Discurso no Senado Federal

REVERENCIANDO A MEMORIA DO POETA LUIS GAMA E DO ESCRITOR MACHADO DE ASSIS.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REVERENCIANDO A MEMORIA DO POETA LUIS GAMA E DO ESCRITOR MACHADO DE ASSIS.
Publicação
Publicação no DSF de 20/06/1997 - Página 11980
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, LUIS GAMA, POETA, ESTADO DA BAHIA (BA), MACHADO DE ASSIS, ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (BLOCO-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

É com grata satisfação que subo a esta tribuna para compartilhar com meus ilustres colegas desta Casa a oportunidade de reverenciarmos as memórias de dois homens de magna importância para a história e para a cultura deste País.

Quis o destino, com a riqueza que sempre nos reserva, apontar dois modos e dois tempos para olharmos um só fato dos anos de 1800. Falo de uma época de mudanças, de fervuras no caldeirão da liberdade, que por aqui era levado em fogo brando pelas elites, pois a escravidão se colocava como princípio motor da vida em terras brasileiras. Tão tímidas eram as vozes que ousavam erguer-se pela liberdade dos africanos e seus descendentes escravizados que, não fosse por eles próprios, não se sabe por quanto tempo mais se estenderia aquela tragédia que então parecia infindável.

Dois modos, dois olhares e dois afro-brasileiros que marcariam de forma definitiva a vida nacional, influenciando as gerações vindouras com o exemplo de suas trajetórias de vida -apesar de tão díspares - e de suas realizações. Refiro-me, em primeiro lugar, a Luís Gama, poeta satírico, precursor do abolicionismo, nascido em Salvador, Bahia, no dia 21 de junho de 1830, sobre quem me deterei mais adiante, e a Joaquim Maria Machado de Assis, nascido na mesma data, oito anos depois, no Rio de Janeiro. Um afro-brasileiro que iria destacar-se no campo das Letras, como poeta, romancista, crítico e cronista, enriquecendo a Literatura Brasileira de páginas primorosas, como as de Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

A importância da obra de Machado de Assis para a cultura brasileira ninguém pretende - nem poderia - ofuscar. Não foram poucas, porém, as críticas que lhe fizeram alguns de seus contemporâneos, homens que viviam a plenitude da causa abolicionista, quanto à sua postura de aparente indiferença por aquele movimento. Embora se impusesse com todo o talento às exigências intelectuais da época e demonstrasse uma singular habilidade em driblar as futricas e maledicências dos círculos intelectuais - pelo que merece todo o nosso respeito e admiração -, raras foram as oportunidades em que Machado de Assis demonstrou simpatia pela causa de seus irmãos escravizados. Não por acaso, ao endossar as palavras elogiosas com que o "mulato" Machado fora homenageado na imprensa após sua morte, conhecido intelectual da época fez uma única ressalva: "não se deveria chamá-lo de mulato, pois ele preferiria ser considerado um grego e não um negro". Sua genialidade, que mais tarde granjearia o reconhecimento como um dos mestres da Literatura Universal, nunca se somou ao legado libertário de um José do Patrocínio, de um Cruz e Souza ou de Luís Gama. Assim, foi praticamente à sua revelia que a história, persuasiva como só ela sabe ser, acabou incorporando o menino franzino do morro carioca do Livramento, que um dia iria fundar e presidir a Academia Brasileira de Letras, à galeria dos grandes gênios afro-brasileiros.

Bem diversa foi a trajetória de Luís Gama, marcada por fatos que poderiam ter-lhe afetado a humanidade, tê-lo embrutecido, fazendo-o fraquejar diante do drama da escravidão e das possibilidades de que dispunha para sobreviver. Sua mãe, uma mulher africana de nome Luísa Mahin, é hoje considerada um referencial mítico da identidade e das lutas dos afro-brasileiros contra o racismo. Descrita pelo próprio Luís Gama como "muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa", Luísa Mahin foi, na verdade, uma revolucionária cuja freqüente participação em projetos insurrecionais - inclusive as famosas revoltas dos Malês na Bahia - acabaria por levá-la várias vezes à prisão, até sua viagem sem retorno ao Rio de Janeiro, em 1837.

Na personalidade, na figura emblemática de sua mãe, de quem se viu separado desde os sete anos de idade, que Luís Gama construiu sua própria identidade, sua moral e seus valores libertários que tanto contribuíram para o entendimento e a construção da luta pela abolição da escravatura no Brasil.

Sobre o pai, um abastado fidalgo cujo nome sempre ocultou - talvez como forma de bani-lo da lembrança -, Luís Gama, em carta ao amigo Lúcio Mendonça, datada de 25 de julho de 1880, contou o seguinte:

      Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas, neste País, constituem grave perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Deve poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando o seu nome. (...) Ele foi rico; e, nesse tempo, muito extremoso para mim: criou-me em seus braços. Foi revolucionário em 1837. Era apaixonado pela diversão da pesca e da caça; muito apreciador de bons cavalos; jogava bem as armas, e muito melhor de baralho, amava as súcias e os divertimentos: esbanjou uma boa herança, obtida de uma tia em 1836; e, reduzido à pobreza extrema, a 10 de novembro de 1840, em companhia de Luís Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça, vendeu-me, como seu escravo, a bordo do patacho "Saraiva".

