Discurso no Senado Federal

30 DIAS DO ASSASSINATO DO INDIO PATAXO GALDINO JESUS DOS SANTOS, EM BRASILIA. NECESSIDADE DE UNIÃO DOS PAIS, EDUCADORES, JUIZES, LEGISLADORES E GOVERNANTES VISANDO CONDUZIR A REFORMA DE NOSSA SOCIEDADE, PARA NÃO MAIS OCORRER FATO DESTA GRAVIDADE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • 30 DIAS DO ASSASSINATO DO INDIO PATAXO GALDINO JESUS DOS SANTOS, EM BRASILIA. NECESSIDADE DE UNIÃO DOS PAIS, EDUCADORES, JUIZES, LEGISLADORES E GOVERNANTES VISANDO CONDUZIR A REFORMA DE NOSSA SOCIEDADE, PARA NÃO MAIS OCORRER FATO DESTA GRAVIDADE.
Publicação
Publicação no DSF de 22/05/1997 - Página 10253
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • DEFESA, NECESSIDADE, PROMOÇÃO, SOCIEDADE, BRASIL, RESTAURAÇÃO, SOLIDARIEDADE, HOMEM, RESPONSABILIDADE, PROFESSOR, PAES, JUIZ, GOVERNANTE, OBJETIVO, PREVENÇÃO, OCORRENCIA, CRIME, AUTORIA, ADOLESCENTE, MENOR, HOMICIDIO, SIMILARIDADE, GALDINO JESUS DOS SANTOS, INDIO.

              O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, faz hoje trinta dias que Brasília, o Brasil e o mundo acordaram estarrecidos com o quase inacreditável assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. Digo "quase inacreditável", pois sua dura realidade não nos permitiu achar que fosse um terrível pesadelo do qual acordaríamos suados e ofegantes, com o peito oprimido, mas libertos pelo nascer de um novo dia de sol que penetra pela janela de nossos quartos aconchegantes.

              Que fio invisível, frágil e sutil rompe-se de maneira tão abrupta, fazendo mergulhar jovens de vidas aparentemente normais no mundo negro e terrificante do crime hediondo e sem motivo?

              Que mão misteriosa empurra para a barbárie jovens que são descritos por seus próximos como essencialmente calmos, prestativos, atenciosos e não afeitos às bebidas ou drogas?

              Quão terrível deve ter sido o tédio sentido por esses jovens para que, no desespero do ócio, fossem buscar motivação ou excitação na destruição física de um seu semelhante?

              Que pesada carga de desesperança carregam sobre os ombros jovens para os quais o futuro mal começa a se tornar presente?

              Que sociedade criamos nós, seus pais e avós, que leva jovens rapazes a um beco escuro e sem saída, destruindo-lhes a vida e dilacerando-nos a própria carne?

              Que monstros somos nós que cultivamos em nossas próprias casas réplicas reais da ficção "stevensoniana" de Dr. Jekyll e Mr. Ride? De dia, jovens sadios e benquistos. De noite, assassinos inconseqüentes.

              O caráter lúdico do crime praticado causa-nos arrepios de horror. Faz lembrar a frívola Viena de 1938, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, quando judeus eram transformados em objetos de diversão pública e obrigados a se despirem na rua.

              Podemos continuar sentados nas poltronas azuis da cor do céu deste Plenário, mantendo nossas consciências tranqüilas perante tal fato?

              Sr. Presidente, nobres Pares, não é possível que não vejamos que nossa sociedade está gravemente enferma. A violência que nos cerca não é fruto somente da ação individual do criminoso ocasional ou contumaz.

              Se esses jovens brasilienses foram os agentes diretos de um crime sem perdão, nós, seus pais, seus mestres, os dirigentes da sociedade somos os agentes indiretos que permitimos, por ação ou omissão, que tais aberrações floresçam em nosso meio.

              Não busquemos justificativas vãs para nos esquivarmos, cada um por si, da co-responsabilidade nesse terrível episódio e em todos os outros semelhantes que vicejam Brasil afora. Não somos assassinos, mas também não somos solidários com nossos concidadãos. Esse é o grande mal da sociedade moderna: o individualismo, mal disfarçando, qual rota máscara de carnaval, um egoísmo cada vez mais sufocante.

