Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DOS 110 ANOS DE NASCIMENTO DO ESCRITOR BRASILEIRO AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DOS 110 ANOS DE NASCIMENTO DO ESCRITOR BRASILEIRO AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/1997 - Página 9527
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO, ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco-PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste 13 de maio, Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo, venho homenagear o escritor brasileiro Afonso Henriques de Lima Barreto, nesta sessão de comemoração proposta pelo Senador Abdias Nascimento.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881 e morreu na mesma cidade em 1º de novembro de 1922. Era filho de João Henriques - filho de uma antiga escrava, Carlota Maria dos Anjos, e de um português que não o reconheceu. Tipógrafo, quis ser médico, mas a vida o obrigou a renunciar a esse sonho. A mãe, Amália Augusta, professora primária, também de origem humilde, era filha de uma escrava liberta, de nome Geraldina Leocádia da Conceição. Amália Augusta, cuja vida foi marcada pelas angústias que a pobreza lhe impunha, acabou dando um salto para o casamento. Foi morar em Laranjeiras e ali nasceu o escritor, que passou pela dolorosa experiência de perder a mãe aos seis anos de idade.

Lima Barreto teve uma vida de muitas dificuldades. Viveu no subúrbio de Todos os Santos, perto do Méier. Diferentemente dos irmãos, que cresceram sem instrução, Lima Barreto era afilhado do Visconde de Ouro Preto - amigo de seu pai -, que assumiu os custos de seus estudos.

O escritor passou a vida lutando contra todas as intempéries. Teve que assumir o sustento dos irmãos naturais e dos filhos da segunda mulher de seu pai. A sua válvula de escape foi a bebida. Seu trabalho não foi reconhecido em vida e só com a biografia de Francisco de Assis Barbosa, 34 anos depois da sua morte, a intelectualidade tomou conhecimento de livros como O Triste Fim de Policarpo Quaresma. Para muitos estudiosos, a condição de mulato e pobre talvez tenha sido definitiva para o veto à sua entrada na Academia Brasileira de Letras.

O olhar agudo para os costumes dos subúrbios do Rio caracteriza a sua obra. "Há quem o confunda com um autor popularesco, mas sua obra reflete a sofisticação de sua cultura", disse o Professor Santos.

A obra de Lima Barreto - articulista, crítico, missivista, memorialista e ficcionista - consistiu em comentários dos acontecimentos históricos, políticos e sociais de seu tempo, com também numa paisagem retratada das redações de jornais, do ambiente suburbano do Rio de Janeiro, dos meios políticos e da classe média da sociedade brasileira.

Viveu 41 anos e deixou 17 livros. Sua última publicação em vida foi Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, em 1919.

Sua existência difícil e amarga foi tumultuada pelas entradas e saídas de hospícios pelo abuso do álcool e vida desregrada. Hoje em dia o alcoolismo é mais tolerado. Não seria o caso de internar em hospício alguém que se encontrasse embriagado nas ruas. À sua disposição estariam os Alcoólicos Anônimos e tantos outros tratamentos, e ele não teria sofrido tanto. Sua doença era certamente social.

Apesar de viver num ambiente adverso, nos primeiros anos deste século, escrevia sobre a necessidade de se levantar a verdadeira história da escravidão negra no Brasil.

Se estivesse vivo, certamente poderia comentar a grande exposição que ocorre no Salão Negro do Senado Federal sobre o Descobrimento do Brasil. Ao visitá-la, pude refletir sobre o desejo desse grande brasileiro e perceber que meu discurso não poderá, como fez Lima Barreto em seus escritos, descrever o Descobrimento do Brasil.

A questão raça-preconceito racial fica clara no "diário íntimo" de suas obras, organizado sob a direção de Francisco de Assis Barbosa. Reproduzo aqui um trecho desse diário:.

      "Há dias, por motivos de minha profissão, fui obrigado a entrar na Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Vestia-me mal, é fato, mas entrava certo de que era cidadão brasileiro, homem de algum cultivo, cumpridor dos meus deveres e, sobretudo, protegido da crença que, tendo freqüentado uma dessas nossas escolas superiores, mereceria dos contínuos de lá o tratamento que se dá ao comum dos mortais. Enganei-me. Dirigi-me ao contínuo, no primeiro pavimento, que com a habitual morgue dos altos e baixos funcionários, aconselhou-me que subisse. Até aí pisava no Brasil, agora, parecia-me, passava a fronteira. Dois contínuos, enfardelados em amplas sobrecasacas pretas com botões dourados, ocupavam-se, pachorrentamente, em cortar jornais, original ocupação dos contínuos da Secretaria do Exterior.

      Medroso do meu ato, ousei interromper-lhes a tarefa;

      - Precisava isso assim, assim; os senhores podem, etc.

      Os dois respeitáveis funcionários olharam-me de alto a baixo e, entre complacente e desdenhoso, um deles disse-me:

      - Entra.

      Fiquei atônito. Nunca fora assim tratado em departamento da administração brasileira e demais naquele sotaque estrangeiro! Prudentemente entrei, sentei-me, conforme me aconselhava o magnífico auxiliar das nossas relações exteriores. Tinha sob mim uma delgada cadeira dourada meio suja. Em torno, um salão lustrado, amplo e meio escuro; e o teto de estuque tinha pelos cantos a armorial de algum visconde apressado. O estuque encantou-me e, embora sob o peso daquela afronta, interessou-me o relevo dele, as armas do escudo, os florões, os grifos, etc. etc. etc.

