Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DO EDUCADOR PAULO FREIRE.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DO EDUCADOR PAULO FREIRE.
Publicação
Publicação no DSF de 08/05/1997 - Página 9171
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, PAULO FREIRE, PEDAGOGO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).

O SR. LAURO CAMPOS (BLOCO/PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, quem melhor do que eu poderia prestar esta homenagem derradeira ao Educador Paulo Freire seria, sem dúvida alguma, a nossa brilhante companheira, Senadora Marina Silva. Infelizmente, S. Exª se encontra adoentada e está sendo medicada nesta Casa. Portanto, venho prestar, de improviso, esta homenagem, sem ter o tempo necessário para elaborar um panegírico que o Educador Paulo Freire merece e, assim, deixar que as emoções preencham o vácuo, o vazio de uma releitura da obra desse grande brasileiro.

Paulo Freire é o exemplo de coerência, a virtude que ele sublinhou e, tal como - parece-me - aconteceu com Sócrates, melhor soube cultivar. Contra ele, contra a sua formação, bateu a violência do regime militar, as agruras do desterro, e Paulo Freire manteve a sua virtude principal: a sua coerência. Também só a Sócrates foi dada a oportunidade, quando lhe entregaram a chave da liberdade, de sair de Atenas, de refugiar-se e de ser um bárbaro e não um ateniense. Mas Sócrates não quis; preferiu, ao contrário do que afirma Stone no seu livro intitulado O Julgamento de Sócrates, manter a virtude das virtudes - a coerência - e morrer ateniense, morrer fiel às suas idéias e às suas convicções.

Paulo Freire afirma essa sua predileção pela coerência, e por ela, com certeza, diante de um "ama-me ou deixa-me", deixou-nos logo após o Golpe de 1964. Como aquele Golpe fez revelar a grandeza de tantos brasileiros, que se não tivessem saído dos limites de nossas cidades, de nossos Estados e de nosso País, talvez não tivessem revelado as suas enormes, imensas potencialidades!

Paulo Freire conservou, entre as muitas virtudes que adornam a sua personalidade, a simplicidade. Algumas vezes estive com ele, proferindo as suas palestras aqui em Brasília e nas cidades satélites. Auditórios repletos, professores e alunos ávidos por aprender com ele o seu método, a sua sabedoria, a sua simplicidade. Ele era grande, como o Himalaia o é, sem ter consciência de sua grandeza, sem ter o orgulho de ter atingido as dimensões que atingiu.

Todos nós, num certo momento de nossas vidas, nos inquietamos e os reacionários e conservadores se inquietaram muito mais diante de um método que, no início dos anos 60, Paulo Freire trouxe consigo para Brasília. Partindo de algumas verdades axiomáticas evidentes por si mesmas, Paulo Freire transformou-as nos fundamentos do seu método. A pedagogia tradicional não havia feito a revolução que ele esperava, portanto ele o fez. Um verdadeiro "Ovo de Colombo", com a simplicidade que o caracteriza e pela faculdade que sempre teve de ver o mundo de um ponto de vista diferente: não do ponto de vista do dominador, da cátedra, do pólo superior que pretende iluminar a humanidade lá embaixo; ele era a própria humanidade lá de baixo e se conservou fiel ao seu ponto de vista e à sua visão do mundo.

Paulo Freire retirou do altar e do pedestal o professor antigo, o mestre, o magister dixit e transferiu para lá a sua modéstia, a sua noção de igualdade, o seu pensamento de que só transformaremos o mundo na medida em que abandonarmos o nosso egoísmo para participarmos da ação social coletiva transformadora. Conhecer o mundo e transformá-lo, muitas vezes pareciam atos, práticas, atitudes diferentes umas das outras, mas Paulo Freire percebeu a unidade. A inquietude humana leva o homem à ação, e a ação humana desvenda e desvela o mundo para a consciência do homem. Conhecimento e prática. Portanto, trazer para a sala de aula a prática externa de cada um dos alunos; nivelar, igualar essa prática externa com a do professor, a do orientador; quebrar o pólo que separava o aluno do mestre, mostrar que o processo de aprendizagem é e sempre foi um processo de formação da consciência coletiva, da qual o professor participa, se beneficia, em qualquer nível em que ele esteja ensinando. O professor que não aprende com os alunos é um mau professor.

A Pedagogia do Oprimido mostra que, através da prática, podemos atingir o processo de conhecimento e enriquecimento da consciência. É através da consciência enriquecida que temos condições de transformar a prática. Esse processo tão simples, tão óbvio, tão axiomático é um dos pilares em que Paulo Freire sustenta a Pedagogia do Oprimido.

