Discurso no Senado Federal

TRABALHO INFANTIL, EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTIL E DIREITOS DAS CRIANÇAS. CUMPRIMENTO DA CONVENÇÃO SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA DA ONU.

Autor
Marluce Pinto (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RR)
Nome completo: Maria Marluce Moreira Pinto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • TRABALHO INFANTIL, EXPLORAÇÃO SEXUAL INFANTIL E DIREITOS DAS CRIANÇAS. CUMPRIMENTO DA CONVENÇÃO SOBRE DIREITOS DA CRIANÇA DA ONU.
Publicação
Publicação no DSF de 29/04/1997 - Página 8733
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, PREJUIZO, SOCIEDADE, FALTA, PROTEÇÃO, INFANCIA, REGISTRO, ESTATISTICA, ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT), FUNDO INTERNACIONAL DE EMERGENCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFANCIA (UNICEF), TRABALHO, CRIANÇA, EXPLORAÇÃO SEXUAL.
  • ANALISE, COMPROMISSO, PAIS ESTRANGEIRO, BRASIL, RATIFICAÇÃO, CONVENÇÃO, DIREITOS, CRIANÇA, ELOGIO, FUNDO INTERNACIONAL DE EMERGENCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFANCIA (UNICEF), LEGISLAÇÃO SOCIAL, ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.
  • REGISTRO, ESFORÇO, COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUERITO (CPI), EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA, PRESIDENCIA, ORADOR, IMPEDIMENTO, ABUSO, DIREITOS HUMANOS.

A Srª MARLUCE PINTO (PMDB-RR. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, as crianças de ontem hoje comandam os destinos da humanidade. Esse é um ciclo irreversível para o qual devemos atentar quando se trata da questão dos cuidados que as crianças merecem. Crianças em crescimento são ávidas por conhecer o mundo, seus mecanismos, suas maravilhas, seus costumes e suas regras.

A facilidade com que a criança absorve as informações ao seu redor dá-nos a impressão de que esses conhecimentos literalmente alimentam o seu desenvolvimento, seja na escola, no lazer, no contato com os pais, professores e outras crianças.

Todavia, Sr. Presidente, vemos agora uma realidade que não só agride a criança como agride a todos quantos têm consciência de que o mundo amanhã será por elas dirigido.

Que aprendizado pode uma criança extrair de um trabalho que a impede de brincar ou estudar?

Que aprendizado um menino ou uma menina retiram de prendas domésticas exclusivamente?

O que pode aprender uma criança que se ausenta do convívio familiar para gerar uma pseudo-renda que, no fundo, sabemos irrisória e insignificante?

Que horizontes pode ter uma criança que passa por experiências de um trabalho escravo que suga seus sonhos e ilusões?

Que terríveis lições uma criança prostituída aprende todos os dias?

Qual a verdadeira extensão dos males que causam à criança a fome e a desnutrição somadas às cinco, oito, 10 e até mesmo 15 horas de trabalho diário, seja ele forçado ou não?

Essas, meus nobres Pares, são formas as mais implacáveis de verdadeiro atentado aos direitos da infância, as quais, infelizmente, são corriqueiras no mundo atual. Aqui e onde quer que existam crianças, elas existem, seja em países do Primeiro ou do Terceiro Mundo.

A questão do trabalho infantil nos toca profundamente a emoção justamente por colocar as pessoas face a face com as conseqüências humanas de um mundo que está-se tornando cada vez mais desigual.

Um trabalho da Organização Internacional do Trabalho, com o respaldo do Unicef, mesmo não confirmando um número próximo da realidade aviltante de crianças exploradas no mercado de trabalho mundial, diz que algumas centenas de milhões estão neste contexto, de alguma forma ajudando a pagar dívidas contraídas por uma geração anterior.

Exatos 50 anos e quatro meses atrás, em 11 de dezembro de 1946, o Unicef foi oficialmente criado com o objetivo, na época, de assistir às crianças do pós-guerra que aniquilou a Europa e deixou um rastro de dor e desesperança em centenas de milhares de órfãos e outros tantos menores necessitados de atenção especial.

Com uma conotação humanística revolucionária, os resultados do trabalho do Unicef foram, então, requisitados por outros países em desenvolvimento e que também passaram a exigir um tratamento especial às suas crianças.

Daí para cá, cada vez mais a humanidade se conscientiza de que é necessário prover a criança com o mesmo conjunto de direitos dos adultos, sejam eles civis, políticos, sociais, culturais ou econômicos.

