM-TERRA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), PARTICIPAÇÃO, CONGRESSISTA, SOCIEDADE, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, DEFESA, AGILIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA, JUSTIÇA SOCIAL, PAIS.
  • QUESTIONAMENTO, CONDUTA, ADOLESCENTE, CLASSE MEDIA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), PROVOCAÇÃO, FOGO, MORTE, INDIO, DESRESPEITO, AGRESSÃO, NORMAS, CIVILIZAÇÃO, CONTRADIÇÃO, PERMANENCIA, PAZ, MARCHA, SEM-TERRA, CONSCIENTIZAÇÃO, SOCIEDADE, IMPORTANCIA, ENGAJAMENTO, DEFESA, REFORMA AGRARIA.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco-PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o comentarista televisivo Arnaldo Jabor está decepcionado com o êxito da caminhada dos sem-terra e com o fantástico comício feito na Rodoviária de Brasília, que reuniu 80 mil trabalhadores sem emprego, funcionários sem vencimentos, doentes sem tratamento, que fez convergir para a estação rodoviária a insatisfação que há muito tempo se tornava incontida na consciência dos brasileiros e dos brasilienses.

O Ministro Raul Jungmann, que não tem o hábito de participar de movimentos populares, de partidos com penetração na marcha, previu que o Movimento dos Sem-Terra iria reunir um número parecido com os dos sócios do Rotary ou do Lions Club. Muito decepcionados ficaram, sem dúvida, o Sr. Ministro da Reforma Agrária, assim como Sua Excelência o Presidente da República, pois jamais esperavam que a multidão enchesse as estradas e desse, no dia 17 deste mês, uma demonstração de consciência rebelada, de um desejo de transformação pacífica - tranqüila mas com segurança -, de afirmação da vontade organizada da sociedade diante de um Governo que se encastela e se distancia do mundo real e que comete, portanto, erros de julgamento, como os prognósticos feitos pelo Ministro Raul Jungmann e outras autoridades deste Governo.

Pois bem, a tranqüilidade do Movimento, a sua organização, as suas manifestações firmes e tranqüilas, serenas, invencíveis e inarredáveis, fizeram com que alguns setores mais reacionários, que não desejam esses movimentos e se assustam e temem a massa, falassem por intermédio do Sr. Arnaldo Jabor, no dia 17 do corrente, na Televisão Globo, que vários carrapatos se reuniram aos trabalhadores sem-terra. "Carrapatos, senadores carrapatos, deputados carrapatos, e arrancava os carrapatos e julgava os carrapatos", dizia esse Sr. Arnaldo Jabor, mostrando a sua decepção, a sua revolta diante do êxito dos trabalhadores sem terra.

Passo a ler a minha resposta a essa demonstração feita através da TV Globo pelo Sr. Arnaldo Jabor:

      "Neste final de semana prolongado, com muito tempo para jogar fora, lembrei-me de Arnaldo Jabor, ex-intelectual, ex-jornalista, ex-esquerdista, ex-digno. O MST saiu pelas estradas desfalcado dos 57 participantes tombados sob o império de FHC. Nos últimos dez anos, foram mais de 850 os trabalhadores sem terra que caíram sob as balas dos jagunços a soldo dos amigos e simpatizantes de Arnaldo Jabor."

A lei protegeu todos esses criminosos, esses jagunços - essa lei que devemos respeitar. Quando a respeitamos, ela transforma em impunidade o crime contra as minorias.

      "A Igreja do Caminho, a da opção preferencial pelos pobres, rebelou-se contra o fausto, a riqueza egoísta, a subserviência da consciência ao ritual desalmado, à liturgia dos gestos vazios. Em Puebla e Medellin se inicia um movimento de uma Igreja que deseja voltar à estrada, imiscuir-se com a vida real, que deseja sofrer as durezas de uma caminhada de pés descalços, participar das agruras dos oprimidos, sentir as carências e os temores dos trêmulos desempregados, compartilhar do sereno que a noite faz peneirar sobre os sem-teto, estender as mãos da extrema solidariedade sobre os que tombaram assassinados pela fome, suicidados pelo desespero, loucos de desesperança. Eu vi suas batinas desbotadas, marrons umas, pretas outras, movidas pelos pés enfiados em sandálias, irmãs das usadas pelos trabalhadores sem terra. Solidários, marcharam unidos, sacerdotes da humildade e profetas da rebelião, todos agentes do inconformismo. Os antigos vínculos que os unem são os eternos laços constituintes da sociedade humana e, por isto, de cada ser humano particular, animal político, essencialmente social.