Portanto, o que nós percebemos é que Paulo Freire, ao trazer a vida para dentro da sala de aula, trouxe com ela não apenas a linguagem adequada aos alunos, ou da roça, ou dos subúrbios ou de qualquer segmento social em que eles fossem constituídos, em que eles estavam vivendo como crianças. Ao invés de símbolos vazios: A, B, C, Bê-a-bá, bê-o-bó, linguagens ocas, Paulo Freire trazia a linguagem da vida, a linguagem das experiências vividas por cada um daqueles que compunham a sala de aula, o ambiente de aprendizagem, transformação e formação das consciências.

Paulo Freire não ensinou poder ler; ensinou, principalmente, que ler é poder. É por isso que, no Brasil, as classes dominantes, as elites, jamais quiseram deixar que o povo aprendesse a ler.

Portanto, são essas as pequenas armas que Paulo Freire transmitiu, com uma inteligência, uma perspicácia que lhe são peculiares, com a modéstia que alguns gênios sabem cultivar ou possuí-la. E, não podendo ser um cidadão do Brasil, transformou-se num cidadão do mundo. Em Estocolmo, na Suécia, em uma de suas praças principais, existe uma estátua erguida a Paulo Freire. Poucos brasileiros, ao longo da nossa história, tiveram uma consagração como a que ele recebeu dos suecos. Mais de 50 países se beneficiaram do seu método. Expulso do Brasil, foi para a Bolívia; não pôde ficar na Bolívia, seguiu para o Chile, do Chile para os Estados Unidos, e de lá para os confins do mundo. Esse fantástico andarilho acabou sendo readmitido. Já reconhecido como um dos maiores pedagogos do mundo, em 1979 pôde reingressar ao Brasil, que lhe tratara tão mal e compreendera tão pouco suas idéias.

Aqui, Paulo Freire continuou o seu trabalho; trabalho que fora interrompido logo em seguida ao Golpe de 1964. Assim, ao voltar para o local que ele tanto amava e onde não pôde aplicar a força de seu gene, continua a desenvolver as suas atividades tão produtivas, tão voltadas para o social, tão irrequietas diante da necessidade de transformação de nossa sociedade.

Finalmente Paulo Freire iria receber uma homenagem muito especial, à qual ele deu um valor específico, diante de tantas honrarias que ele acabou recebendo ao longo de sua vida.

Ele receberia o título de Doutor Honoris Causa, em Cuba, das mãos de Fidel Castro. E é isso que para ele tinha um significado inigualável. Mas nem esse projeto e nem o outro, de, depois de ter passado dez anos na Suíça, mudar-se agora para os Estados Unidos e lecionar na Universidade de Harvard, que o chamava, ele pode concretizar.

Morreu sonhando, morreu desejando espalhar as suas idéias, colocar o Método da Pedagogia do Oprimido a serviço dos oprimidos do mundo; igualar, como ele havia feito nas salas de aula, os diferentes, o professor e os alunos. E, assim, Paulo Freire continuou a ser o sonhador que sempre foi.

      "A prática educativa é uma prática política, que coloca ao educador uma ruptura, uma opção, ou seja, você educa com vistas a um certo ideal. É o sonho de sociedade que você tem."

      "Não há democracia sem a convivência com o diferente. Se você recusa o diferente, você discrimina o diferente, o que é um absurdo. A democracia não pretende criar santos, mas fazer justiça".

      "Fui castigado porque mostrei que a miséria dos famintos não é castigo de uma perversidade do Papai do Céu, mas se deve à falta de conscientização das pessoas que vivem no analfabetismo. Eu não teria sido objeto de repulsa se tivesse me limitado ao ba-be-bi-bo-bu".

      "Eu procuro me ver como um homem que historicamente esteve num certo local e em certo espaço. Apesar de ser apaixonadamente recifense, foi por causa do Recife que me tornei um andarilho do mundo. Então eu me vejo assim: como alguém que viveu um momento histórico e tentou fazer alguma coisa".

E fez muito. Fez o suficiente para que nós, do Partido dos Trabalhadores, tenhamos orgulho de tê-lo como um dos maiores, senão o maior, de nossos correligionários; a ponto de nós, como cidadãos brasileiros, termos orgulho de tê-lo como um concidadão nosso.

Paulo Freire não teve orgulho em sua vida, trocando-o por uma modéstia exemplar. Nós, agora, temos orgulho, muito orgulho de Paulo Freire.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/05/1997 - Página 9171