Essa convicção, Sr. Presidente, está expressa na Convenção sobre os Direitos da Criança, ocorrida em 1989.

Em 2 de setembro de 1990, logo após sua adoção pela Convenção da Assembléia Geral das Nações Unidas, foi transformada em lei internacional.

Aliás, Sr. Presidente, é importante relembrar o famoso Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, realizado nos dias 29 e 30 de setembro de 1990, promovido pelas Nações Unidas. Considerada a maior reunião de líderes mundiais já registrada, foram 159 os países representados, 71 dos quais pelos próprios Chefes de Estado ou de Governo. Na ocasião, e o gesto obteve repercussão mundial, não só endossaram vigorosamente a Convenção sobre os Direitos da Criança como assinaram, conjuntamente, uma Declaração Mundial sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança, acompanhado de um Plano de Ação para sua definitiva implementação na década de 90.

Hoje, passados sete anos desse encontro, à exceção dos Emirados Árabes Unidos, das Ilhas Cook, de Omã, da Somália, da Suíça e dos Estados Unidos da América, a Convenção foi ratificada por todos os demais países membros, inclusive o Brasil.

Dessa forma, Sr. Presidente - existem termos de compromisso -, podemos afirmar que 96% das crianças em todo o mundo vivem em países que estão, legalmente, obrigados a proteger os direitos de suas crianças. Direitos inalienáveis, eu diria, como aqueles que lhes garantem a sobrevivência e o desenvolvimento pleno; ao melhor padrão de saúde possível. Inclusive, o direito de receber essas informações. Direitos tão simples como o de possuir imediato registro após o nascimento e ostentar uma nacionalidade, o direito de brincar e o direito de receber proteção contra todas as formas de exploração e abuso sexual.

Entretanto, Sr. Presidente, bem conhecemos a distância entre o que está escrito numa convenção e a realidade que nos abraça.

Tais mudanças de fato só ocorrerão no momento em que atitudes políticas e sociais forem rigorosamente e conscientemente tomadas; melhor ainda, quando as próprias crianças, agentes primeiras desse processo, tiverem pleno conhecimento desses direitos e passarem a exigir que sejam respeitados.

Contudo, é gratificante saber que, mesmo engatinhando tais direitos, alguns deles já são uma realidade.

Dados do Unicef comprovam que, até 1996, de 49 países analisados após a ratificação do compromisso, 14 já haviam incorporado alguns princípios em suas constituições e 35 aprovado leis com o espírito da convenção.

Mais salutar ainda é sabermos que 14 desses países colocaram os direitos da criança em seus currículos escolares, numa clara forma de iniciar o processo básico de informação desses direitos à própria criança.

Nesse contexto, nosso Brasil recebeu aplausos pelo artigo inserido em nossa Constituição, que afirma ser "dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança e ao adolescente, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à nutrição, à educação, à recreação, à preparação vocacional, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à solidariedade por parte da família e da comunidade, acima de tudo poupando-os da negligência, da discriminação, da exploração, da crueldade e da opressão".

Outro fato constante do Relatório do Unicef e que enobrece e dignifica nosso povo, foi a aprovação, em 1990, do Estatuto da Criança e do Adolescente. Elogiado e visto como exemplo a ser seguido, uma vez que insere o trabalho infantil dentro do contexto da Convenção sobre os Direitos da Criança, mais do que nunca temos o dever e a obrigação de fazer valer, urgente e decididamente, todos os seus artigos, parágrafos, alíneas e incisos.

Positivo também, Sr. Presidente, fruto desses passos iniciais para uma conscientização mundial voltada aos Direitos da Criança, foi o Congresso Mundial contra a Exploração Sexual e Comercial da Criança, realizado em Estocolmo em agosto de 1996, e a Conferência Internacional sobre o Trabalho Infantil programada para outubro deste ano em Oslo, na Noruega.

Por si só, a obrigatoriedade a que estão sujeitos os países que ratificaram a convenção de enviar bianualmente um relatório específico sobre as medidas tomadas em benefício da criança, de alguma forma contribui para uma conscientização constante do problema. Além disso, a convenção exige que as famílias, a sociedade e os governos empreendam ações que visem o cumprimento dos direitos da infância e da adolescência sem quaisquer discriminações racial, religiosa, política ou poder aquisitivo.

Muito, pelo menos na teoria, já vimos ser feito. Muito mais ainda, principalmente na prática, necessita e é urgente que se faça.

