Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO DOS 158 ANOS DE NASCIMENTO DE MACHADO DE ASSIS, NO ULTIMO DIA 21.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO DOS 158 ANOS DE NASCIMENTO DE MACHADO DE ASSIS, NO ULTIMO DIA 21.
Publicação
Publicação no DSF de 25/06/1997 - Página 12397
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, MACHADO DE ASSIS, ESCRITOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR.LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, vinte e um de junho trazem-me lembranças das lições de literatura brasileira nos meus anos de científico. No dia 21 de junho de 1839, nascia Machado de Assis, no bairro do Livramento, no Rio de janeiro, em uma casinhola colocada ao lado da residência de Dona Maria José de Mendonça Barroso, viúva do Senador Bento Barroso Pereira, que se tornará sua madrinha de batismo no dia 13 de novembro do mesmo ano.

Era o primeiro filho de Francisco José de Assis e Maria Leopoldina Machado de Assis. Francisco José era pintor, filho de pardos forros. Maria Leopoldina, portuguesa, ilhoa e, segundo a tradição, lavadeira. Gente humilde, porém benquista no bairro.

Machado de Assis cresceu à sombra de gente grande, pois Livramento era nobre na época, habitado por comendadores, oficiais da Ordem Imperial do Cruzeiro e por outras personalidades da Corte.

Nesse ambiente, o futuro escritor viveu sua infância; aí brincou, praticou suas traquinagens de menino pobre, doentio, submisso e tímido, tratado com carinho pelos pais e protegido da madrinha viúva e rica; aí, certamente vivenciou as primeiras impressões do meio colonialmente senhorial que evocaria mais tarde em suas obras.

Transcorrendo seus dias de menino entre a casa pobre dos pais e a casa rica da madrinha, aprendeu bem cedo a perceber a diferença e os caprichos da vida ou da história de cada um e, talvez, na sua visão inocente, já os tenha achado injustos e incompreensíveis. Essa realidade muito explica do seu feitio: uma estranha mescla de convencionalismo e ceticismo, de ambição pessoal e de aceitação da hierarquia social, de conformismo e relativismo, de determinismo e pessimismo.

Ficaram-lhe também recordações boas desses anos de meninice. Para tanto, deve ter contribuído significativamente a madrinha, que o acolhia e tratava com desvelo. Junto da madrinha, desfrutava daquela felicidade simples do afeto necessário. Assenhoreou-se, dessa forma, da atmosfera da casa rica e aprendeu a gostar da gente aquinhoada que nela habitava.

Apesar da presença da madrinha, não usufruiu de vida muito diferente da vida de outros meninos, como ele pobres, do bairro. Foi moleque tímido, mal vestido, mal alimentado; de pobreza no corpo e liberdade na alma; desconfiado e retraído por temperamento, vivendo e aprendendo para dentro, guardando os acontecimentos e matutando sobre tudo o que aos outros passava despercebido.

Teve também uma irmã que a doença levou cedo do recesso do lar. Morreu-lhe também a mãe quando ainda criança. A madrinha igualmente não tardou a partir.

O pai casou-se em segundas núpcias com Maria Inês, uma mulher de fecunda e "boa inteligência do coração". Maria Inês foi a primeira mestra de Machado de Assis, ensinou-lhe o pouco que sabia: as letras e as primeiras operações.

Freqüentou depois a escola. Pouco se sabe, no entanto, de sua vida escolar, por quanto tempo e onde estudou. O que passou para a história deve-se a informações dadas por amigos seus e por inferências de suas obras. Machado sempre foi extremamente reservado em relação ao seu mundo e à sua origem.

O pai morreu quando se encontrava às portas da adolescência, ficando da família apenas ele e sua madrasta Maria Inês. Para sobreviver, empregaram-se os dois em um colégio, ela como cozinheira e o menino como vendedor de balas, tarefa que certamente não se coadunava com sua natureza silenciosa e tímida. No colégio, aproveitou os momentos de espera do tabuleiro de balas para ouvir sorrateiramente as coisas que eram ditas nas salas de aula; ouvia as lições que não lhe eram destinadas.

Da adolescência, pouco se sabe também. É certo, sim, que era dado à leitura. Lia vorazmente, lia tudo o que lhe viesse às mãos ou lhe caísse sob os olhos.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, pelas circunstâncias que assinalaram sua vida, pelo exemplo de esforço para superar-se e superar os obstáculos, pela singularidade de sua contribuição à literatura brasileira, pelas características da obra que produziu, merece lembrança e celebração o seu centésimo qüinquagésimo oitavo aniversário de nascimento.

Na afirmação de José Veríssimo, Machado de Assis é "a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais eminente figura de nossa literatura". Para Nélson Werneck Sodré, "Machado de Assis é a grande figura literária do tempo e a maior que o nosso país conheceu".

Não há como contestar essas afirmações da crítica literária. Sua extrema reserva, porém, a aversão de falar de si mesmo e o cioso silêncio sobre seu passado privaram a história de conhecer-lhe os começos como escritor. De acordo ainda com José Veríssimo, "ninguém na literatura brasileira foi mais, ou sequer tanto como ele, estranho a toda a espécie de cabotinagem, de vaidade, de exibicionismo. De raiz odiava toda a publicidade, toda a vulgarização que não fosse puramente a dos seus livros publicados. Do seu mesmo trabalho literário, como de tudo o que lhe dizia respeito, tinha um exagerado recato". Obscuro e incerto, portanto, o seu ingresso no mundo da literatura. Pela época, cresceu sob a efluência dos românticos; também foi romântico, mas consagrou-se literariamente como realista.

