Discurso no Senado Federal

ALARMANTE FENOMENO DA DESERTIFICAÇÃO EM ESTADOS DA REGIÃO NORDESTE. TRANSCURSO DO 'DIA MUNDIAL DE LUTA CONTRA A DESERTIFICAÇÃO'.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • ALARMANTE FENOMENO DA DESERTIFICAÇÃO EM ESTADOS DA REGIÃO NORDESTE. TRANSCURSO DO 'DIA MUNDIAL DE LUTA CONTRA A DESERTIFICAÇÃO'.
Publicação
Publicação no DSF de 18/06/1997 - Página 11784
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • ANALISE, AUMENTO, REGIÃO ARIDA, MUNDO, CONCENTRAÇÃO, PAIS SUBDESENVOLVIDO, PROVOCAÇÃO, FOME, PREJUIZO, ECONOMIA.
  • REGISTRO, OCORRENCIA, EXCESSO, DESMATAMENTO, UTILIZAÇÃO, AGROTOXICO, DETERIORAÇÃO, TERRAS, REGIÃO, ESTADO DE RONDONIA (RO), MUNICIPIO, ALEGRETE (RS), ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), PROVOCAÇÃO, EROSÃO, PERDA, EQUILIBRIO ECOLOGICO.
  • CITAÇÃO, DOCUMENTO, UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUI (UFPI), ANALISE, DIAGNOSTICO, AUMENTO, REGIÃO ARIDA, REGIÃO NORDESTE, AMBITO, IMPACTO AMBIENTAL, PECUARIA, AGROINDUSTRIA, IRRIGAÇÃO.
  • ESTATISTICA, PROCESSO, AUMENTO, REGIÃO ARIDA, ESTADOS, REGIÃO NORDESTE, NECESSIDADE, MOBILIZAÇÃO, REVERSÃO, SITUAÇÃO.

           O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há cerca de um século, em suas andanças pelo interior do Nordeste, o beato Antônio Conselheiro profetizava a futura transformação do sertão em mar e do mar em sertão. Uma legião de miseráveis o seguia por toda parte, mesmerizada por sua eloqüência e por seu aspecto de anacoreta em andrajos, multidão que seria martirizada no holocausto de Canudos. Essa gente, por certo, ouvia esse e outros vaticínios ao mesmo tempo em que refletia sobre a enorme desproporção entre as forças do homem e as da Natureza, a cuja inclemência o sertanejo se habitua desde o nascimento.

           A ciência geológica, de fato, confirma a predição do Conselheiro. A partir, por exemplo, da presença de fósseis de animais marinhos encontrados muito longe do mar, é possível ter-se a certeza de que áreas que hoje são de terra firme -- como o nosso sertão -- já estiveram debaixo da água do mar; do mesmo modo, o fundo dos oceanos mostra aspectos da terra emersa que foi antes e virou mar. O processo natural dessas transformações toma milhares, se não milhões de anos, estando fora de qualquer escala humana, de medida, observação ou intervenção.

           Um outro processo de transformação da face da terra, bem menos demorado e que pode ser influenciado pelo homem, para o mal e para o bem, é o da desertificação. De modo análogo ao dos movimentos da crosta terrestre, que elevam e rebaixam as terras, colocando-as à tona ou embaixo do mar, a desertificação pode ser natural: a região do grande deserto do Saara foi uma planície fértil até dez mil anos atrás -- há pouco tempo, na escala geológica -- quando o homem já caminhava sobre a terra, mas ainda sem o poder destrutivo de hoje. Como o Saara, há outros desertos naturais na terra, formados pela deposição de areia arrastada pelos ventos, pela influência de cadeias montanhosas que barram os ventos carregados de umidade, ou por outros fatores.