      O bom julgador por si julga. Jabor optou pela grana da Globo, pela exposição narcísica no vídeo, pela simpatia de Sua Majestade, o Presidente, e, para manter o seu emprego e seus aconchegos, se coisifica, faz qualquer coisa. Como uma personagem de Kafka, passa a ver o mundo, a sociedade, as relações sociais como se pertencessem ao universo pelo qual optou, o mundo dos insensíveis e dos desumanos. Por isto, o almofadinha da Globo vê, na solidariedade aos trabalhadores sem terra, gestos, amplexos, amor, entusiasmo entre "carrapatos".

      Desesperados com a invasão de cem mil "carrapatos", as minorias sem sensibilidade e sem programa regridem e agridem. Têm medo de que os sem-emprego, sem-teto, sem-aposentadoria, sem-saúde, sem-terra, sem tudo, sem nada, venham a exigir de volta o sangue que lhes foi sugado. Deliram e, em seus delírios medrosos, enxergam nos andarilhos solidários imensos "carrapatos", ávidos de justiça, sequiosos de recuperar o sangue que lhes foi roubado. Calma, Jabor. O último ato dos trabalhadores sem terra, em Brasília, será a doação voluntária de sangue para aqueles que, nos hospitais, necessitam ainda mais do que eles. Os "carrapatos" ficaram de fora da grande festa cívica, comentando raivosamente o sucesso do evento do qual não participaram por penúria e pobreza de espírito.

      O grande perigo que corre a sociedade brasileira, dominada pela mídia oficial e pela inconsciência, é a da promoção da mentira, da covardia e do cinismo triunfantes em modelo de conduta, num imperativo categórico, macunaímico, jabórico. Aqueles que desceram de carro a rua lateral da Catedral de Brasília, às dez e meia do dia 17 de abril, talvez tenham visto um velho trôpego, se equilibrando no parapeito da subida que leva ao nível da Esplanada, lutando para se aproximar de um dos três rios de gente que fluíam e confluíam em direção à Rodoviária. Esse homem da terceira idade é um dos Senadores que Jabor identifica como "carrapato". Eu fui o "carrapato" mais votado em Brasília, nas últimas eleições. Tenho um mandato de mais seis anos pela frente. Estou com sessenta e oito anos de uma vida que sei digna. Não disputarei mais nenhuma eleição. Não preciso de votos nem dos sem-terra, nem dos sem-vergonha, e, por isto, não pedirei o voto do Jabor. Estou pagando os votos que recebi sem ter comprado nenhum. Não fui lá para tirar proveito, para "carrapatear" o prestígio de ninguém. Fui, sim, para pagar, para cumprir um dever cívico, obedecendo a um imperativo de minha consciência política, social e individual. Se lá não estivesse, teria de pagar um preço muito grande, qual seja o de me igualar a um Jabor qualquer, distante, associal, apolítico e bajulador do príncipe."

O Sr. Eduardo Suplicy - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. LAURO CAMPOS - Pois não, é com prazer que o faço, ao encerrar essa primeira parte do meu pronunciamento.