      De quem fora aquilo? Não sabia. O dinheiro que o fizera, entretanto, era fácil de se dizer donde vinha. E, não sei como, eu vi uma grande fazenda: a senhorial casa acaçapada, numa meia laranja de morro branco de cal, enrubescer sob o banho da luz da aurora; as vacas mugiam no curral próximo; o terreiro fronteiro era como vasto lençol estendido. Da senzala, sem que sequer ouvissem o gorjeio dos pássaros, em filas cerradas, saíam, sob o peso do cativeiro, algumas centenas de negros. Aquela viva linha negra a estender, silenciosa, humilde, tinha a energia oculta de um filete que se infiltra pela terra adentro. Depois de furar cem metros, rebenta aqui como uma fonte cristalina; se mais desce, mais pressão e mais temperatura ganha, e complexidade na composição; voltando à flor da terra, é agora termal; se mais baixo vai, mais forte fica, e lá, nos profundos recessos do planeta, complica, revoluciona, baralha, e provoca vulcões. Lá ia a fila negra unida, cerrada, por entre os cafezais...

      Olhei o escudo, as fantasias heráldicas, as armas de galés e, de mim pra mim, pensei:

      - Doce fila negra que mourejaste no cafezal, está ali também naquele níveo escudo; tu entraste nele sem querer; foste aí pela fatalidade das cousas e essa...

      - Não é isso que você quer?, disse-me o contínuo.

      - E eu acabei de raciocinar:

      - ... e essa, não há barões, viscondes, duques e reis que a desviem.

Com relação à questão racial, o seu discernimento é notável. Não lhe escapa o disfarce sutil do preconceito. Esse só poderia ser Lima Barreto, que emocionou-me com o fabuloso romance Clara dos Anjos, prefaciado por Sérgio Buarque de Holanda.

      "Clara do Anjos é o relato da vida de uma pobre mulata, filha de um carteiro de subúrbio, que, apesar das cautelas da família, é iludida, seduzida e, finalmente, como acontece tantas vezes nesses casos, é desprezada. O autor da façanha é um rapaz branco, de condição social superior à da vítima. É uma história em que Lima Barreto tenta pintar em cores realistas o drama tão comum de outras "Claras dos Anjos", de outras mulatinhas do mesmo ambiente. O romancista procurou fazer de Clara dos Anjos uma figura apagada, e não uma mocinha audaz que se oferece corajosamente ao perigo. Clara vive fechada, não vai à rua sozinha, não tem amigos. Mesmo assim, não escapa às garras do aventureiro. É como se nela Lima Barreto quisesse resumir a fatalidade que persegue as moças de sua cor. "A priori", diz ele, "estão condenadas e tudo e todos parecem condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social".

      Sofrendo na própria carne o problema do negro e do mulato, ele escreve o romance dessa fatalidade que persegue o homem e a mulher que são julgados pela cor e não pelo valor pessoal.

      Claro dos Anjos é iludida e traída porque é mulata; o rapaz branco que a ilude e despreza não sofre qualquer espécie de represália, justamente porque é branco."

O final do livro é tocante.

      "...Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente a sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

      - Mamãe! mamãe!

      - Que é minha filha?

      - Nós não somos nada nessa vida."

Hoje, dia 13, deixamos de ser nada. Existimos. Como disse a personagem de ficção, mas tão real.

Hoje, as Beneditas, as Chicas, as Claras dos Anjos, os Abdias, as Marinas e tantos outros existimos e estamos assumindo cada vez mais a possibilidade de reformular, de mudar a sociedade através de uma forma diferente de luta, a luta pela paz.

Nesta homenagem a Lima Barreto, brilhante escritor, por iniciativa do também brilhante professor e historiador que conhece essa causa, Senador Abdias Nascimento, eu diria que estamos vivendo um novo tempo.

Queremos atingir o objetivo de construir uma sociedade democrática e renovada, mas que necessita de alterações profundas na sua estrutura econômica e política.

Afonso Henriques de Lima Barreto, tenho esperança e fé de que o reconhecimento da questão racial como questão nacional será passo decisivo para entendê-la como responsabilidade de todos os que lutam pela edificação de uma sociedade justa, igualitária e fraterna.

Só tenho que agradecê-lo. Obrigada, escritor. Você deu o seu passo e deixou a sua histórica contribuição. Você existiu e continuará existindo para todos nós. A nossa homenagem, que, cheia de emoção, não deixa retratar a grande contribuição que, com a sua luta, com a sua lucidez, com o seu conhecimento e com o seu intelecto, você deu à Nação brasileira, para que ela pudesse ser mais justa, mais razoável com os diferentes, com esses que, juntamente com os índios, puderam dar a este País o que se chama miscigenação.

A você, com o respeito de quem conhece e admira os seus escritos, mas muito mais as suas ações, que fizeram que eu pudesse, retratando o seu desejo, caminhar nas sombras dos seus passos, do seu conhecimento e estar hoje na tribuna do Senado Federal, dizendo obrigada por suas obras, por seus feitos, por seus atos e pedindo desculpas a você, Lima Barreto, por ter vivido tão pouco, por ter sofrido tanto e dado uma das maiores contribuições que um negro brasileiro deu ao seu País.

Muito obrigada, Lima Barreto!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/1997 - Página 9527