Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A VIDA E OBRA DO ESCRITOR NELSON RODRIGUES. SUCESSO DA MONTAGEM DA PEÇA 'VESTIDO DE NOIVA', NOS ESTADOS UNIDOS, TENDO SIDO ACLAMADA PELA CRITICA E PUBLICO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A VIDA E OBRA DO ESCRITOR NELSON RODRIGUES. SUCESSO DA MONTAGEM DA PEÇA 'VESTIDO DE NOIVA', NOS ESTADOS UNIDOS, TENDO SIDO ACLAMADA PELA CRITICA E PUBLICO.
Publicação
Publicação no DSF de 30/04/1997 - Página 8799
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMENTARIO, ACOLHIMENTO, IMPRENSA, PUBLICO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), PEÇA TEATRAL, AUTORIA, NELSON RODRIGUES, ESCRITOR, ARTE DRAMATICA, SIMULTANEIDADE, ELOGIO, OBRA ARTISTICA, AUTOR.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, ocupo esta tribuna.

Formada pelas contribuições de diferentes grupos humanos, que para cá trouxeram suas tecnologias, seus hábitos, suas religiões, suas maneiras de ser e de estar no mundo, a cultura brasileira é, por isso mesmo, uma das mais ricas do planeta, dotada de uma versatilidade e de uma flexibilidade absolutamente invejáveis num mundo em processo de rápida e ininterrupta transformação. Assim, além de extraordinariamente fértil, a cultura brasileira tem produzido uma infinidade de artistas de excepcional qualidade, não apenas na música e na dança, que o mundo inteiro já aprendeu a respeitar, mas igualmente na literatura, no cinema e no teatro. No caso dessas formas de expressão, contudo, um dos grandes obstáculos ao reconhecimento de nossos valores tem sido exatamente a Língua Portuguesa, pouco conhecida além das fronteiras dos países em que constitui o idioma oficial.

Nos últimos anos, porém, temos assistido com satisfação à quebra parcial dessas barreiras, com a consagração no exterior dos trabalhos de alguns de nossos artistas e intelectuais mais talentosos. É o caso do grande sucesso que vem obtendo a montagem, num teatro de Los Angeles, da peça "Vestido de Noiva", obra-prima daquele que é, a nosso ver, o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos: o genial Nelson Rodrigues, de quem tive a honra de ser amigo e companheiro de lides teatrais.

Com diretor e elenco norte-americanos e tradução para o inglês de Joffre Rodrigues, um dos filhos de Nelson, a nova montagem de "Vestido de Noiva" tem lotado o Teatro Forty, de Beverly Hills, cuja reputação foi construída a partir de clássicos do repertório americano. Além do sucesso de público - não há lugares disponíveis para as próximas apresentações -, a peça vem recebendo verdadeira aclamação da crítica especializada, expressa em artigos publicados em prestigiosos órgãos de imprensa, como o Los Angeles Times e a revista Variety, a ponto de um crítico de renome ter manifestado a sua incredulidade com o fato de ter sido obrigado a "esperar 54 anos desde que a peça foi escrita (...) para que essa obra-prima fosse exibida pela primeira vez na América do Norte".

Para nós, que há muito tempo aprendemos a respeitar e admirar esse grande autor e sua obra, nada disso provoca surpresa. Pelo contrário. Dadas as suas qualidades intrínsecas, aliadas à carga de inovações que trazia à época em que foi lançada, "Vestido de Noiva", que estreou em dezembro de 1943, é considerada uma espécie de divisor de águas do teatro brasileiro. Sobre ela já se afirmou ter feito com que o nosso teatro superasse o complexo de inferioridade perante seus correlativos europeu e norte-americano. Em função dela e do restante de sua obra, Nelson Rodrigues é visto como aquele que representou para o palco o que trouxeram Villa-Lobos para a música, Portinari para a pintura, Niemeyer para a arquitetura e Drummond para a poesia.