Números comprovam, infelizmente, que apenas nos países em desenvolvimento 13 milhões de crianças menores de cinco anos continuam a morrer a cada ano. Dessas, 9 milhões poderiam estar vivas se providências de baixo custo, como imunizações e antibióticos, fossem aplicadas.

No mundo inteiro, independentemente da situação econômica dos países, a criança sofre as mais absurdas violências, seja no abuso do trabalho, seja na omissão de seus mínimos direitos.

Temos estatísticas e relatórios que estarrecem ao sabermos que, nos dias de hoje, possam existir.

No Japão e na Índia, crianças com idade de cinco a 10 anos são submetidas a verdadeiro trabalho escravo em fábricas de fósforos, sem um mínimo de segurança ou prevenção contra resíduos químicos.

Na Malásia, crianças chegam a trabalhar até 17 horas por dia em seringais, expostas a uma variedade infinita de doenças, picadas de insetos e ataques de cobras.

Na República Unida da Tanzânia, colhem café, inalando pesticidas.

Em Portugal, crianças de apenas 12 anos são submetidas ao trabalho pesado em indústrias e na construção civil.

Nos Estados Unidos, além de denúncias de que crianças são exploradas pela indústria do vestuário, trabalhando horas seguidas em locais insalubres e com baixa remuneração, um estudo realizado por órgão próprio americano constatou que houve aumento de 250% na ocorrência de violações relativas ao trabalho infantil entre 1983 e 1990.

Nas Filipinas, meninos e crianças mergulham para a instalação de redes de pesca de profundidade sem condições mínimas de segurança.

Na Malásia, as crianças são subjugadas a mais de 300 tipos de atividades trabalhistas, indo desde o trabalho doméstico quase escravo e passando por fábricas de tijolos, quebra de pedras, recolhimento de lixo e indústrias de exportação.

Na atualidade, um outro tipo de "serviço" é constatado em diversos países, agredindo quaisquer princípios mínimos adotados e afrontando a dignidade humana: é a prostituição infanto-juvenil. As causas, por mais abrangentes que sejam, têm um único efeito e conseqüência: a degradação moral e intelectual da sociedade que com ela convive.

Se ontem as explicações sobre tal afronta rabiscavam condições de pobreza e ignorância como apelo maior à prostituição infantil, hoje, elas também sombreiam o mundo da opulência.

Até quando vamos ficar atrás de explicações para saciar nossa impotência para as ações exigidas? Até quando iremos continuar dizendo que ali as causas são estas e acolá aquelas, num desvario para achar palavras que satisfaçam nosso ego?

Até quando, meus nobres Pares, devemos aguardar soluções milagrosas ao invés de atacar de frente um problema que avilta nossas consciências e leva por caminhos sem volta crianças inocentes?

Os poucos exemplos acima, constatados através de organismos sérios como a OIT e o Unicef, bem demonstram que pouco importa o nível de riqueza dos países onde ocorrem abusos contra a criança e o adolescente. A diferença está não necessariamente na forma de trabalho a que são submetidas, mas na natureza do trabalho que a criança realiza.

Sem dúvida que onde a pobreza é predominante os abusos são maiores. Não apenas pela necessidade de sobrevivência, o que leva crianças ao trabalho até mesmo com a influência dos pais, como pela falta de ética dos que produzem e não se sensibilizam pela contratação dessa mão-de-obra barata. Ao contrário, vêem na mão-de-obra infantil redução de custos na sua produção

Uma seqüela, porém, pode surgir dessa forma de atuação e prolongar a pobreza reinante num país ou numa região. Afinal, é sabido que uma criança que apenas trabalha, fatalmente se tornará um adulto sem qualificação profissional, relegado a empregos mal remunerados e gerando filhos mais pobres ainda.

Outro agravante constatado é que, não raras vezes, o grupo cultural dominante pode até proibir que suas próprias crianças não realizem trabalhos que envolvam situações de riscos, mas não se importa que jovens de minorias raciais, étnicas e econômicas o façam. Exemplos disso foram verificados em vários países do norte europeu, de primeiro mundo, onde a força de trabalho infantil recai sobre crianças africanas e turcas.

