Pronunciamento de Marina Silva em 18/04/1997
Discurso no Senado Federal
REPERCUSSÕES PARA A DEMOCRACIA DA MARCHA DOS SEM-TERRA. LEGITIMIDADE DA BANDEIRA DA REFORMA AGRARIA, QUE SE TORNOU UM CONSENSO NACIONAL. COMPROMISSOS DOS PARTIDOS DE ESQUERDA COM OS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA E SUAS CAUSAS, A PROPOSITO DAS ACUSAÇÕES INFUNDADAS DE ALGUNS SETORES DA IMPRENSA. AUDIENCIA DE PARLAMENTARES E REPRESENTANTES DOS SEM-TERRA, HOJE, COM O PRESIDENTE DO SENADO, SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES E O PRESIDENTE DA REPUBLICA, SR. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
- Autor
- Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
- Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
REFORMA AGRARIA.:
- REPERCUSSÕES PARA A DEMOCRACIA DA MARCHA DOS SEM-TERRA. LEGITIMIDADE DA BANDEIRA DA REFORMA AGRARIA, QUE SE TORNOU UM CONSENSO NACIONAL. COMPROMISSOS DOS PARTIDOS DE ESQUERDA COM OS TRABALHADORES RURAIS SEM-TERRA E SUAS CAUSAS, A PROPOSITO DAS ACUSAÇÕES INFUNDADAS DE ALGUNS SETORES DA IMPRENSA. AUDIENCIA DE PARLAMENTARES E REPRESENTANTES DOS SEM-TERRA, HOJE, COM O PRESIDENTE DO SENADO, SENADOR ANTONIO CARLOS MAGALHÃES E O PRESIDENTE DA REPUBLICA, SR. FERNANDO HENRIQUE CARDOSO.
- Publicação
- Publicação no DSF de 19/04/1997 - Página 8129
- Assunto
- Outros > REFORMA AGRARIA.
- Indexação
-
- ANALISE, IMPORTANCIA, MARCHA, SEM-TERRA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), EFEITO, LEGITIMIDADE, REFORMA AGRARIA, ADESÃO, POPULAÇÃO.
- CRITICA, IMPROPRIEDADE, ACUSAÇÃO, IMPRENSA, APROVEITAMENTO, CLASSE POLITICA, APOIO, SEM-TERRA, REGISTRO, ORADOR, COMPROMISSO, LUTA, REFORMA AGRARIA, JUSTIÇA SOCIAL.
- ELOGIO, POLICIA MILITAR, DISTRITO FEDERAL (DF), PAZ, SEGURANÇA, MARCHA, SEM-TERRA, CAPITAL FEDERAL.
- EXPECTATIVA, ATUAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, REALIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA.
A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, a exemplo do que já fizeram outros Colegas, quero registrar o acontecimento de ontem, que foi, para mim, uma das maiores manifestações dos últimos cinqüenta anos e que trouxe, certamente, uma grande contribuição para a Nação e para a democracia brasileira.
Sr. Presidente, quero dizer que o que assistimos ontem aqui na Capital Federal foi, acima de tudo, o encontro do Brasil consigo mesmo. Um encontro talvez para resgatar uma dívida quase que ancestral do nosso País para com a questão da democratização da terra e da propriedade.
Quero também dizer que a questão da reforma agrária não pode ser encarada da maneira como alguns setores do Governo, às vezes, querem demonstrar para a sociedade, ou seja, como uma bandeira ultrapassada historicamente ou então que se trata de coisa de radicais atrasados.
A reforma agrária é, acima de tudo, uma bandeira legítima da sociedade brasileira, dos milhões de trabalhadores sem terra que sabem que a única forma de ter acesso e dignidade é através da democratização da terra. É também uma bandeira que precisa ser resolvida, levando em conta questões muito objetivas.
Sr. Presidente, Srs. Senadores, do ponto de vista político, o Governo já tem possibilidade de realizar a reforma agrária. Se antes ela era vista como um tabu, se antes havia um enorme preconceito na sociedade identificando a reforma agrária como coisa de radicais, hoje ela é consenso nacional. Esse consenso é um presente que foi dado para o Governo através do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Foram eles que pautaram, pela sua coragem e ousadia, na sociedade, nos meios de comunicação, a questão da democratização da terra.
Hoje, a reforma agrária ganhou uma fantástica legitimidade e uma fantástica adesão, de forma que qualquer governo poderá realizá-la. Esse Governo deve agradecer ao Movimento dos Sem-Terra por essa legitimidade que conseguiu dar a essa bandeira tão importante.
A reforma agrária tem um conteúdo social e político muito forte; diz respeito a questões muito objetivas da vida do povo brasileiro, da sociedade brasileira; tem a ver com os problemas ambientais que enfrentamos; tem a ver com o inchamento das periferias dos grandes centros, para onde as pessoas se dirigem quando saem das suas pequenas localidades, em busca de oportunidades.