O Sr. Eduardo Suplicy - Senador Lauro Campos, em primeiro lugar, quero expressar a minha solidariedade ao teor do pronunciamento de V. Exª, registrando a importância da Marcha dos Trabalhadores Sem Terra pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça. Captou bem V. Exª o que foi o sentido dessa marcha e de como ela acabou sendo recebida e, tão bem recebida, pela população do Distrito Federal, a exemplo do que ocorreu em todos os municípios, mais de cem, por onde passaram - e, se contarmos os povoados e vilas, mais de duzentos. Foi crescendo o apoio da população conscientizada cada vez mais sobre a justeza daquilo que estão propondo os trabalhadores do Movimento dos Sem-Terra. Conseguiram colocar na pauta da discussão da sociedade aquilo que é flagrante: a importância e a necessidade premente de reverter um quadro onde os 2,6% maiores proprietários da terra, de imóveis no Brasil detêm cerca de 57%, mais da metade de todas as propriedades rurais. V. Exª também faz uma crítica justa ao comentário do cineasta Arnaldo Jabor. Arnaldo Jabor, de alguma maneira, está-se tornando o primeiro porta-voz, o maior defensor do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Não importa o que o Presidente faça, está ali Arnaldo Jabor a defendê-lo. Mas até mesmo ele, tais como todos nós e a sociedade brasileira, viu a importância do Movimento dos Sem-Terra e soube registrá-la. Mas Arnaldo Jabor quis censurar, comparar a "carrapatos" os parlamentares, os dirigentes de entidades sindicais, os Senadores, que, convidados pelo Movimento dos Sem-Terra, resolveram - e, gostaria de dizer, resolvemos - estar junto a eles, expressando nossa solidariedade. Bem salienta V. Exª que não se sentiria bem se não tivesse atendido ao convite formulado por eles. Quero registrar, em alto e bom som, que, se convidado pelo Movimento dos Sem-Terra para estar junto a eles, não apenas no dia dessa Marcha, mas em tantas outras ocasiões que tenho sido convidado, teria vergonha se não atendesse ao convite, porque, nesse caso, não estaria cumprindo com meu dever. Quando, em 1976, 1977, 1978, 1979, 1980, e daí por diante, estive junto com aquele que foi sociólogo, candidato ao Senado, Senador suplente e, hoje, Presidente da República; quando com ele, Teotônio Vilela e tantos outros parlamentares estivemos juntos no ABC, nos solidarizando com os metalúrgicos que faziam greve contra os abusos cometidos pelas empresas multinacionais, que detinham todo o apoio do aparato do Estado através da polícia, já que o então governador Paulo Maluf mandava que a polícia batesse nos metalúrgicos, ou o então Ministro do Trabalho determinava a intervenção no sindicato, ou, ainda, os próprios órgãos da justiça determinavam a prisão dos dirigentes sindicais. Naquela época, os metalúrgicos pediram que muitos intelectuais e parlamentares estivessem presentes e juntos naquela batalha. Naquela ocasião, o hoje Presidente Fernando Henrique Cardoso resolveu se solidarizar com eles. Seguiu - e ele próprio testemunha isso, o chamado de Teotônio Vilela. Quando no ano passado houve aqui a homenagem ao ex-Senador Teotônio Vilela, o próprio Presidente Fernando Henrique Cardoso recordou esses momentos. Acrescentou Sua Excelência que não se sentiria bem se não seguisse Teotônio Vilela. Para a atitude do intelectual - então suplente de senador - de solidarizar-se com os metalúrgicos que galvanizavam o apoio da opinião pública, Arnaldo Jabor não teve palavras. Não disse que Fernando Henrique Cardoso estaria sendo um carrapato. Sua Excelência ali estava cumprindo com o que mandava os seus sentimentos, a sua consciência, a sua vontade de estar solidário aos metalúrgicos. Da mesma maneira, V. Exª cumpriu com o seu compromisso ao estar presente na marcha do Movimento dos Sem-Terra, Senador Lauro Campos.

O SR. LAURO CAMPOS - Muito obrigado, nobre Senador Eduardo Suplicy, pelo aparte que contribui para ilustrar e ratificar parte do meu pronunciamento e para engrandecê-lo.

O Sr. Ademir Andrade - V. Exª me permite um aparte, nobre Senador Lauro Campos?

O SR. LAURO CAMPOS - Pois não, nobre Senador Ademir Andrade.

