Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO EDUCADOR PAULO FREIRE. HOMENAGEM A SER PRESTADA PELO FESTIVAL DE CANNES, NO PROXIMO DIA 11 DE MAIO, AO DIRETOR ANSELMO DUARTE, GANHADOR DA PALMA DE OURO, COM O FILME O PAGADOR DE PROMESSAS.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. CONCESSÃO HONORIFICA.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO EDUCADOR PAULO FREIRE. HOMENAGEM A SER PRESTADA PELO FESTIVAL DE CANNES, NO PROXIMO DIA 11 DE MAIO, AO DIRETOR ANSELMO DUARTE, GANHADOR DA PALMA DE OURO, COM O FILME O PAGADOR DE PROMESSAS.
Publicação
Publicação no DSF de 09/05/1997 - Página 9270
Assunto
Outros > HOMENAGEM. CONCESSÃO HONORIFICA.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, PAULO FREIRE, PEDAGOGO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).
  • SAUDAÇÃO, ANSELMO DUARTE, DIRETOR, CINEMA, RECEBIMENTO, PREMIO, PAIS ESTRANGEIRO, FRANÇA.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (BLOCO/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob as bênçãos de Olorum, inicio meu pronunciamento.

Ocupo hoje esta tribuna para homenagear dois brasileiros ilustres. Cada um a sua maneira e no seu campo de atuação, deu importantes contribuições à nossa cultura, ajudando o Brasil a se tornar conhecido no exterior como algo mais do que o País do samba e do futebol. Dois brasileiros que jamais se envergonharam de sua terra ou de sua gente e que jamais se sentiram inferiores perante a cultura de outros povos, mas, ao contrário, sempre reafirmaram e defenderam a riqueza de nossa diversidade cultural, inesgotável manancial de possibilidades em todos os campos do saber, infelizmente ainda subestimado por tantos brasileiros.

Minha primeira homenagem é, infelizmente, uma homenagem póstuma a um homem que sempre admirei e de quem o destino teve o capricho de me aproximar não no Brasil, mas em terra estrangeira, nos tempos do exílio forçado pelo regime militar.

Refiro-me ao grande educador Paulo Freire, falecido no último dia 2, em São Paulo, vítima de enfarte, que o mundo inteiro reverencia como o criador do revolucionário método de alfabetização que leva o seu nome - o Método Paulo Freire.

Nascido em Recife, a 19 de setembro de 1921, em uma família pequeno-burguesa que, segundo ele próprio, "lutava fanaticamente para não perder sua posição de classe" - o que não o impediu de viver em primeira mão a dolorosa experiência da fome -, Paulo Freire não via como missão da educação o mero adestramento da mão-de-obra para o mercado de trabalho. Para ele, que considerava o fenômeno educativo um ato político, cabia à educação desenvolver o senso crítico de cada aluno com respeito à verdadeira cidadania.

Formado em Direito e livre docente em História e Filosofia da Educação, foi na década de 40 que Paulo Freire iniciou suas experiências com educação de adultos em áreas proletárias urbanas e rurais, começando a formular o método que um dia o tornaria internacionalmente conhecido. No início dos anos 60, Miguel Arraes, então Prefeito de Recife, convidou-o para ser o Coordenador do Projeto de Educação de Adultos, que integrava o Movimento de Cultura Popular. O período em que dirigiu o projeto - de 1961 a 1968 - serviu para que ele aperfeiçoasse o seu método, que acabou sendo aplicado integralmente, pela primeira vez, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. O êxito da experiência atraiu as atenções de Paulo de Tarso, então Ministro da Educação, que o chamou para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização. Por pouco tempo, porém. Logo entraríamos no período sombrio da ditadura militar. Preso como "subversivo", Paulo Freire ficou 75 dias numa cela do Quartel do Exército em Olinda. Enviado para o Rio de Janeiro, onde foi solto, asilou-se na Embaixada da Bolívia, de onde partiu para um exílio de mais de 15 anos, que incluiu Chile, Estados Unidos - onde lecionou na prestigiosa Universidade de Harvard -, Suíça e Guiné-Bissau. Na África, em particular, onde me encontrei com ele duas vezes, suas teses inspiraram campanhas de alfabetização em vários países, particularmente na Guiné-Bissau e na Tanzânia.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, dos mais de 50 livros que Paulo Freire escreveu, o mais famoso é, com toda a certeza, Pedagogia do Oprimido, publicado em 1970 e traduzido em dezenas de idiomas. Essa e outras obras, como A Educação como Prática da Liberdade, Cartas a Guiné-Bissau, Ação Cultural para a Liberdade, Extensão ou Comunicação, Educação e Mudança, Medo e Ousadia e Pedagogia da Pergunta valeram-lhe o Prêmio Internacional de Educação, concedido pela Unesco em 1975. E também, evidentemente, muita incompreensão. Em 1978, por exemplo, seus livros foram proibidos pelos ditadores de plantão na Argentina, acusados de servir como "meio de penetração do marxismo nos âmbitos educativos".