Como todas as peças de Nelson Rodrigues, cujo itinerário nunca foi pacífico, "Vestido de Noiva" causou, apesar do sucesso, muita polêmica à época de sua estréia. Sobre ela escreveria mais tarde o autor, sempre irônico e iconoclasta:

      "Com "Vestido de Noiva", conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre (...), pois a partir de "Álbum de Família" (sua peça seguinte) enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um teatro que se poderia dizer assim - "desagradável". Numa palavra, estou fazendo um "teatro desagradável", "peças desagradáveis". E por que "peças desagradáveis"? Segundo já se disse, porque são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia. (...) A partir de "Álbum de Família", tornei-me um abominável autor. Por toda parte, só encontrava ex-admiradores. Para o crítico, autor e obra estavam justapostos e eram ambos "caso de polícia"."

A razão das ferozes reações à obra de Nelson Rodrigues reside no arraigado conservadorismo, na entrincheirada hipocrisia que caracterizavam as elites brasileiras, atingidas em cheio pela temática de sua obra, sempre pronta a desnudar preconceitos e fazer aflorar os sentimentos mais íntimos e inconfessáveis de uma sociedade que se queria ilibada e puritana. Sua ousadia artística, interpretada como gosto à provocação e busca de publicidade, e sua integridade criativa, que soava como um desafio à crítica, foram características constantes de todas as suas peças, sempre questionando o establishment teatral e os dúbios padrões morais reinantes - o que fez dele um autor em luta constante contra as tesouras da censura. Isso, por sinal, jamais o intimidou. Além do sarcasmo que pela imprensa destilava contra os opositores, Nelson Rodrigues tinha no próprio palco as melhores armas para desmoralizar os críticos especializados que não o poupavam. Seu temperamento apaixonado não o predispunha ao debate domesticado pela racionalidade. Daí, restava-lhe, em frases contundentes e mordazes, ridicularizar os desafetos, o que fazia com extraordinária - e temida - competência.

Um dos epítetos com que o chamavam os amigos - e que ele próprio admitia com prazer - era o de "Flor de Obsessão". Com efeito, alguns motivos aparecem espalhados por toda a sua obra: a oposição pai-filho, a inclinação mãe-filho, o incesto, a solidão, a desagregação dos valores convencionais, a força corruptora do dinheiro e - acima de tudo - a crença numa ética última e irredutível da criatura humana, marcando-lhe a transcendência. Sim, porque, a despeito de toda a sua irreverência, Nelson Rodrigues era essencialmente um moralista radical, para quem o corpo humano era o exato oposto da santidade. Daí, em todo o teatro rodrigueano, que não vê salvação fora da graça, a explosão de taras, incestos e mortes violentas - nociva para o público dopado pelo teatro digestivo que antes dele predominava, segundo a ótica tacanha da censura. Longe de diminuir o alcance de seu teatro, o radicalismo ético de Nelson Rodrigues exacerbou-lhe o processo criativo e aguçou-lhe as intuições e sondagens nas criaturas retratadas, ao mesmo tempo em que sua recusa à hipocrisia lhe permitia penetrar profundamente na miséria humana.

Na lógica interna de sua criação, Nelson Rodrigues rasgou, como alguém já disse, o subconsciente e sondou as raízes do inconsciente, deixando a nu a psicologia de uma sociedade autoritária, repressiva, cruel e, sobretudo, hipócrita.

O SR. PRESIDENTE (Geraldo Melo) - Senador Abdias Nascimento, peço perdão a V. Exª por interrompê-lo, mas tenho que fazê-lo para prorrogar a Hora do Expediente pelo tempo necessário a que V. Exª conclua o seu discurso e sejam ouvidas comunicações inadiáveis de oradores já inscritos.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO - Estou concluindo, Sr. Presidente. Muito obrigado.

Como dramaturgo, percorreu uma ampla gama de inspirações, com o que conseguiu satisfazer gostos não apenas divergentes, mas até mesmo contraditórios. E sempre com sua personalidade imediatamente reconhecível - um estilo e um diálogo que não se confundem com os de nenhum outro autor. O compromisso com o quotidiano, a existência próxima e palpável, foi reforçado no exercício de sua faina diária como jornalista, publicando desde 1951 no Última Hora do Rio, entre outras séries, "A vida como ela é". Nessa quase inacreditável coletânea de histórias, os personagens eram preferencialmente extraídos do quotidiano do subúrbio carioca. A par da extraordinária popularidade, que aumentou imensamente as vendagens do jornal, " A vida como ela é" foi a fonte maior de um subgênero criado por Nelson Rodrigues: a tragédia carioca.