O Sr. Ademir Andrade - Senador Lauro Campos, em primeiro lugar, desejo me congratular com a manifestação de V. Exª. Em segundo lugar, quero dizer da minha indignação com aquilo a que assisti naquela quinta-feira à noite, no Jornal Nacional, da TV Globo. Refiro-me ao pronunciamento desse - nem sei como me referir a uma pessoa tão cretina, tão mentirosa, tão cínica e tão enganadora - Arnaldo Jabor. É lamentável, Senador Lauro Campos, é realmente lamentável não termos o espaço nem o tempo que ele tem na televisão Globo. O que ele disse foi uma mentira deslavada, foi uma mentira de alguém que vende a sua palavra e que vende a sua capacidade. Portanto, a classificação de carrapato, de oportunista, de alguém que suga o sangue alheio não cabe a ninguém melhor do que a ele próprio. Esse cidadão Arnaldo Jabor não passa de um grande cretino, porque ele tenta passar ou ele passa à opinião pública nacional uma coisa que não tem nenhum fundamento de verdade. Nós estávamos no movimento porque somos parte desse movimento. Nós nascemos com esse movimento e fomos eleitos pelas pessoas que dele participam. Não fomos, como aqueles que defendem o Sr. Arnaldo Jabor, eleitos com dinheiro de UDR, ou de banqueiros, ou de multinacionais. Fomos eleitos com os votos daquelas pessoas que estavam aqui. Quem não pode estar no meio deles é ele, Arnaldo Jabor. Quem não pode estar no meio deles são aqueles a quem ele defende. Esses, sim, não podem estar no meio dos sem-terra. Um ou dois ou três Deputados do PSDB tiveram a infelicidade de participar do movimento, até porque tiveram vontade de fazê-lo. E eles foram totalmente hostilizados pela massa. A massa não os queria ali, pois não acreditava neles. Nós fomos bem-vindos. Acompanhamos as lideranças desse grande movimento do Brasil junto ao Presidente do Senado e ao Presidente da Câmara. Eles declararam publicamente que necessitavam da nossa presença e do nosso apoio. Um cidadão cretino, cínico e mentiroso como o Sr. Arnaldo Jabor, que vende mentira à televisão, ele, sim, é carrapato e deveria dizer quanto está ganhando para se prestar a esse papel ridículo de passar uma imagem falsa à sociedade brasileira. Muito obrigado.

O SR. LAURO CAMPOS - Agradeço o brilhante aparte de V. Exª que vem somar-se às opiniões por mim expendidas e fortalecê-las.

A Srª Marina Silva - Nobre Senador Lauro Campos, V. Exª me concede um aparte?

O SR. LAURO CAMPOS - Concedo o aparte à nobre Senadora Marina Silva.

A Srª Marina Silva - Senador Lauro Campos, V. Exª expõe suas idéias com paixão e coerência. No decorrer de sua vida, tem-se dedicado, do ponto de vista acadêmico, às causas sociais e à modificação das estruturas injustas deste País. Veicular nos meios de comunicação que somos oportunistas, que estávamos querendo sugar a força do Movimento Sem-Terra, foi uma atitude, no mínimo - para ser educada - de incompreensão. Fico imaginando - permita-me o Senador Romeu Tuma - se houvesse uma manifestação nacional dos policiais federais e se esses identificassem na pessoa do Senador Romeu Tuma um interlocutor para encaminhar suas demandas. Seria o Senador Romeu Tuma qualificado com esses adjetivos? Talvez não. Imaginemos então as manifestações, que muitas vezes ocorrem, da Federação do Comércio, da Federação das Indústrias, das quais parlamentares que representam o setor empresarial participam. Esse parlamentares comparecem a festas ou a seminários e encaminham as demandas democraticamente, mas nem por isso os qualificamos com esses adjetivos. São interlocutores, pessoas que representam segmentos sociais aos quais pertencem ou com os quais se identificam. No nosso caso, são esses os segmentos sociais com os quais nos identificamos. E não vejo como oportunismo o fato de termos sido convidados. Eu, se não tivesse sido convidada pelo Movimento dos Sem-Terra, estaria lá, nem que fosse a última da fila. Como não tenho "pinta" de senadora, as pessoas nem descobririam que se tratava da Senadora Marina Silva. Anonimamente, eu estaria ali presente. Em alguns momentos, se os homens não falarem, as pedras falarão; se os homens não se manifestarem, as flores se manifestarão. Por isso estávamos ali. E muitas pessoas, mesmo as que não estão engajadas nessa luta, participaram. Fiquei feliz quando o Presidente da Câmara dos Deputados assinou a bandeira dos sem-terra, um compromisso pela reforma agrária. Fiquei feliz quando o Presidente do Senado recebeu os sem-terra e, da forma sincera que lhe é peculiar, disse: aquilo que é da minha competência eu encaminharei; aquilo que não posso fazer, já digo de pronto. É dessa forma que se constitui a democracia. Não se pode fazer dessa discussão motivo para que um bando de oportunistas se promova, quando do outro lado estão aqueles que querem que as coisas aconteçam normalmente, pelo bom encaminhamento da lei. Ouvi o pronunciamento do Senador Pedro Simon. Oh! Senador Lauro Campos, o quanto já vi essa Constituição ser pisoteada! No meu Estado, 46% da população é analfabeta, e a Constituição diz que todos têm direito à educação de boa qualidade; em vários municípios, há um só médico para cuidar da saúde de mais de 30 mil pessoas, e a Constituição diz que todos têm direito à saúde. Eu poderia elencar vários casos, inclusive o dos seringueiros, que têm uma renda mensal de R$13,00 quando a Constituição diz que o trabalhador deve receber pelo menos o salário mínimo. Com estas palavras, não quero expressar nenhum tipo de rancor. Não me sinto ofendida por aqueles que disseram que a Senadora Marina Silva estava sendo oportunista no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Sinto-me parte dessa luta, porque, como já disse anteriormente, em mim nasciam os dentes quando comecei a dela participar. Eu tinha 17 anos quando, num curso da CPT, conheci o Chico Mendes. A partir daí, nunca mais deixei de fazer parte dessa luta. Quero que os meus netos e filhos sintam orgulho da mãe e da avó que tiveram, porque, naquele dia, eu também estava lá. Muito obrigada.