Em 1979, ao retornar ao nosso País, Paulo Freire começa, como dizia, a "reaprender o Brasil". Longe, porém, de renegar suas idéias, reitera sua opção pela educação libertadora, a seu ver a única alternativa à "educação que domestica". Vai lecionar na PUC de São Paulo e em 1989, aos 67 anos, assume seu último cargo público: o de Secretário Municipal de Educação da cidade de São Paulo no Governo de Luísa Erundina.

Infelizmente, Paulo Freire morreu sem que o Brasil sequer tivesse enfrentado com um mínimo de eficácia o desafio de montar um programa sólido e abrangente de alfabetização de adultos das camadas desprivilegiadas de nossa população. Cabe-nos aproveitar seu legado não apenas como ponto de reflexão, mas sobretudo como ponto de partida na abertura de novos caminhos que nos levem a superar, de uma vez por todas, esse problema tão grave e tão típico de nosso subdesenvolvimento. E, nesse processo, construir uma cidadania sólida e responsável, ferramenta indispensável à consolidação da democracia e à concretização do sonho de um Brasil desenvolvido e socialmente justo.

Pois foi esse sonho que o iluminou enquanto caminhava no exílio injusto que lhe impuseram. Todos exilados, nos encontramos em Nova Iorque: Paulo Freire, o sociólogo Guerreiro Ramos e este orador. E a conversa foi sobre o nosso Brasil e seu povo sofrido. Suas palavras ainda hoje estão vivas de ensinamentos, numa experiência pedestre e pedagógica que ele generosamente distribuiu com outros povos. Foi na Tanzânia, no Campus da Universidade de Dar-Es-Salaam, que presenciei sua preocupação espontânea e afetiva com os necessitados de seu auxílio. Coerente e fiel a seus princípios, ele ensinou também em Guiné-Bissau, onde pude várias vezes testemunhar sua figura debruçada sobre estudantes reunidos debaixo de árvores nas ruas da cidade, recém-saídas do colonialismo português. O país ainda não possuía um sistema de educação. Paulo Freire trabalhava na organização desse ensino, expandindo a consciência de que só a educação liberta. Faço este registro com o orgulho e a emoção de render a homenagem e gratidão a um brasileiro de singular competência pedagógica e de incomparável sentimento de solidariedade humana.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, depois de um período de baixa, ocasionado pelas dificuldades econômicas geradas com o Plano Collor e o verdadeiro desmonte das instituições de apoio à cultura, ocorrido na gestão daquele Presidente, o cinema brasileiro começa a dar sinais de franca recuperação. Sucessos de público e de crítica, filmes como Pequeno Dicionário Amoroso ou O que é isso, Companheiro? Demonstram cabalmente que as platéias brasileiras, embora massacradas por uma produção internacional de gosto muitas vezes duvidoso, são capazes de responder com generosidade quando expostas a um produto nacional feito com qualidade e técnica.