           Eis, porém, que um fator apressa hoje a formação de desertos numa escala antes desconhecida. Trata-se da ação humana, essa novidade -- sempre em termos da História da Terra -- que representa, para o planeta, tantas ameaças, que alguns pensadores já se perguntaram se não seremos um erro da evolução, uma experiência da seleção natural que passou a expor toda a criação ao risco de desaparecimento.

           É um fato triste e necessitado de urgente reversão, Senhores Senadores: dados abalizados de entidades internacionais denunciam que, nas últimas décadas, a área desertificada no mundo aumenta anualmente de 60 mil quilômetros quadrados. É uma área superior, em cerca de 12%, a de Estados brasileiros como Rio Grande do Norte e Paraíba, tomados individualmente, ou 18% maior que a área dos Estados de Alagoas e Sergipe somados.

           Essa área toda, Senhor Presidente, tenho de repetir, é perdida para a lavoura a cada ano! O uso descontrolado de agrotóxicos, o desmatamento, o emprego de queimadas, a superexploração da terra e a irrigação mal feita são os principais fatores antrópicos da desertificação. Destaque-se, entre esses fatores, a presença de dois exemplos do emprego inadequado da tecnologia: agrotóxicos e irrigação. Isso ocorre, em grande parte, porque populações de baixo nível de instrução, sem preparo para o trato com técnicas modernas, são submetidas ao canto de sereia de empresas multinacionais que só pensam em vender seus equipamentos e drogas, sem se preocupar com a informação aos usuários.

           O pior, e que não constitui qualquer surpresa, é que esse processo ocorre, em sua maior parte, em países pobres, onde uma população miserável vê reduzir-se, anualmente, a área capaz de suportar a cultura de alimentos. Dos 22 países mais atingidos pela desertificação, 18 estão entre os mais pobres do mundo. Cerca de 80% das pessoas afetadas pela desertificação residem nos países subdesenvolvidos -- mais de 150 milhões de pessoas, ou o equivalente a toda a população do Brasil.

           Nesses países, a produção de grãos per capita reduziu-se de 30% em relação a 1967, enquanto vários milhões de pessoas vêm morrendo de fome nessas regiões, nos anos 80 e 90. Em todo o mundo, os desertos crescem da seguinte maneira: primeiro, a floresta se transforma em savana; em seguida, a savana se torna estepe; finalmente, a estepe se faz deserto, numa progressão da umidade regular para a secura extrema.

           É o caso típico do Saara, que continua a crescer para o norte e para o sul, impulsionado por fatores naturais e humanos. Além do Magreb, ao norte, e o Sahel, ao sul, que se integram progressivamente ao Saara, um relatório da ONU apontava, em 1988, como mais expostas ao perigo da desertificação, até a entrada do próximo século, as seguintes regiões: na América do Norte, uma faixa que une o Sudoeste dos Estados Unidos às proximidades da Cidade do México; na América do Sul, os Andes, desde o lago Titicaca até Oruro, na Bolívia, e uma faixa no centro-oeste da Argentina; na Ásia, uma faixa ao centro do continente, do Líbano ao Paquistão, estendendo-se ao norte até o Casaquistão, outra no centro-sul da China e uma terceira na Indochina; na Europa, o sudeste da Espanha; na Austrália, duas áreas no centro do país.

           A desertificação, assim, é na verdade um fenômeno espalhado por todos os continentes, embora atinja com maior gravidade os países mais pobres. O prejuízo anual, em termos de deseconomia causada pela perda de terras com aproveitamento econômico, foi calculado por técnicos da ONU e supera a barreira dos 26 bilhões de dólares, quantia 4 vezes superior, segundo os mesmos técnicos, à necessária anualmente para investimento em programas de combate ao problema, como reflorestamento, estabilização de dunas, implantação de novas técnicas agrícolas e orientação aos países mais pobres e mais atingidos pelo problema.

           Um caso alarmante de desertificação pela ação do homem é o do Mar de Aral, grande lago do Uzbequistão. Estatísticas oficiais informam que os 68 mil quilômetros quadrados de planícies que o circundam perderam mais de metade de seu volume d'água nos últimos 30 anos.