Se antes as cidades tinham a possibilidade de acolher aqueles que vêm sendo despejados pela falta de oportunidade na terra ou por não terem a terra, mesmo que na informalidade das grandes cidades, hoje isso não é mais possível, é um movimento de bate e volta. Por isso que cala tão fundo nas pessoas a idéia de que a única forma de se conceder inserção social para milhões de brasileiros será através de uma proposta justa de reforma agrária, incluindo todos os mecanismos para que ela possa dar as respostas sociais, como a questão da presença da saúde, da educação, da assistência técnica e de mercado, para absorver os produtos ali produzidos.
Enfim, a reforma agrária ter a ver com coisas muito sérias, principalmente com a construção da nossa democracia, porque é colocar o dedo numa ferida que muitas vezes parecia intocável: o regime de propriedade da sociedade brasileira. E isto, graças a Deus, estamos conseguindo com um apoio fantástico desta mesma sociedade.
Há outros aspectos, Sr. Presidente. Não vou aqui repetir a crítica que V. Exª mencionou quanto à forma com que fomos colocados em alguns meios de comunicação, como se estivéssemos pegando carona no Movimento. Eu fiquei imaginando o contrário.
Suponhamos que V. Exª, que enfrenta os latifundiários, o assassinato de trabalhadores no sul do Pará, que tem uma identidade com essa luta, não estivesse na manifestação dos sem-terra. O que diriam os meios de comunicação? Que até V. Exª não estava presente! A crítica, com certeza, ocorreria.
Fico imaginando eu, que, aos 17 anos, conheci Chico Mendes num treinamento da CPT - Comissão Pastoral da Terra - e a partir daí bebi dessa água e nunca mais me afastei dela, a luta pela demarcação das reservas extrativistas, contra a expulsão dos milhares de seringueiros que vi serem expulsos, inclusive alguns de meus familiares, e que cresci - como se diz na minha terra - com os dentes nessa luta, se eu não estivesse lá, o que diriam os meios de comunicação? Fico pensando também se pessoas como o Lula, que tem uma identificação com os problemas sociais mais profundos, que é um sindicalista, que se construiu na luta dos trabalhadores por melhoria de condições de vida, por democracia e por justiça social, se não estivéssemos lá? Com certeza, as críticas também ocorreriam.
Mas fomos taxados como alguém que pega carona. Eu não me senti pegando carona. Eu me senti ajudando a remar o barco. Eu aprendi a remar. Não sei dirigir, mas me senti ajudando a remar o barco da reforma agrária; talvez com um remo muito pequeno, mas me senti feliz pela contribuição que posso dar da tribuna desta Casa.
Portanto, a forma não me ofende. Ofender-me-ia mais se ali estivesse um hiato da nossa presença, se estivéssemos ausentes, pois seria impossível estarmos ausentes. Porque, no meu Estado, ganhar uma eleição de Senadora, sendo uma simples professora secundária, sendo filha de seringueiros, não sendo parte de nenhuma família tradicional, enfrentando alguns adversários - cada um tem uma rádio, um jornal e uma emissora de TV, e eu não tinha nem um megafone, fazendo uma pequena ironia - não é alguém que ganha as eleições de presente, é alguém que ganha porque tem identificação com essa luta. Nós não estamos tirando dividendos, estamos devolvendo aquilo que as pessoas esperam de nós, porque nos colocaram aqui por uma única coisa: o compromisso que temos com essas bandeiras.
Espero que aqueles que querem identificar na nossa atitude qualquer tipo de oportunismo nos perdoem, por favor, a crítica, porque não tem nenhuma separação entre aquilo que dizemos, aquilo que fazemos e aquilo que demonstramos na acolhida ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.
Para mim, ficou de lição, daquela grande manifestação pacífica - faço aqui o registro - a forma como os policiais se comportaram na segurança do movimento. Estavam distribuídos em vários grupos, sem nenhum tipo de cara feia para o Movimento, eu inclusive cumprimentei alguns deles, e, num momento de tanta violência policial, de tanto desrespeito para com os direitos humanos, fiquei feliz que o Governo do Distrito Federal, através da sua PM, da orientação que me parece que foi muito bem dada, teve uma resposta gratificante de ver como a segurança pode funcionar para a segurança da democracia, inclusive para a segurança dos interesses legítimos da sociedade brasileira. Faço este registro, porque observei que houve uma compreensão e um trabalho muito feliz por parte daqueles que fizeram a segurança.