Outra contradição viveria Luís Gama. Embora tivesse apenas 10 anos de idade, sua naturalidade era a Bahia, terra de escravos famosos pela rebeldia. Por sua origem, viu-se seguidamente escolhido e rejeitado em diversos pontos de venda de escravos, antes de ser comprado. Passou o restante da infância vivendo na periferia de uma casa-grande, em São Paulo, envolvido em funções como as de copeiro, sapateiro e alfaiate. Só aos 17 anos aprendeu a ler e contar, graças à amizade e ajuda do jovem Antônio Rodrigues do Prado Júnior, estudante de humanidades que mais tarde viria a ser juiz.

Tão logo domina as letras, Luís Gama trata de reunir provas de que nascera livre, e vai "assentar praça". Entre 1848 e 1854, chega ao posto de cabo. Mas sua carreira militar é interrompida depois de submetido a conselho por suposta insubordinação, por ameaçar um oficial que o havia insultado.

Embora, como poeta, tenha publicado apenas um livro - Primeiras Trovas Burlescas de Getulino -, Luís Gama conseguiu, com sua verve satírica, em plena escravidão e em pleno Romantismo, abalar a unanimidade em torno dos rígidos cânones literários europeus vigentes naquele tempo. A oralidade africana, o olhar do afro-brasileiro, a afronta à norma culta do idioma são pulsantes nos versos de Luís Gama. Como se ele estivesse falando para uma cultura sobre as idiossincrasias de outra, o que ressalta nos versos do poema "Quem Sou Eu", conhecido popularmente como "Bodarrada":

Bodes há de toda casta

Pois que a espécie é muito vasta (...)

Bodes ricos, bodes pobres

Bodes sábios, importantes

E também alguns tratantes...

Aqui nesta boa terra,

Marram todos, tudo berra (...)

Tão rico é o nosso passado que decerto Olorum nos há de guiar para que não percamos - pois este é um iminente perigo - as riquezas do nosso presente. Quanto mais explícita, mais surpreendente - e às vezes cruel - se faz a história. Quantas de nossas crianças hoje, com o simples acesso a uma escola e alguma alimentação, não mudariam suas vidas, seus destinos, como ocorreu com Luís Gama - em condições ainda mais difíceis que as atuais.

Quero evitar recorrências, mas não posso. Luís Gama é ainda um símbolo de moral e dignidade. Foi um afro-brasileiro que, como Gregório de Matos dois séculos antes, ironizou os ridículos da corte e das elites que tanto influíram e ainda influem em nossas vidas, até mesmo na forma como nos tratamos no quotidiano. Não posso, assim, deixar de celebrá-lo. Não falo do louvor formal, insosso, das homenagens vazias. Falo da vibração de meu espírito por ancestral com quem me identifico na maioria das agruras, dentre as quais o sofrimento do cárcere, pelas razões desiguais da justiça em nosso País, a qual pune aqueles que lutam para fazer valer os princípios fundamentais da cidadania e do direito.

Mas o grande feito de Luís Gama, abolicionista desde 1850, foi ter conseguido, com sua atividade como prático de advocacia, mesmo sem o diploma acadêmico, a alforria para mais de 500 de seus irmãos em cativeiro. Conhecido e respeitado como grande tribuno pela eloqüência na defesa da causa dos humildes, seus brilhantes discursos - como aponta seu biógrafo Sud Menucci - infelizmente se perderam, pois não foram registrados.

Alvo de uma perseguição política que o levou a perder o emprego público, Luís Gama participou de partidos políticos, quase sempre se desiludindo ante a predominância, entre os "progressistas" de então, da idéia de uma república escravocrata. Raul Pompéia, em artigo intitulado "A última Página de um Grande Homem", publicado na Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 1882, assim o descreveu:

      (...) Luís Gama fazia de tudo: literatura, consolava, dava conselhos, demandava, sacrificava-se, lutava, exauria-se no próprio ardor, como uma candeia iluminando à custa da própria vida as trevas de desespero daquele povo de infelizes, sem auferir uma sombra de lucro, entendendo que advogado não significa o indivíduo que vive dos jantares que lhe paga Têmis; entendendo que se deve fazer um pouco de justiça grátis. E, com essa filosofia, empenhava-se de corpo e alma, fazia-se matar pelo bem.

Luís Gama faleceu, vítima de diabetes, em 24 de agosto de 1882, sem ver uma abolição da qual decerto discordaria na forma como foi feita. Seu legado, porém, permanece presente na luta dos afro-brasileiros contra o racismo e a discriminação em nosso País. E por mais que o Brasil avance em direção à plena justiça e à igualdade para todos, sonho de todos nós, teremos sempre em Luís Gama um referencial de luta e sacrifício pela causa da liberdade.

Axé, Luís Gama!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/06/1997 - Página 11980