Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DOS 110 ANOS DE NASCIMENTO DO ESCRITOR BRASILEIRO AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DOS 110 ANOS DE NASCIMENTO DO ESCRITOR BRASILEIRO AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/1997 - Página 9529
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO, ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

A passagem do dia 13 de maio tem sido motivo de manifestações diversificadas, tanto na forma quanto no conteúdo, ao longo desses quase 110 anos, desde a assinatura, em 1888, da chamada Lei Áurea, que pôs fim a mais de 450 anos de escravidão dos africanos e seus descendentes neste País. Por muito tempo essa data foi saudada como um marco da luta pela liberdade em nosso País, símbolo da pretensa superação, no Brasil, das odiosas barreiras que separam os diferentes grupos étnicos em todas as sociedades multirraciais. Nas últimas décadas, porém, por força da pressão exercida pelo Movimento Negro, com o apoio dos seus aliados nas arenas acadêmica e política, tem-se alterado substancialmente a visão dos brasileiros sobre a significação e a importância dessa data, com as previsíveis conseqüências no caráter das manifestações que sobre ela se organizam: no lugar da festa, a denúncia; em vez de louvações à Princesa Isabel, reflexões críticas sobre um tipo de sociedade moldado pela escravidão e a pesada herança legada pela forma como se deu a Abolição e a quem, na verdade, ela beneficiou.

Diferentemente da versão edulcorada da História até pouco tempo atrás predominante em nossos livros didáticos - e na qual muita gente ainda acredita, ou finge acreditar -, os motivos que levaram à Abolição se encontram no terreno da política e da economia. Nada têm a ver com a proclamada benevolência da família imperial, obrigada a extinguir a instituição escravista sob a pressão de forças históricas irresistíveis. Dentre elas se destacam a Revolução Industrial - que provocou a obsolescência do modo de produção escravista -, e, principalmente, a resistência dos próprios negros, que com o tempo foi ganhando mais e mais aliados e simpatizantes entre os segmentos mais sensíveis de nossas elites intelectual e política.

Realizada, bem ao gosto dos poderosos deste País, num ritmo lento - muito lento, na verdade -, gradual e "seguro", a Abolição acabou resguardando os interesses dos grandes fazendeiros e senhores de escravos e também de nossa então incipiente burguesia industrial. Nessa ordem, o que menos pesou foram as necessidades dos africanos e afro-brasileiros escravizados. Do contrário, não teriam sido sumariamente rejeitadas as propostas, como a do ilustre engenheiro negro André Rebouças, que postulavam realizar-se, simultaneamente com a Abolição, uma reforma agrária. Esta não foi feita então - e acabou não sendo feita até hoje, gerando graves problemas no campo, ao lado do inchaço de nossas grandes cidades, origem de mazelas como o alto índice de criminalidade urbana, os menores abandonados, as favelas e assim por diante. E não foi feita por um motivo muito simples: desejava-se garantir a existência de uma reserva de mão-de-obra barata, o que não seria possível se os negros libertos se transformassem em pequenos proprietários rurais. Desse modo, o 13 de maio de 1888 significou uma grande farsa, na verdade a maior de nossa História. Uma farsa que jogou a população afro-brasileira na rua da amargura, de onde, cem anos depois, ela continua tentando desesperadamente escapar.

Quis o destino que exatamente num 13 de maio, no ano de 1881 - sete anos, portanto, antes de se pôr fim à escravidão -, viesse à luz na cidade do Rio de Janeiro, se não o maior escritor afro-brasileiro de todos os tempos, certamente uma das maiores expressões de nossa literatura, independente de origem étnica, e talvez o crítico mais contundente das mazelas de nossa sociedade, sobretudo de nossas elites. Refiro-me a Afonso Henriques de Lima Barreto, a quem convido a todos a render nossas homenagens no dia de hoje.

Homem de grande cultura, adquirida fundamentalmente como autodidata, humilde funcionário público que se tornou jornalista e escritor, a vida de Lima Barreto foi uma constante batalha contra as condições adversas impostas à população afro-brasileira em sua época. Situação que, infelizmente, não mudou substancialmente nas sete décadas que nos separam de sua morte prematura, aos 41 anos de idade. Dono de uma obra extensa e variada, que o levou a se candidatar, sem êxito, à Academia Brasileira de Letras, seu talento e valor literário só seriam reconhecidos muito tempo depois, consagrando-o, apesar de tudo, como um vencedor.

Nascido antes da Abolição e tendo vivido as incertezas que caracterizaram os primórdios de uma República que, em certos aspectos, se mostrava ainda mais reacionária do que a Monarquia que viera substituir, Lima Barreto não só testemunhou como deu ressonância aos conflitos e dissabores do seu tempo. Inconformado com a podridão do mundo que o cercava, fez do jornalismo e da literatura suas armas na luta sem tréguas que travou diuturnamente contra a elite encastelada nas posições de poder deste País. Ao mesmo tempo, como afirmou Monteiro Lobato, com tanta ou mais maestria do que Machado de Assis - outro afro-brasileiro guindado pelo talento aos píncaros de nossa literatura -, Lima Barreto foi o cronista da gente simples como ele, pois fugia da literatura meramente contemplativa, bem como à inoperância social do texto.