O SR. LAURO CAMPOS - Nobre Senadora Marina Silva, não tenho dúvidas de que V. Exª se formou nesse cadinho que faz e que cria um nível de consciência social, política e humana, manifestado por V. Exª em todos os seus pronunciamentos.

De modo que só mesmo a inveja, o rancor daqueles que não podem presenciar a conscientização do povo, a organização dos trabalhadores sem terra, a sua manifestação pacífica, somente aqueles que se exasperam diante desse movimento podem invectivar Senadores da altura de V. Exª, da dimensão do Senador Eduardo Suplicy - que estava lá, mas também estava na década de 70, nos movimentos sociais de São Paulo - ou deste modesto Senador que agora ocupa a tribuna, que, desde 1973, procurou organizar uma associação dos professores da Universidade de Brasília diante dos ataques diários, da perseguição contínua partida da reitoria militar da Universidade de Brasília.

Assim, só mesmo os olhos vermelhos de inveja e de rancor podem ver nos nossos gestos, numa solidariedade que manifestamos, algum interesse espúrio.

Muito obrigado, nobre Senadora.

Concedo aparte ao Senador Romeu Tuma.

O Sr. Romeu Tuma - Senador, agradeço a V. Exª por ter-me concedido o aparte. Não quero interromper seu brilhante discurso. Entretanto, em virtude da referência feita pela nossa querida Senadora Marina Silva sobre a possibilidade de eu vir a liderar um movimento reivindicatório dos policiais, queria aproveitar este espaço, Senadora, para homenagear os policiais do Brasil, porque ontem foi o Dia do Policial, que, na lembrança dos brasileiros, é o Dia de Tiradentes. No dia de ontem, tive a oportunidade de acompanhar as cerimônias em Ouro Preto e de fazer minhas orações e reverências ao policial brasileiro. Hoje, provavelmente por ações de alguns policiais malformados, indignos de pertencerem à instituição, esta sofre, como um todo, uma pressão e um desprezo de parte dos Governadores e de uma parte da sociedade. Se os Governadores tivessem a visão administrativa de melhor investir nas instituições policiais, pagando salários razoáveis para que a seleção fosse bem feita, provavelmente, esses policiais teriam como formação a missão que a própria Constituição lhes atribui. Todavia, quero agradecer o convite que a Senadora Marina Silva e o Senador Eduardo Suplicy me fizeram no dia do recebimento daqueles que vieram em marcha - o chamado Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Recebi o convite emocionado, Sr. Senador. Foi, inclusive, motivo de uma brincadeira simpática e carinhosa do Senador Ademir Andrade, quando, ao lado dos Senadores Eduardo Suplicy e Marina Silva, convidavam-me para comparecer à porta da igreja a fim de receber o Movimento. Não fui, entretanto, porque a CPI dos Títulos Públicos havia me designado para, juntamente com o Senador Roberto Requião, ir ao Paraguai em missão de investigação daquela Comissão. Contudo, de longe, de Assunção, acompanhamos toda a movimentação, todas as entrevistas das autoridades com os Líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Assim, aqui fica o meu agradecimento à Senadora Marina Silva pelo convite e à sua referência à minha pessoa. Espero, qualquer dia desses, liderar os policiais cuja profissão abracei por mais de quarenta anos, permanecendo na ativa, apenas licenciado para exercer minha atividade de Senador.

