Discurso no Senado Federal

REGISTRANDO O TRANSCURSO DO 'DIA MUNDIAL DAS CRIANÇAS VITIMAS DE AGRESSÃO', EM 4 DE JUNHO DO CORRENTE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REGISTRANDO O TRANSCURSO DO 'DIA MUNDIAL DAS CRIANÇAS VITIMAS DE AGRESSÃO', EM 4 DE JUNHO DO CORRENTE.
Publicação
Publicação no DSF de 19/06/1997 - Página 11910
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, CRIANÇA, VITIMA, AGRESSÃO.

              O SR.LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quatro de junho registrou-se o transcurso do Dia Mundial das Crianças Vítimas de Agressão. Não é data para comemorar. É data para difundir as denúncias contra a violência perpetrada contra as crianças. Num futuro -- quem sabe -- poderemos tirar tal data do calendário, por não ser mais necessária.

              A propósito dessa data, temos a dizer que a violência contra crianças e adolescentes em nosso País tem assumido proporções tão assustadoras, que coloca em risco não só a integridade física e psíquica das vítimas, mas também a própria noção de progresso social, econômico e político que a sociedade brasileira vem perseguindo.

              Lembro às Srªs e aos Srs. Senadores que violência não diz respeito somente aos espancamentos e assassinatos, como comumente entendemos. A violência a que me refiro compreende qualquer ato que transgrida, que desrespeite, que infrinja leis ou valores. Violento é qualquer fato que ofenda, corrompa ou ultraje as crianças. Desse modo, será violência qualquer manifestação que atente contra a proteção e os direitos das crianças inscritos em nossa Lei Maior e no Estatuto da Criança e do Adolescente, assim como será violência negar-lhes o direito à vida. Deixá-los morrerem à míngua de cuidados médicos é violência. Permitir que morram de fome é violência. Deixar de lhes proporcionar uma escola digna é violência. Constituirá violência, igualmente, deixá-los serem discriminados ou permitir que sejam vítimas de qualquer exploração, crueldade ou opressão.

              As agressões contra o menor são infligidas tanto no universo familiar quanto na rua. São seus agressores tanto os pais e responsáveis quanto os policiais encarregados de zelar pela segurança coletiva. São causadores de sua opressão tanto os patrões que exploram seu trabalho quanto as autoridades que se omitem em cumprir seus deveres.

              Uma das violações mais odiosas -- porque cotidiana e invisível aos olhos do mundo -- é aquela que ocorre no ambiente doméstico. Pais, mães, irmãos mais velhos, tios e tias se dão ao direito de repreender com rigor excessivo e espancar crianças, valendo-se da desculpa de que tais abusos são para garantir a disciplina. Essa prática é socialmente aceita e tolerada. Ninguém se mete. Isso é assunto da porta para dentro. Há um ignominioso silêncio cercando essa violação. E o pior disso é seu caráter perpetuador. Pesquisas revelam que uma pessoa vítima de espancamento se transforma num agressor. Um levantamento recente em escolas, nos Estados Unidos e na Índia, constatou que mais de noventa por cento das crianças tinham sido vítimas de espancamento. Perguntadas se usariam os mesmos métodos com os filhos, as crianças responderam afirmativamente.

              Não raro esses espancamentos redundam em ferimentos e até em mortes. Nos Estados Unidos, 46% das crianças mortas por negligência no socorro tinham menos de um ano. No Brasil, embora não haja estatísticas específicas para esses casos, a Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar -- PNAD de 1990 registrou que um milhão de pessoas se declararam vítimas de agressão. Um quinto dessa parcela da população era constituído por crianças e adolescentes. Quarenta por cento dos agressores eram conhecidos, sendo metade deles parentes.

              A imprensa no Brasil registra com regularidade os casos de agressão desde há muito. Alguns jornais voltados para as classes média e alta apresentam mais os casos de agressão fora de casa. Mas os periódicos de feição mais popular são pródigos em apresentar os casos domésticos, com especial ênfase nos de abuso sexual, principalmente aqueles que ocorrem nas classes populares. Isso não significa que não haja tais práticas nas classes média e alta. Apenas a imprensa resguarda a privacidade desse segmento. Isso fica claro ao se recorrer aos dados dos institutos médicos legais do País. Pesquisa feita no IML de São Paulo, em 1990, revela que metade das vítimas de estupro conhecem o agressor, sendo a maior parte dos delitos cometidos por parentes, particularmente pelos pais e padrastos.

              A violência contra a criança não é nova. No século XVIII, a criança era considerada como pouco mais que um animal, segundo a psicologia diferencial. Apenas na segunda metade do século XIX, meninos e meninas passam a ser percebidos como seres humanos autônomos. Vem daí o crescimento de disciplinas como a psicologia, a pedagogia, a pediatria e a psicanálise.