Mas faço questão de resgatar aqui também uma outra coisa, Sr. Presidente. O que nos deixa esse movimento? Deixa-nos a idéia de que, se formos capazes de não querer que nas disputas se instale sempre a velha rinha, o derrotado e o vencedor, de não querer aquela velha idéia de que, para construir o que quero construir, devo desqualificar e destruir o meu interlocutor, acho que esse movimento foi capaz de construir, e espero, a partir daí, uma nova relação, a relação que parece estar banida da postura de alguns políticos, de algumas atitudes no Brasil, que é buscar construir consensos. A reforma agrária é um consenso construído a partir da luta do Movimento dos Sem-Terra, da adesão fantástica da sociedade brasileira. É um consenso construído a partir de todos nós, que sabemos que é importante para a justiça social no Brasil.
Também observei que alguns colegas, mesmo que não diretamente, dizem que alguns partidos estão querendo se aproveitar do Movimento dos Sem-Terra.
Lembro que, quando o Movimento era desqualificado nos meios de comunicação, era identificado como coisa de radicais, quando o Movimento não estava com essa aceitação social que tem hoje, graças a Deus e inclusive aos meios de comunicação, as pessoas diziam que era coisa da esquerda, era coisa do PT, que o PT que estava por trás, a esquerda estava por trás.
Hoje, que o Movimento tem toda essa legitimidade, graças a si próprio, porque sempre teve autonomia, hoje as pessoas dizem que esses partidos estão querendo se aproveitar do movimento.
Ora, Sr. Presidente, se antes éramos nós que fazíamos o Movimento, ele não existia, era como se fosse algo criado para dar uma fachada e com isso contrapor-se ao Governo. Hoje, que ele existe, como sempre existiu, as pessoas dizem que estamos sendo oportunistas. É preciso que ter coerência, e lamento que seja entendido dessa forma.
O Movimento existe, tem a sua autonomia, a sua legitimidade, e os partidos, simplesmente, desde o início, colaboraram, ajudam, em alguns momentos até com algumas diferenças.
Sr. Presidente, concluo o meu breve pronunciamento, dizendo que hoje fomos recebidos, um grupo de Parlamentares, pelo Presidente do Senado e pelo Presidente da Câmara dos Deputados, juntamente com as lideranças dos sem-terra. Foi um ato importante para chamar o Legislativo à responsabilidade para aquilo que é de sua competência. Daqui a pouco, eles terão uma audiência com o Presidente da República. E espero que dessa audiência tenhamos os resultados que a sociedade está esperando, para que essa não seja registrada apenas como uma grande manifestação, belíssima, aonde cada brasileiro vai, faz o seu mea-culpa e volta para casa satisfeito, como se já tivesse dado a sua colaboração.
Ontem, o Sr. João Pedro Stédile, líder dos sem-terra, depois do encontro do Movimento com o Governo, disse que não queria que a sociedade, que os políticos ficassem apenas "puxando o saco" dos sem-terra: queria que cada um fizesse aquilo que eles estão fazendo, que dessem a sua parcela de contribuição para que os problemas sociais deste País sejam resolvidos.
Espero que aquele que tem uma responsabilidade bem maior do que qualquer um de nós, o Presidente Fernando Henrique Cardoso, pelo conhecimento que tem dos problemas fundiários deste País, pelo conhecimento que tem dos problemas sociais deste País, dê a resposta de que o Brasil precisa, e que esse diálogo seja o início de um grande mutirão de trabalho do Executivo em função da reforma agrária.
Reforma agrária, neste País, não se faz com sobras de Orçamento, não se faz apenas com palavras, e às vezes até com boas intenções. Há que ter dinheiro para a sua realização, há que ter determinação administrativa positiva e operativa no sentido de fazer com que ela aconteça.
É por isso que o Brasil espera muito do que aconteceu ontem, do que vai acontecer durante todos estes dias, mas, com certeza, a responsabilidade maior é do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Espero que o sociólogo Fernando Henrique Cardoso dê a resposta de que o Brasil precisa, pelo conhecimento, mas, acima de tudo, porque o movimento é legítimo e deve ser ouvido.
O nobre Senador Eduardo Suplicy disse que estão falando que a Oposição quis surfar na onda dos sem-terra. Mas isso não é problema. Prefiro surfar na onda do que tentar reprimi-la, porque senão teríamos uma grande avalanche, seria destruidor tentar conter essa onda. Mas, quando nós nos permitimos aceitá-la e até gozar da maravilha e da delícia que é poder surfar nela, nós podemos construir muitas coisas.
Para mim, não há problema quanto a isso; estamos ajudando de alguma forma, mesmo que de maneira às vezes insignificante, mas estamos colaborando para que a reforma agrária aconteça.
Espero que a grande lição fique. O Brasil precisa construir os consensos, e o consenso da reforma agrária está construído. O Brasil precisa, agora, realizar, do ponto de vista prático, o consenso que já está construído pela sociedade, independentemente da política e dos políticos.
Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.
Muito obrigada.