           Ali, o uso intensivo do solo, o desmatamento da vegetação nativa e o desvio de dois rios que deságuam no lago, feito com a finalidade de irrigar culturas de algodão, provocaram um assoreamento acelerado, bem como provocaram o recuo de suas margens em até 80 quilômetros, partindo-o em vários pedaços. O Mar de Aral, visto hoje dos satélites, já quase não aparece.

           Quem pensar que tudo não passa de alarme bobo de ecologistas radicais e desarvorados engana-se redondamente. Há conseqüências graves, para a economia da região, do ressecamento do Mar de Aral e da desertificação da área circunvizinha. A navegação no Aral -- outrora importante meio de comunicação e de transporte -- tornou-se impossível, e a indústria da pesca, que antes produzia cerca de 10% do caviar da antiga União Soviética, foi completamente liquidada.

           Para além disso, o grau de salinidade das águas do Aral foi multiplicado por 3, inviabilizando a vida dos peixes no que resta do lago e impossibilitando a utilização de sua água na agricultura. O vento, para agravar o quadro, leva a poeira salina banhada em pesticidas para longe, atingindo e infectando terras num raio de até 500 quilômetros de distância e semeando novos desertos.

           No Brasil, há duas áreas em que um grande dano ambiental já ocorreu, com vários quilômetros quadrados já desertificados. O que pode ser surpresa para alguns, nenhuma fica no Nordeste: a primeira é a região de Alegrete, no Rio Grande do Sul, e a outra fica em Rondônia.

           Na rica região gaúcha, o uso indiscriminado de pesticidas e o desmatamento provocaram a degradação da terra, alterando suas características edafológicas de permeabilidade e de equilíbrio bioquímico, desencadeando uma erosão incontrolável, com voçorocas cruzando a terra para todos os lados, posteriormente transformando em quase deserto o que foi campo fértil.

           Em Rondônia, os anos 90 começaram com cerca de metade da área de florestas do Estado já desmatada, segundo fotografias do satélite Landsat. Segundo técnicos, a cobertura vegetal da Amazônia é, na verdade, extremamente frágil, o que leva muita gente a se perguntar se o que já ocorreu em Rondônia não seria um prenúncio da próxima transformação de toda a Amazônia num novo Saara, caso precauções contra essa possibilidade não sejam tomadas imediatamente.

           O Nordeste, porém, não está livre da ameaça da desertificação, sendo apenas menos chocante para a opinião média a ocorrência desse processo em regiões já áridas ou semi-áridas do que em áreas de mata ou de campo, como as mencionadas. De fato, alguns teóricos restringem a aplicação do termo aos fenômenos de transformação de áreas subúmidas, progressivamente, em semi-áridas, áridas e superáridas.

           Esse é o ponto de vista, por exemplo, dos técnicos do Núcleo de Pesquisa e Controle da Desertificação no Nordeste do País, da Universidade Federal do Piauí. Em 1994, esses técnicos publicaram o estudo Quadro atual da desertificação no Nordeste do Brasil: diagnóstico e perspectivas, do qual passo a citar algumas conclusões.

           Para esses pesquisadores, a pecuária extensiva está correlacionada a 98% das microrregiões nordestinas afetadas pelo processo de desertificação. A criação de bois, cabras e ovelhas em liberdade reduz a vegetação forrageira, provocando a compactação do solo -- o que é a causa primária da erosão por voçorocas. Por sua vez, a elevada densidade demográfica da região, aliada à estrutura fundiária, onde predomina a grande propriedade, contribuem para a deterioração do solo, por implicarem um uso inadequado e intensivo da terra. O uso de água de baixa qualidade em projetos de irrigação é outro fator que contribui para o problema, ao provocar a salinização da terra, tornando-a estéril e mais sujeita à desertificação.