Com efeito, para Lima Barreto, a função da literatura e do jornalismo era "tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior". Tais preocupações fizeram dele um homem antenado não apenas com o seu tempo, mas também com o futuro. Capaz de antever, por exemplo, os problemas ecológicos que o Rio de Janeiro enfrentaria muitas décadas depois, prenunciados em artigos em que apontava a desfiguração da cidade por obra da especulação imobiliária, com o indispensável apoio das autoridades municipais. Que, no afã de "remodelar" a então Capital Federal, derrubavam florestas, aterravam a baía de Guanabara, especulavam com os terrenos pantanosos de Copacabana, Ipanema e Leblon, dando início a um processo de ocupação desordenada do solo urbano que responde por grande parte dos problemas mais sérios que o Rio enfrenta em nossos dias.

Voz solitária em seus ataques contra os especuladores e a degradação do meio ambiente, Lima Barreto foi um crítico feroz da macaqueação arquitetônica que pretendia fazer do Rio de Janeiro uma cópia de Nova Iorque e seus arranha-céus: "Por mera imitação daquela aglomeração humana, enchemos o Rio de Janeiro de descabelados sobrados insolentes de cinco, seis andares (...). Uma cidade como a nossa, semeada de colinas pitorescas, arborizadas ou não, que formam seu verdadeiro encanto, se se seguirem essas construções, em breve ela perderá seus horizontes originais (...)". Apesar das advertências de Lima Barreto, dia a dia o Rio de Janeiro vai perdendo seus encantos em favor da especulação imobiliária e de outras especulações.

      Em outro artigo, publicado em 1921, Lima Barreto fornece uma sombria e precisa antevisão do futuro daquela e de outras cidades brasileiras: "A megalomania dos melhoramentos atraiu para a cidade milhares e milhares de trabalhadores rurais. E com o aumento da população, outros problemas se acrescentam: o da água, o dos esgotos, o dos transportes."

Pode-se constatar, assim, que os problemas hoje enfrentados pela antiga capital, envolvendo o bem-estar social, o planejamento urbano e a preservação da natureza, foram anunciados nos primeiros decênios deste século pela visão profética de Lima Barreto. Muito antes de esses mesmos problemas desqualificarem essa cidade em suas pretensões de sediar os primeiros Jogos Olímpicos do século XXI...

Embora não chegasse a ser propriamente um marxista - foi mais influenciado pelo liberalismo spenceriano e pelo anarquismo de Kropotkin -, poucos souberam em sua época reconhecer a significação política da Revolução Russa de 1917. Assim como poucos tiveram tanta lucidez ao analisar os problemas sociais do período imediatamente subseqüente à Primeira Guerra Mundial. Seus escritos sempre manifestavam a sincera intenção de libertar as massas, o que acabaria por torná-lo partidário do maximalismo. Vendo na burguesia legiferante a força reacionária que impedia, entre nós, as reformas tornadas inadiáveis pelos novos tempos, desmascarou sua aliança com os plutocratas e latifundiários da aristocracia rural, e por diversas vezes se manifestou favorável a uma revolução no estatuto da terra. Também se interessou pelos Estados Unidos, devido ao tratamento desumano de que então eram vítimas os afro-americanos. Censurou duramente o expansionismo imperialista daquele país que, por meio da "diplomacia do dólar", ia, em sua perspectiva, convertendo o Brasil num autêntico protetorado.

Outro alvo predileto dos ataques do grande escritor era o futebol, que ele ridicularizava em suas crônicas com todo o sarcasmo de que era capaz. Antes que alguém aponte nisso uma contradição, por ser ele tão ligado às coisas do povo, deve-se ter em conta que esse esporte não era então absolutamente popular. Pelo contrário: tratava-se de um esporte de elite, cujo acesso tentava-se vedar aos pobres, em geral, e aos negros, em particular. Daí a sagrada fúria com que Lima Barreto tratava seus praticantes, fúria essa que só fez crescer quando o Presidente Epitácio Pessoa tomou a iniciativa de proibir a convocação de jogadores negros para a Seleção brasileira que participaria de um torneio internacional.

A polícia de então, precursora da instituição que hoje nos acostumamos a ver associada à tortura e ao massacre de pessoas indefesas, não poderia escapar ao garrote de sua pena:

      "A polícia da República" - escreveu Lima Barreto no conto Como o homem chegou - é paternal e compassiva no tratamento das pessoas humildes que dela necessitam; e sempre, quer se trate de humildes, quer de poderosos, a velha instituição cumpre religiosamente a lei. Vem-lhe daí o respeito que aos políticos os seus empregados tributam e a procura que ela merece desses homens, quase sempre interessados no cumprimento das leis que discutam e votam."