O SR. LAURO CAMPOS - Agradeço a V. Exª o aparte tão proveitoso que acaba de proferir a Senadora Marina Silva.

Sr. Presidente, consulto à Mesa para saber de quantos minutos disponho.

O SR. PRESIDENTE (Carlos Patrocínio) - Dispõe V. Exª de mais 15 minutos.

O SR. LAURO CAMPOS - Pretendo não usá-lo até o término.

Sr. Presidente, existe um outro tema que está relacionado com este que acabo de tratar. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra retornou de Brasília, deixando cerca de mil de seus representantes.

Não houve uma agressão; não houve um desregramento por parte deles; não houve nenhuma contravenção. Nada! Uma marcha de seres morigerados, de seres civilizados. Ao deixarem Brasília, cinco brancos que se intitulam civilizados, educados, treinados no nosso sistema educacional, às 5 horas da madrugada, aproveitaram a presença de um índio que dormia, descansava da sua luta pela reivindicação de um pedaço de terra como membro dos Pataxó Hã-Hã-Hãe do sul da Bahia e fizeram aquilo que consideram uma brincadeira: despejaram um líquido, álcool ou tíner em cima do ser humano que ali dormia e puseram fogo no seu próximo.

Esses são os civilizados, são aqueles que têm um sistema jurídico, um sistema educacional, um sistema de saúde para protegê-los e resguardá-los!

Mais que isso: há poucos dias, um companheiro deles, da mesma faixa etária, da mesma extração social, passou em cima de um pobre pedreiro na Península Norte. Esse jovem não prestou socorro à vítima, e a juíza disse que essa falta de socorro não tinha importância porque a vítima já estava morta! Essa mesma juíza afirmou que aquele jovem era muito bonito. Os bonitos não vão para a cadeia, estão fora do alcance da lei. Em que País vivemos? Que sociedade cínica, parcial, excludente e desalmada é esta? Sim, vamos obedecer à lei, sim, a esta que nos resguarda e que nos protege.

Nos anos 50, li um livro de Sociologia Criminal, escrito por Southerhan, intitulado White Collar Criminality, "A Criminalidade do Colarinho Branco." Porém, o autor desse conceito não considera como crime do colarinho branco apenas os crimes financeiros. Esse conceito foi deturpado aqui no Brasil. De acordo com o sociólogo do Direito Penal que fez essa pesquisa e emitiu esse conceito, esses crimes todos estão na mesma conceituação. Nos Estados Unidos, ele mostrou a dificuldade para acionar a polícia nesses crimes e como ela própria é tendenciosa. Mostrou como todo o sistema protege os crimes da burguesia, os chamados crimes do colarinho branco. Portanto, a lei não é para todos.

O índio, vítima dessa barbaridade em Brasília, é companheiro de Ana Lídia, uma criança de cerca de oito anos, que foi violentada, trucidada, por três rapazes da altíssima sociedade de Brasília, que até hoje se encontram, uns premiados, e muito premiados, e outros totalmente impunes. Há também o caso do filho de um coronel do Exército, que assassinou e queimou, lá no campus universitário, nossa ex-aluna da Universidade de Brasília; o rapaz também não responde qualquer processo, e está ao abrigo dessas instituições desumanas, perversas, parciais.

Pois bem, um índio por mês, ou um pobre por mês, ou um negro por mês, não importa, são vítimas do mesmo tipo de violência. De acordo com o Hospital de Queimados de Tatuapé, em São Paulo, mensalmente uma pessoa é queimada em circunstâncias idênticas àquela que vitimou Galdino Jesus dos Santos em Brasília.

Lembro-me do Professor Darcy Ribeiro contabilizando os mortos: cinco milhões de índios foram trucidados no Brasil e na América.

Antíqua, por exemplo, é uma ilha do Caribe em que não sobrou um índio sequer, mortos que foram para dar lugar ao trabalho forte dos negros arrancados, seqüestrados da África para fazerem a riqueza das plantations americanas.

Vamos obedecer às leis! Uma lei aprovada pela Câmara, na democratíssima Filadélfia, no princípio do século passado. Vamos obedecer a essa lei, que criou prêmios de U$100 por um escalpo de um índio adulto, U$50 pelo escalpo de uma índia e U$20 pelo escalpo de uma criança índia pago a qualquer cidadão norte-americano honesto.