           O estudo dos professores piauienses cita os casos de vários projetos de irrigação e de agroindústria que faziam uso das águas de açudes e dos rios Jaguaribe e São Francisco e que fracassaram em seus objetivos de desenvolver a região e reduzir seus problemas socioeconômicos, por não levar em conta os impactos ambientais decorrentes do uso da água, de defensivos agrícolas e de sistemas inadequados de mecanização da lavoura.

           Todos os Estados nordestinos apresentam áreas afetadas pelo risco de desertificação, variando somente o tamanho da área ameaçada em relação à superfície total do Estado e o nível de risco. O Estado que possui o maior percentual de área com nível de desertificação muito grave é a Paraíba, com 29%. Destaca-se a região de Cariris Velhos, com o menor índice pluviométrico do País, de 240 milímetros anuais. Cinqüenta e dois por cento dos paraibanos residem em áreas de risco de desertificação, que constituem, no total, 70% da superfície do Estado.

           No Piauí, Estado dos pesquisadores que estou citando, 91% da população residem em áreas de risco de desertificação. Cerca de 57% do território são afetados pelo problema, sendo 24,1% em nível grave e 5,3% em nível muito grave.

           No Rio Grande do Norte se encontra a maior taxa absoluta de áreas afetadas pelo risco de desertificação: 80,5% do território do Estado, sendo 58% em nível grave e 7,5% em nível muito grave. A fração dos potiguares que vivem nessas áreas atinge 51,7%.

           Pernambuco, por seu lado, tem 75% de sua extensão em estágio grave ou moderado de desertificação, não apresentando, ainda, áreas com risco muito grave. Naquele Estado, mais de 3 milhões de pessoas são afetadas pelo processo.

           Alagoas e Bahia também não apresentam áreas com nível muito grave, mas têm, respectivamente, 40% e 46% de seus territórios afetados. Sergipe, por seu lado, não apresenta áreas com nível grave nem muito grave de risco, tendo, porém, 31% de sua extensão atingida por risco moderado de desertificação.

           Deixei para o final o Ceará, meu Estado, onde quase 3 milhões de pessoas vivem em áreas afetadas, que já representam quase 60% da superfície total daquela Unidade da Federação. Cerca de 28% estão em estágio grave de aridez, 19% em nível moderado e 13% em nível muito grave.

           Senhores Senadores: iniciei este pronunciamento citando um profeta do sertão, e vou encerrá-lo citando um outro. Quero dizer que o mais incrível, Senhor Presidente, é que já nos anos 20 deste século, em seu Sermão da Caatinga, o Padre Cícero Romão Batista, antecipando todos os cientistas e pesquisadores modernos, aconselhava e advertia:

   "Não derrubar o mato, nem mesmo um só pé de pau; não tocar fogo no roçado nem na caatinga; não caçar mais e deixar os bichos viverem; represar os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta; plantar cada dia pelo menos um pé de algaroba, até que o sertão todo seja uma mata só; construir uma cisterna no oitão de sua casa para receber a água da chuva; não criar o boi nem o bode soltos, mas fazer cercados e deixar o pasto descansar: se o sertanejo obedecer esses preceitos, a seca aos poucos vai melhorando e o povo terá sempre o que comer; mas se não obedecer, dentro de vinte anos todo o sertão será um deserto."

           Senhores Senadores: a divulgação desses fatos e das medidas necessárias para conter o processo de desertificação, no Brasil e no mundo, é necessária e urgente. Por isso, aproveito o ensejo da passagem do Dia Mundial de Luta contra a Desertificação para trazer a meus nobres Pares este alerta e esta convocação para a conscientização e o combate a mais esse flagelo a ameaçar nosso Nordeste e seu povo, bem como -- pudemos constatá-lo ao longo deste pronunciamento -- o de outras regiões do País.

           Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/06/1997 - Página 11784