Atualíssimo, como se vê, inclusive na referência à classe política...

República dos Bruzundangas - esse o termo cunhado pelo sarcasmo de Lima Barreto para cognominar o Brasil de então, que, desafortunadamente, continua a ser o Brasil de hoje: República das falcatruas, das trapalhadas, dos conchavos. Enquanto nos tempos coloniais os poetas comparavam o Brasil, por seus contornos geográficos, a uma harpa, Lima Barreto o via como um presunto, e assim explicava sua alegoria:

      "Até aqui não tinha sido comido. Mas tem sido roído. Roem-no os de fora. Roem-no os de dentro. Mas não há meio, quer uns, quer outros, de o deglutirem completamente. O diabo da perna de porco resiste à voracidade interna e externa de uma maneira perfeitamente milagrosa".

Vivesse em nossos dias, decerto que Lima Barreto iria juntar-se, em sua indignação, às fileiras da luta contra o entreguismo dos que, em sua fúria globalizante e supostamente modernizadora, exercitam os dentes roendo, sem muito pudor, o patrimônio nacional.

Se toda essa competência e coragem o tornariam admirado não somente pelos amantes das Letras, mas também pelos simpatizantes de todas as causas libertárias neste País, a vida de Lima Barreto foi uma verdadeira síntese das injustiças e sofrimentos que marcam até hoje a existência do povo afro-brasileiro. Sua mãe morreu em 1887, vítima de tuberculose galopante, doença que grassava nos cortiços do Rio e cujo combate as autoridades sanitárias preteriram em favor da luta contra a febre amarela. Explica-se: enquanto esta vitimava os brancos, sobretudo imigrantes, que não haviam desenvolvido os anticorpos correspondentes, aquela atacava preferencialmente os negros, cuja condição financeira não favorecia os cuidados higiênicos e alimentares capazes de protegê-los. Contra todas as dificuldades, Lima Barreto ingressa, em 1897, na prestigiosa Escola Politécnica do Rio de Janeiro, em busca de um diploma de Engenharia que jamais conseguiria obter. Como se não bastasse a perseguição declarada de professores confessadamente racistas, em 1903 seu pai fica louco, o que o obriga a abandonar os estudos para sustentar a família. É quando começa a trabalhar no Ministério da Guerra como simples amanuense, função humilde que desempenhará - a despeito de sua cultura - até ser aposentado em 1918, como "inválido para o serviço público", em razão do alcoolismo. O mesmo vício que já o levara algumas vezes ao hospício e que acabaria contribuindo para sua morte prematura, em 1922, por colapso cardíaco.

Sobre esse talentoso e sofrido escritor, o renomado crítico Jackson de Figueiredo emitiu esta opinião:

      "Lima Barreto é, entre nós, na verdade, o tipo perfeito de analista social, mas um analista que combate, que não ficou como Machado de Assis, por exemplo, no círculo de uma timidez intelectual esquiva ao julgamento. Ele não se limita a mostrar todos os fundos da cena, o que vai pelos bastidores da vida; toma partido, assinala os autores que falam a linguagem da verdade, mostra o que há de falso, de mentiroso na linguagem dos outros(...). Não tem as delicadezas, as intenções filosóficas de Machado de Assis, veladas pelo sorriso cético. Antes é um forte, chicoteia os vendilhões da dignidade nacional."

A prolífica obra de Lima Barreto inclui os romances Recordações do escrivão Isaías Caminha, Triste fim de Policarpo Quaresma, Numa e a ninfa, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Clara dos Anjos, além da sátira Os Bruzundangas e de numerosos contos e crônicas reunidos em diversas coletâneas.

A melhor versão da nossa história de africanos e de afro-brasileiros só nós mesmos, com nossas razões de vida, podemos contar. Na versão de Lima Barreto, essa é uma história trágica, de sofrimento e revolta, de crueldade, desespero e ódio. Mas também - e talvez mais que tudo - de imenso amor por uma terra que nós inventamos com trabalho e sangue, que nós construímos com nossos bagos de esperma e lágrimas e esperanças, mas que, em troca, só nos tem dado o desprezo, a humilhação, a exclusão. Graças, porém, à luta tenaz de homens como Lima Barreto, competentes desmistificadores das verdades oficiais, o Brasil vem, pouco a pouco, tomando consciência de seus problemas mais graves - o racismo dentre eles -, e procurando maneiras de resolvê-los.

Nossa homenagem, pois, neste 13 de maio, a esse grande negro, a esse grande escritor, a esse grande brasileiro, na certeza de que, onde quer que ele esteja, há de estar feliz vendo crescer o número de brasileiros em geral, e de afro-brasileiros em particular, engajados de corpo e alma na busca de cura para as mazelas que sua pena magistral acuradamente apontava, há tantas e tantas décadas.

Axé, Lima Barreto!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/1997 - Página 9529