Ambientadas na Zona Norte do Rio de Janeiro, as obras dessa vertente trazem agora uma dimensão concreta do real, mas sem abdicar da intensa carga subjetiva que caracteriza suas peças anteriores. É que o psicológico e o mítico se haviam impregnado de uma forte seiva social. Embora evitasse o panfleto político, pois tinha consciência dos duvidosos resultados literários do proselitismo, Nelson Rodrigues acabou fornecendo um testemunho doloroso das precárias condições em que sobreviviam as classes desprivilegiadas. Desse modo, sem desejar produzir uma análise social ou de fundo sociológico, Nelson revelou no próprio substrato da ordem capitalista o principal condicionante da miséria que afligia as famílias suburbanas. Não apenas a miséria financeira, mas sobretudo a miséria ética.

São 17 as peças de Nelson Rodrigues: "A Mulher sem Pecado", "Vestido de Noiva", "Valsa nº 6", "Viúva porém honesta", "Anti-Nelson Rodrigues", "Álbum de Família", "Anjo Negro", "Senhora dos Afogados", "Dorotéia", "A Falecida", "Perdoa-me por me Traíres", "Os Sete Gatinhos", "Boca de Ouro", "Beijo no Asfalto", "Bonitinha, mas Ordinária", "Toda Nudez Será Castigada" e "A Serpente". Em todas elas, a marca indelével de um dramaturgo de primeira linha, comparável aos melhores que o mundo já produziu. E que o mundo todo poderá agora conhecer, quando se abrem para Nelson Rodrigues, embora tardiamente, as portas do reconhecimento e do sucesso internacionais.

E por mencionar a grandeza teatral e humana desse imortal dramaturgo, não posso deixar de lembrar particularmente sua peça "Anjo Negro", escrita para ser apresentada pelo meu Teatro Experimental do Negro. Nelson Rodrigues era um aliado na luta que travávamos contra a discriminação racial em nossos palcos, e essa tragédia espelha seu compromisso pela causa. Combati a seu lado o veto da censura até conseguir a liberação do texto, enfim encenado, não pelo TEN, mas pela Companhia da atriz Maria Della Costa.

Sr. Presidente e Srs. Senadores, termino este registro com um sentimento nostálgico ao evocar, neste instante, a ocasião em que representamos juntos, Nelson Rodrigues e eu, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o texto desse grande teatrólogo chamado "Perdoa-me por me Traíres". Coube-me interpretar o Deputado Jubileu de Almeida, um tarado sexual que se autoproclamava "uma reserva moral da pátria", enquanto o autor-ator desempenhava o personagem Tio Raul. Ao descer o pano, após a cena final, a platéia do Teatro se transformou num imenso caos. Distintas senhoras urravam impropérios ofensivos ao autor, cavalheiros circunspectos o vaiavam, enquanto outro segmento o aplaudia. A gritaria cresceu e Nelson Rodrigues, extremamente tenso, surgiu na boca da cena para enfrentar a confusão. Revólver em punho, um Vereador do Rio tentou matar, não o autor, mas a própria peça, para ele talvez patológica ou imoral. Nelson avançou no proscênio e gritou, chamando seus ofensores de "animais" e "cavalgaduras". O elenco então correu para protegê-lo, cercando-o. Diante de uma barreira de atrizes e atores, a fúria do público arrefeceu e o espetáculo, enfim, terminou.

Esse episódio, tragicômico na sua aparência, na verdade, revela muito bem a capacidade do teatro de Nelson Rodrigues em mobilizar os mais profundos sentimentos das platéias, tocando nas feridas da alma brasileira como nenhum outro, antes ou depois dele.

Assim como o teatro norte-americano possui um Eugene O´Neill, o gênio modernizador da dramaturgia daquele país, e a Inglaterra se orgulha do seu Shakespeare, nós celebramos o Dante da nossa literatura dramática: Nelson Rodrigues, que elevou o teatro brasileiro até o ponto mais alto que a dramaturgia de qualquer nação tenha atingido em qualquer tempo.

Axé, Nelson Rodrigues!

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/04/1997 - Página 8799