              Por que e para que o absurdo de um grupo de jovens queimarem um índio pobre que dorme de madrugada em uma parada de ônibus? Por que não fazerem exatamente o oposto: oferecerem a solidariedade que aquele homem necessitava?

              Onde está a solidariedade entre os cidadãos? Tornou-se algo para ser admirado pela televisão, ou praticado pelo telefone 0800 das campanhas beneficentes?

              Tornamo-nos espectadores da dilaceração do tecido social, protegidos pela redoma de concreto deste belo palácio brasiliense, ou resguardados em nossas casas vigiadas por porteiros eletrônicos e grades pontiagudas?

              Não há mais como tergiversar. Começamos a colher o fruto daquilo que semeamos para nós e para as gerações que nos sucederão. Eu não estaria aqui perorando sobre um tema sobejamente explorado nesses últimos trinta dias, se fôssemos os únicos interessados. Todavia, não se trata disso. Trata-se da sociedade que estamos preparando para nossos filhos, netos e os filhos de nossos netos.

              É normal sentir raiva, medo, tédio, frustração, angústia, ainda mais na fase rebelde da juventude. São manifestações sadias do nosso corpo e de nossa psique, na busca do equilíbrio e da capacidade de reação frente às situações geradoras de tais emoções. O que não é normal é que tais sentimentos se traduzam por manifestações desequilibradas, extremadas, conduzindo o indivíduo a conflitos limitadores ou destruidores de sua capacidade de realização pessoal posterior.

              Exacerbamos a tal ponto nossos conflitos sociais e interpessoais, que, infelizmente, chegamos a este final de século discutindo o que é e o que não é humano. A desculpa dada por um dos jovens implicados no crime denota bem essa dialética: o mendigo não é humano para ele.

              É tradicional a disputa entre grupos. A novidade no caso desses jovens é não reconhecerem, no outro, um semelhante. As pseudobrincadeiras são feitas com pessoas que não as denunciam. Parece fazer parte da cultura de nossa classe média importunar o pobre, o mendigo, o marginalizado. Perdeu-se o sentido da solidariedade e, com ele, o sentido da própria existência em sociedade.

              Aos vinte anos nossos jovens desconhecem grandes aspirações. Eles têm a impressão de que tudo o que havia a ser conquistado já o foi por seus pais. Ao mesmo tempo, tais jovens recebem estímulos à agitação e a não se interiorizarem. Com isso eles só se reúnem para se agitar e demonstrar poder.

              Não importa a pessoa que se vitima, mas simplesmente que ela, por ser de uma classe social inferior, é um nada a partir do qual o agressor mostra que tem poder. Poder de quem fica impune.

              Assim é que a morte do índio Galdino Jesus é fruto, em primeiro lugar, de uma cultura histórica brasileira de impunidade, de apropriação privada do espaço público.

              A impunidade é a principal causa dos crimes cometidos por jovens de classe média, concorda a maioria dos especialistas. A ela se somam a falta da imposição de limites ao comportamento da juventude e a própria falta de solidariedade da sociedade.

              Os cinco jovens que trucidaram Galdino são certamente amorais, produtos acabados dessa nossa sociedade individualista. Seres humanos sem ideal, sem bandeira para empunhar na vida, são como autômatos a repetirem os rituais de sobrevivência. Vivem, agem e reagem como se fossem programados; sem saber muito o porquê, nem o como de suas próprias existências.

              Eis-nos vivendo e fabricando uma sociedade do ter e não do ser. Nós nos realizamos com etiquetas que atribuem a nós valores de mercadoria. E mercadoria, quando sobra, vai para a queima de estoque. Assim se queimam etnias, culturas, civilizações, nas macabras liquidações pela fome, pelo extermínio, pela indiferença social.

              Diuturnamente confrontamo-nos, um pouco por toda a parte, com uma juventude empobrecida culturalmente, que pensa pouco, que não medita. Que se veste da mesma forma, qual um exército de desgarrados. Vivem em grupos, mas celebram a alienação e o individualismo. Eles são os filhos do neo-liberalismo, não acreditam mais nas utopias da igualdade, da fraternidade e da liberdade. Protegem micos leões-dourados e queimam mendigos.