              A defesa aos direitos da criança é bem mais recente, advindo dos movimentos pelos direitos civis da década de sessenta, particularmente da luta das mulheres. Para a Administração Pública brasileira, por exemplo, crianças estavam na esfera dos órgãos de segurança pública até 1935; eram assunto da Justiça até 1967 e somente a partir dessa data passaram a ser objeto das instituições de promoção social.

              A escola, com seu processo de negação dos valores das crianças, não deixa de ser um espaço que viola a integridade delas. Se elas não são mais submetidas aos castigos físicos como o da palmatória, há mecanismos mais sutis de espancamento moral. Um deles é a negação da cultura e da linguagem das crianças das classes populares, que são discriminadas pelo "saber formal" que nelas deve ser inculcado na escola. Evasão e repetência são formas não tão sutis de violência, pois, ao mesmo tempo que lhes negam a cidadania representada pela aprendizagem, diminuem-lhes a auto-estima.

              Mas, se a violência familiar não é privilégio do Brasil, há outra forma que, infelizmente, nos é característica. Trata-se daquela que ocorre na rua. Ao longo das últimas décadas, essa prática passou por transformações que lhe revelam um aspecto cruel. Enquanto na década de quarenta a morte de adolescentes com armas de fogo era fruto de respostas a agressões, a partir dos anos setenta se reveste de um caráter macabramente planejado: são ações de tortura, de violência sexual cometida por policiais; aparecem as quadrilhas de tráfico de bebês; o trabalho escravo é denunciado, assim como aliciamento de garotas em garimpos. Como se vê, há uma sofisticação da violência fora de casa.

              Pesquisa do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas -- IBASE, abarcando os anos de 1991 a 1993, revela que um terço dos óbitos entre crianças e adolescentes foi por morte violenta: percentual semelhante ao de vítimas de acidente de trânsito para o mesmo segmento. Entre as vítimas de morte violenta, os homens representam mais de dois terços. Outro estudo, esse realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, revelou que 80,2% das crianças e adolescentes vitimados tinham entre quinze e dezessete anos. Desses, 85,9% eram homens. Mais de dois terços deles, vítimas de armas de fogo. O mais estarrecedor, Srªs e Srs. Senadores, é que a grande maioria das vítimas não tinha indicadores de envolvimento com a criminalidade. Tal revelação é importante porque parte do silêncio da sociedade sobre esse verdadeiro extermínio é baseado no falso pressuposto de que os jovens mortos seriam ligados ao tráfico de drogas ou à criminalidade.

              Para o Núcleo de Estudos da Violência, a intenção de matar dos agressores é clara, pois a maioria das mortes se dá por traumatismo craniano, hemorragia interna ou asfixia mecânica. Como responsáveis pelas mortes aparecem os policiais, com mais de dez por cento dos executantes. Mais de 70% dos agressores, no entanto, são desconhecidos. Isso significa que não houve investigações ou que essas não foram conclusivas e, conseqüentemente, os autores estão impunes. Essa grande lacuna de informações, muito provavelmente, esconde os grupos de extermínio.

              Das pesquisas realizadas fica claro que o alvo privilegiado são as crianças e adolescentes das classes populares, sendo a maior parte deles de trabalhadores ou de estudantes em fase de entrada no mercado de trabalho. As estatísticas localizam, por exemplo, um expressivo número de office boys mortos.

              O caso da Candelária, ocorrido em 1993, em que morreram oito crianças e adolescentes, é emblemático do que ocorre no Brasil. As crianças mortas chocaram o País, mas o fato não foi capaz de servir como vacina contra futuros assassinatos, que continuam, infelizmente, a ocorrer.

              A má condução das investigações -- a cargo da Polícia Militar -- associada aos meandros dos procedimentos judiciais levaram, até o momento, à condenação de apenas dois dos responsáveis. Alguns deles se livraram até mesmo de serem indiciados.

              Ironicamente, a maior punição sofreu Wagner dos Santos, um dos sobreviventes. Wagner hoje é um refugiado na Suíça, pois se teme por sua vida, uma vez que ele é o único capaz de reconhecer alguns dos assassinos. Outra grande ironia dessa trágica história é que, em determinadas fases do julgamento, a palavra desse menino foi colocada como único meio de prova para condenar os implicados, submetendo-o a uma pressão desumana.

              Esse episódio revelou o quanto a sociedade tem estado entorpecida para os assassinatos de crianças. Foi preciso um ato daquela proporção para despertar indignações. Infelizmente, parece que essa indignação já foi arquivada tanto nos armários das delegacias e tribunais quanto na consciência da sociedade. E, infelizmente, é preciso que presenciemos mais casos de violação, como esse recente de Diadema, para, de novo, despertar a indignação e pedir providências para acabar com a impunidade dos maus policiais militares. 

              Outra forma sutil de violência contra crianças e adolescentes é representada pelo trabalho precoce. Esse é aceito pela sociedade naturalmente, pois há um mito de que é preferível eles trabalharem a estarem nas ruas.