Quis o destino que este momento em que renasce o cinema brasileiro fosse marcado pela homenagem que o famoso Festival de Cannes estará fazendo no próximo dia 11 de maio, em sua qüinquagésima edição, ao ator e diretor Anselmo Duarte - de quem tenho a honra de me considerar um amigo -, o único brasileiro laureado com a Palma de Ouro, o prêmio máximo desse festival, pelo filme O Pagador de Promessas. Nessa homenagem, Anselmo Duarte estará na companhia de alguns dos mais consagrados diretores de todos os tempos, como o sueco Ingmar Bergman. Fato que se torna ainda mais notável quando se sabe que nomes como Alan Resnais, Milos Forman, Bernardo Bertolucci, Jean-Luc Goddard, Woody Allen e Peter Greenway não obtiveram tal indicação.

Rodado em 1962, com Leonardo Villar e Glória Menezes nos principais papéis, O Pagador de Promessas rendeu a Anselmo Duarte todas as alegrias, mas também a incompreensão e - para falar a verdade com todas as letras - a inveja profunda de setores do cinema e da crítica que jamais o perdoaram por ter chegado antes aonde todos queriam chegar.

Impecável do ponto de vista técnico e artístico, O Pagador de Promessas foi exibido em todas as partes do mundo, sempre com a melhor repercussão. Isso valeu a Anselmo, em seu retorno ao Brasil após receber o prêmio em Cannes, uma recepção calorosa por parte do público, para o qual a Palma de Ouro era uma espécie de Copa do Mundo do cinema. Curiosamente, porém - como muitas vezes acontece em nosso País -, o troféu obtido não lhe escancarou, como seria de se esperar, as portas dos subsídios e financiamentos para outras produções. Pelo contrário. Polêmico e afirmativo, Anselmo cultivou calorosamente suas desavenças com alguns segmentos do cinema, os quais, por sua vez, graças à ocasional influência de que desfrutava, sempre procuraram interpor todos os obstáculo possíveis à sua atividade de criador cinematográfico. Tratava-se, sem dúvida, de uma controvérsia a respeito de concepções artísticas antagônicas, saudável ao processo criativo.

Depois de passar da Atlântida, do Rio de Janeiro - onde ganhava mais que Oscarito e Grande Otelo, os grandes sucessos de bilheteria da época -, à Vera Cruz, de São Paulo, que o contratou a peso de ouro, Anselmo Duarte resolveu, aos 37 anos, dedicar-se à carreira de diretor. Nessa qualidade, realizou em 1957, aos 37 anos, seu primeiro filme, Absolutamente Certo, uma comédia simpática e bem narrada, tendo como tema os programas de perguntas e respostas, sucesso de nossa incipiente televisão da época. Seguiram-se O Pagador de Promessas (1962), Quelé do Pajeú (1969), Um Certo Capitão Rodrigo (1970), O Descarte (1973), O Crime do Zé Bigorna (1977), e Os Trombadinhas (1978). Além dos episódios O Reimplante, de O Impossível Acontece (1970), Oh! Dúvida Cruel, de Já Não Se Faz Amor Como Antigamente, e Marido que volta deve avisar, de Ninguém Segura Essas Mulheres, os dois últimos de 1975.

Uma filmografia irregular, sem dúvida, mas com inequívocos lampejos de genialidade, que, com certeza, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, teriam sido muito mais abundantes, não fosse a disputa menor, um traço tão característico de nosso provincianismo cultural. Resta-nos agora saudar esse verdadeiro herói do cinema brasileiro e, ao mesmo tempo, desculpar-nos, mesmo que tardiamente, pela incompreensão de que foi vítima em nossos meios artísticos. Esperamos o talento e a determinação de Anselmo Duarte, que lhe propiciaram não capitular, mesmo diante do criticismo mais cruel e irracional que hoje se propõem a tarefa, árdua mas compensadora, de criar um cinema nacional ao mesmo tempo popular e de qualidade, um cinema do qual O Pagador de Promessas constitui, sem favor algum, o mais acabado paradigma.

Axé!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/05/1997 - Página 9270