              A absurda morte do índio Galdino tem sua lógica. A mesma de tantos fatos que mostram a intolerância e o desprezo da parte rica da sociedade brasileira para com seus pobres excluídos: um modelo social consumista, individualista, concentrador, excludente.

              Acostumamo-nos com a tragédia social, porque a pobreza faz parte da lógica da riqueza econômica e da modernidade que escolhemos para o País e para cada um de nós. Uma riqueza construída graças ao consumo dos recursos necessários à educação e à saúde públicas. Riqueza que concentrou renda entre os ricos e dispensou os pobres. Riqueza concentrada que criou um tal abismo entre pobres e ricos, que é como se eles já não fossem parte de uma mesma sociedade, como se não fossem semelhantes.

              Essa completa inversão de valores não pode impedir que se faça justiça ao pataxó Galdino Jesus dos Santos. Justiça que deve ir além da punição dos culpados diretos e continuar com uma revolução nas prioridades que orientam nossa sociedade. Com a construção de uma sociedade nova, com dignidade, que eleja como valores a cultura e o espírito e não apenas a produção e o consumo.

              Não há futuro sem um ideal. Não há sociedade sem um querer comum. Não há comunidade sem o respeito de si e dos outros. Não há Nação sem projeto de solidariedade entre seus membros. Não há razão de existir o Estado, se ele não é que capaz de promover as condições essenciais de formação de cidadãos sadios e solidários. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são os espelhos que refletem a sociedade que construímos e que estamos preparando para os que virão após.

              Se o berço da educação de nossos jovens é a família, a escola é a fonte do espírito cívico, da solidariedade social, do respeito à cidadania. Urge que nossas escolas se transformem em células-mãe de cidadãos, para que os brasilienses e brasileiros das gerações que chegam aprendam, desde a mais tenra idade, o amor e o respeito ao seu semelhante. Aos que dirigem este País cabe esta tarefa basilar para a formação das pessoas que constituirão a sociedade e os governantes brasileiros do século XXI.

              Não há como substituir os pais na tarefa educadora de seus filhos, mas o Estado não se pode eximir da obrigação constitucional de formar cidadãos pela instrução escolar. Só assim nossos jovens serão orientados e adquirirão os limites éticos de comportamento que todo ser social deve incorporar para ter uma convivência sadia com seus semelhantes. Mesmo as sociedades mais antigas e primitivas possuíam regras de convivência baseadas no respeito entre seus membros para que a coexistência fosse possível.

              Ao Poder Legislativo está reservado o papel de dar à sociedade as regras que ela necessita para manter sadias as relações entre as pessoas e os grupos que a compõem. Não podemos nós, Legisladores, assistir a episódios como o desses cinco jovens e permanecermos inertes, na expectativa da ação dos outros Poderes da República. Temos de começar já a lutar para restabelecer em nosso País a solidariedade que nos falta.

              Não se espera da Justiça nada menos do que ser exemplar. Ágil. Expedita. Imparcial. Equânime. A reparação social do dano causado por membros de nossa comunidade deve ser incontornável.

              Mais que tudo, pais, educadores, juízes, legisladores, governantes devem se unir para conduzir a reforma de nossa sociedade. A ética baseada no valor do ser mais e melhor para si e para os outros deve ser o paradigma da construção da sociedade brasileira.

              Não podemos criar filhos do ócio, da desesperança, do vazio de ideais. Não há vida neste planeta sem o sol para fazê-la brotar. Não há vida no coração do homem sem o Sol de uma utopia por que lutar.

              O sacrifício do índio Galdino não pode ficar apenas nos anais dos tribunais de justiça. Ele tem de ficar gravado na alma de cada brasileiro e ajudar a criar uma nova utopia de solidariedade neste País.

              Se não agirmos assim, estaremos assumindo que também nossos filhos ou netos poderão tornar-se, um dia, jovens brasilienses que, para matar o tédio, matam um homem.

              Sr. Presidente, era o que tinha a dizer.

              Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/05/1997 - Página 10253