              Segundo as pesquisas, haveria mais de oito milhões de menores de quinze anos no mercado de trabalho. Sete por cento da mão-de-obra ativa seria formada por crianças de dez a quatorze anos. No meio rural, onde há concentração da riqueza e escassez da oferta de emprego, verifica-se não só o abuso dos patrões quanto ao pagamento, mas quanto às condições de trabalho, quase sempre perigosas. O maior mal causado por esse trabalho antes do tempo, que rouba às crianças a possibilidade de freqüentarem a escola, é que elas deixam de contribuir positivamente para o País. Primeiro, porque seus ganhos mal dão para elas se alimentarem; segundo, porque o Banco Mundial estima que dois anos a mais de escolaridade podem trazer um incremento de até 9% para o PIB nacional.

              Pelo que afirmam os cientistas sociais estudiosos do assunto, a violência contra a criança está de tal forma entranhada em nossa sociedade, que muitos nem vêem a necessidade de combatê-la. Essa violência tem raízes históricas profundas. Guardadas as proporções, os argumentos em defesa de trabalho infantil, hoje, se assemelham aos argumentos utilizados pelos senhores escravocratas contra a libertação.

              Em nossa sociedade, segundo as palavras do sociólogo Sérgio Adorno, a violência "se manifesta como uma espécie de linguagem da vida social que cumpre perversamente a função de integrar as distintas hierarquias e eixos de poder, enquanto expressão do autoritarismo socialmente implantado." O ditado popular que afirma ser "de pequenino que se torce o pepino" se manifesta bastante efetivo em todas as camadas sociais.

              A violência está institucionalizada de tal modo, que o aparelho policial continua, mesmo depois de tantas tragédias, a ser responsável pelo cometimento de muitos crimes. Quem quiser fazer uma denúncia, por exemplo, se defrontará com estruturas burocráticas que dificultam essa ação. Recebida a denúncia, a probabilidade de ela ser arquivada sem investigação é muito grande. Mesmo que chegue aos tribunais, como no caso da Candelária, os erros na condução dos inquéritos e a fragilidade das provas colhidas dão azo a manipulações para inocentar os criminosos. Sem falar na falta de proteção a testemunhas. No recente caso das atrocidades cometidas por policiais militares na Cidade de Deus, as testemunhas vieram a Brasília pedir socorro, pois corriam perigo de vida. Wagner dos Santos, como já dissemos, principal testemunha da Candelária, vive sob proteção da Anistia Internacional na Suíça.

              O Plano de Combate à Violência, do Ministério da Justiça, tem apresentado poucos resultados práticos, como podemos constatar pela continuidade dos crimes. Do mesmo modo, os encaminhamentos feitos pela CPI do Extermínio ainda não surtiram efeito.

              A violência contra crianças não só tem raízes históricas como também causas econômicas nitidamente identificáveis. Impossível não estabelecer uma correlação direta entre a mortalidade infantil nas classes populares e a concentração de riquezas, que em nosso País é uma das maiores. Basta ver que a metade mais pobre da população detém pouco mais de dez por cento da renda. Na década de oitenta, esse segmento teve reduzido seus rendimentos em um terço. Ao mesmo tempo, os cinco por cento mais ricos incrementaram seus ganhos em vinte por cento.

              De fato, Srªs e Srs. Senadores, constatamos que existe um hiato entre a democracia política por nós conquistada e a democracia econômica e social. Muito há que se fazer ainda para que essa grande parcela da população hoje excluída passe a ter acesso aos bens fundamentais para a sobrevivência e para que possam essas famílias protegerem suas crianças contra a fome, que é a forma de violência mais perigosa.

              A democracia precisa chegar também ao respeito aos direitos humanos. Para tanto, não seria necessário muito mais do que cumprir as leis de proteção da infância. Pois temos, além da Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente, calcado na concepção de proteção integral à infância. Bastaria que seus ditames fossem cumpridos e que seus instrumentos fossem colocados em prática.

              É preciso combater a violência ao mesmo tempo em que se busca a construção de uma ordem social mais justa -- tarefa na qual acreditamos estar o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso empenhado. 

              É necessário, por exemplo, no âmbito da legislação criminal, tipificar a violência contra crianças como crime hediondo, colocando-o ao lado de crimes como o de racismo e o de tráfico de drogas. O abuso sexual em família deve passar a ser encarado como crime autônomo, pois hoje é considerado apenas como agravante penal. O fim da impunidade dos maus policiais militares passará, certamente, pelo julgamento dos infratores por tribunais civis, como se vem discutindo ultimamente.

              Mas penso que mais importante que as medidas legais e administrativas é a mudança de mentalidade da sociedade, que deve, por exemplo, deixar de acobertar a violência doméstica, trazendo-a para o espaço público e permitindo a intervenção do Estado e a mobilização da sociedade para sua resolução.

              Nossa sociedade estará comprometendo qualquer possibilidade de progresso econômico, justiça social e harmonia nas relações interpessoais se não começar -- desde já -- a proteger as crianças das violações de que são vítimas.

              Era o que tinha a dizer. Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/06/1997 - Página 11910