A Assembléia da Filadélfia fez baixar esta lei que criou este prêmio. Vamos obedecer a esta lei! E é óbvio que, nesta ocasião, o mercado livre capitalista, respeitável instituição, permitiu que se vendessem e se comprassem seres humanos, que a lei afirmou que eram coisa - res. Transformou-os em coisas, sem direito algum, para que fossem melhor comprados e vendidos, de acordo com a legislação vigente na Inglaterra, até cerca de 1810; nos Estados Unidos, até 1865; no Brasil, até 1888.

Vender seres humanos, comprar seres humanos - a lei assegura esse direito, garante essa ordem. E quem se rebelar contra ela obviamente merece ser condenado, merece ser apodado por aqueles que obedecem à ordem jurídica, por mais injusta que seja.

Ora, não há dúvida alguma de que tem razão Rudolf von Jhering, por exemplo, na sua obra A Luta pelo Direito, e todos aqueles que mais profundamente que Von Jhering perceberam que a luta pelo direito é a luta de uma classe social por novos direitos. É isso que dinamiza o mundo jurídico. Subverte, sim, as leis. E se fôssemos obedecer à propriedade privada, que propriedade privada seria essa?

A burguesia destruiu a propriedade privada feudal hereditária, nobre, para impor a propriedade privada capitalista, burguesa. Na União Soviética, mesmo no tempo do socialismo real, era possível que se tivesse a propriedade privada dos meios de consumo, dos artigos de uso, de uma casa na cidade, de uma dacha, de uma casa no campo e ainda de uma área de terra garantida pela Constituição soviética, desde que não fosse utilizada para empregar trabalho assalariado e, portanto, se transformar em fonte de lucro e de propriedade capitalista.

Portanto, existem várias formas de propriedade e de propriedade privada e, obviamente, não podemos sacralizar essa propriedade e torná-la intocável.

A Constituição afirma, sim, o direito de propriedade, mas o subordina à sua utilização social, e é obviamente anti-social o latifúndio improdutivo; é anti-social aquela propriedade que faz concentrar - como lembrou o Senador Suplicy - em 1% dos proprietários cerca de 43% das propriedades, excluindo, portanto, dessa estrutura da propriedade, o acesso do trabalhador à terra e às condições de vida.

Excluindo, portanto, dessa estrutura da propriedade o acesso do trabalhador à terra e às condições de vida.

Deveria também ser garantido o direito à vida, conforme estabelece a Constituição. No entanto, não apenas o Pataxó hã-hã-hãe foi desrespeitado em seu direito à vida; no período de 1994 a 1995, 123.716 casos de violência, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário, ocorreram no Brasil; dos 215 grupos indígenas existentes no País, 113 foram objeto de violência nos anos a que nos referimos. Entre esses casos, há tentativas de homicídio, ameaças de morte, lesões corporais, abusos de autoridade, prisões ilegais, violações de domicílio, ameaças de prisão, tortura e crimes contra a honra. Nos dois últimos anos, 233 índios foram vítimas fatais de violência, segundo dados da própria Funai. Portanto, é uma violência institucionalizada, acobertada por um sistema legal, jurídico e constitucional iníquos.

De acordo com S. Tomaz de Aquino, na sua Suma Teológica, qualquer cidadão tem o direito de se rebelar contra as iniqüidades do Governo e as injustiças da lei.

O Sr. Eduardo Suplicy - V. Exª me permite um aparte?

O SR. PRESIDENTE (Carlos Patrocínio) - A Mesa observa a V. Exª, Senador Lauro Campos, que seu tempo já está esgotado e solicita que não mais conceda apartes.

O SR. LAURO CAMPOS - Infelizmente tenho de me privar do aparte do nobre Senador Eduardo Suplicy que, sei, iria engrandecer meu modesto pronunciamento.

Termino, portanto, dizendo que foi muito emblemático esse acontecimento que levou a vida do índio Pataxó porque foi praticado por aqueles civilizados, educados, bem nutridos, enquanto os trabalhadores sem-terra tão ameaçadores, selvagens, truculentos que tanto abalaram o Poder constituído, voltaram tranqüilamente ao leito de onde haviam partido.

Nós que nos julgamos brancos, que nos julgamos civilizados deveríamos nos envergonhar profundamente diante dessa lição de civilização real, de humanismo realizado, de solidariedade e de amor ao próximo.

Era o que tinha a dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/04/1997 - Página 8269