Nos Estados Unidos as crianças trabalhadoras em atividade de risco aparecem mais nas de origem asiática e latino-americanas; no Canadá, as asiáticas; na Argentina, as paraguaias e uruguaias; e em nosso País foi verificada a predominância de crianças negras e/ou descendentes de escravos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a idéia do que seja trabalho infantil há muito, desde os idos de 1987, o Unicef já os definiu e escreveu. são eles:

a) Qualquer atividade em período integral e sendo a criança muito jovem;

b) Muitas horas ininterruptas de trabalho;

c) Atividade que provoque excessivo stress físico, emocional ou psicológico;

d) Remuneração inadequada;

e) Responsabilidade excessiva;

f) Atividade que impeça o acesso à educação;

g) Atividade que comprometa a dignidade e a auto-estima da criança, como escravidão, trabalho servil e exploração sexual;

h) Quaisquer atividades que prejudiquem o pleno desenvolvimento social e psicológico.

Mesmo se considerarmos saudável para uma criança exercer determinados trabalhos, forma inclusive de remunerá-la e satisfazer seus desejos íntimos infanto-juvenis, muitos males podem daí advir.

Considerando que os maiores prejuízos se enquadram no aspecto físico, como problemas de coluna, comprometimento do crescimento, problemas visuais e auditivos, não podemos desconsiderar que não raramente, também, problemas emocionais de cunhos social/psicológico e auto-estima podem causar danos irreparáveis a serem carregados para o resto da vida de um inocente. Nesses casos se enquadram o trabalho obrigatório quase escravo e a exploração sexual, dentre outros.

Outro fator a considerar é a idade onde determinadas funções possam ser exercidas pela criança e pelo adolescente. Limites já aceitos quase universalmente, inclusive sendo parte integrante da Convenção Sobre Idade Mínima da OIT, são 12 anos para atividades leves e 14 anos para outras atividades, desde que respeitem as normas estabelecidas.

Ressalve-se que a própria OIT consagra como 15 anos a idade mínima em geral, desde que não seja inferior à idade prevista para a conclusão do curso primário.

Apesar desse parâmetro, muitos países que hoje se preocupam com o problema do trabalho infantil acatam diferentes idades para o trabalho remunerado infanto-juvenil.

O Egito, por exemplo, limita em 12 anos a idade legal para qualquer atividade; nas Filipinas, 14 anos; em Hong Kong, 15; o Peru adota diversos padrões, onde a idade mínima para trabalhar na agricultura é 14 anos; 15, para trabalhar na indústria; 16, na pesca de profundidade e 18, para exercer atividades portuárias e de navegação.

Em nosso País, a idade mínima é estabelecida em 14 anos para quaisquer atividades.

Em pesquisa recém elaborada, a Organização Internacional do Trabalho estimou em 73 milhões o número de crianças que trabalham regularmente no mundo, contratadas de forma ilegal, 13% com idades que variam de 10 a 13 anos.

Infelizmente, a própria OIT considera limitada essa pesquisa, pois muitos governos deixaram de responder às questões e outros omitiram dados. A pesquisa, também, deixou de incluir as crianças que trabalham nos países industrializados. Não teve acesso aos milhões de crianças menores de 10 anos e nem àquelas que trabalham no setor informal. Finalmente, o trabalho também não reflete o número das meninas que estão envolvidas em trabalhos domésticos, dentro do próprio lar ou realizando trabalho servil para outras famílias.

A OIT considera que apenas na Índia as crianças trabalhadoras estejam na casa dos 90 milhões, a maioria constituída por meninas. Evidencia, de forma evasiva, que o número real de crianças que trabalham no mundo é constituído por algumas centenas de milhões.

Três causas, todavia, levam as crianças ao trabalho: a exploração da pobreza, a deficiência da educação e as restrições impostas pela tradição.

Em síntese, meus nobres Pares, o trabalho infantil que envolve exploração constitui um ultraje e uma afronta à dignidade humana, onde quer que seja praticada.

Formas intoleráveis de trabalho infantil constituem abusos tão graves aos direitos humanos que devemos encará-los da mesma forma como um dia encaramos a escravidão. Abominável e injustificável sob quaisquer circunstâncias.

Em nosso País muitos são os abusos. Estamos hoje numa Comissão Parlamentar de Inquérito, que tenho a honra de presidir, procurando detectar a verdadeira extensão do fato. O Brasil, como signatário da Convenção Internacional, assinou um compromisso com o mundo. Mais que isso, assinou um compromisso com seus filhos e, assim sendo, clamo que esforços não sejam medidos nesta Casa para que um basta definitivo seja dado nessa questão.

Outros pronunciamentos, com outros dados, inclusive referentes ao nosso País, trarei para a tribuna desta Casa com a mesma finalidade.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente e meus nobres Pares.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/04/1997 - Página 8733