Admirável, no entanto, a grandeza atingida. Na opinião da crítica literária, como poeta, é um dos mais importantes da literatura brasileira e, como prosador, o mais insigne, de modo especial na ficção romanesca, cujo domínio é inigualável. Para José Veríssimo, "não é somente um escritor vernáculo, numeroso, diserto e elegantíssimo. Às qualidades de expressão que possui como nenhum outro, junta as de pensamento, uma filosofia pessoal e virtudes literárias muito particulares, que fazem dele um clássico, no mais nobre sentido da palavra -- o único talvez da nossa literatura".

Escreveu contos e romances com graça, com fino espírito, com encantadora naturalidade, com fértil e graciosa imaginação, com arguta psicologia, cabal propriedade de expressão, criatividade no manejo da frase, surpresa na utilização das palavras, harmonia na fluência, agudeza na percepção e originalidade na formulação. Histórias, costumes, tipos, ficções, consciências, caracteres, sentimentos íntimos, idiossincrasias, tudo na sua obra é representado com superior qualidade, com excelência, numa admirável transposição artística. E tudo com naturalidade, sem vestígio de afetação, com estilo delicioso quanto à vernaculidade, à precisão, à elegância e ao engenho.

Machado de Assis introduziu na nossa literatura a perspectiva problematizadora, a visão radicalmente crítica e reflexiva da vida dos homens, das aparências cultivadas, da moralidade apregoada e da realidade vivida. Mestre no desmascaramento suave, surpreendente e inexorável. Mestre do gênero cômico fantástico, materializado de forma excelente na moldura narrativa do Brás Cubas, resolutamente inverossímil, mas prototípico no retrato das atitudes e dos comportamentos da vida real.

É literatura minipéia, do filósofo Menipo, que gargalha no além-túmulo como o faz Brás Cubas. Literatura que aborda humoristicamente as questões mais cruciais, misturando o sério e o cômico, que pratica absoluta liberdade em relação aos cânones da verossimilhança, que se deleita nos desdobramentos da personalidade, nas paixões descontroladas, nos delírios, nas mentiras cultivadas para embelezar as fachadas. 

As bases sociais desse mundo não são difíceis de circunscrever. O atento analista da sociedade desvenda-as facilmente ao refletir sobre os sentimentos, as atitudes de conveniência, as posturas de retidão e de certeza absoluta, os discursos fátuos, as preocupações e as lágrimas fáceis, públicas e profusas, mas escapistas, estéreis, suspeitas e ridículas.

Em todas essas peculiaridades, Machado de Assis revela sua capacidade incomum de fundir, com leveza e precisão, humorismo filosófico-sociológico com imaginação.

Não foi um naturalista, foi um realista superior, pois, mesmo quando navegou pela fantasia, sempre trabalhou a verdade essencial e profunda das coisas e das personagens, as verdades como elas são entre quatro paredes, quando a nudez se mostra sem superegos. Analisava as almas, sem aventurar-se pela psicologia.

Machado de Assis evitava, fugia, sentia pavor da vulgaridade e da apelação, recursos tantas vezes eleitos como vetores de propaganda, justificados com o álibi do gosto público. Foi um escritor extremamente decente. Não em razão de uma moralidade afetada, nem por pudor infantil, mas porque respeitava sua arte. A simples percepção de que a obscenidade, a pornografia, as abordagens sensuais seriam chamamento para seus livros lhe provocava imediata reação de repulsa a esse baixo recurso de sucesso. Tinha a sutileza de conduzir a arte até à suficiente e sutil margem da insinuação, até à essencial percepção do fato, sem nunca apontá-lo.

Não estranha, no âmbito dessa gama de qualidades, que Machado de Assis tenha exercido papel de liderança entre os escritores do seu tempo. Foi essa liderança e a total dedicação à arte literária que o conduziram a agregar-se aos homens das letras, em 1895, quando do lançamento da Revista Brasileira, então sob a direção de José Veríssimo. A redação da revista dava-se na travessa do Ouvidor. Nesse endereço, reuniam-se, além de Machado de Assis, Taunay, Joaquim Nabuco, Silva Ramos, Lúcio Mendonça, Graça Aranha, José Veríssimo, Inglês de Sousa, João Ribeiro. Sempre à tarde. Discutiam literatura, política, sociedade e arte e tomavam chá.

Foi nesse contexto que nasceu a Academia Brasileira de Letras, a última das tentativas de sociedade de escritores em que Machado de Assis tomou parte e a única que vingou. Por iniciativa de Lúcio Mendonça, em 15 de dezembro de 1896, começaram as reuniões preparatórias. Machado foi aclamado presidente, lugar que ocupou até morrer. Em 20 de junho de 1897, em reunião inaugural, ele definiu o caminho da nova sociedade.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, a trajetória e o legado desse grande escritor brasileiro são perenes. Perenes na arte que concebia não como preenchimento dos momentos de ócio, como era aceito no seu tempo, mas como veículo com uma missão a cumprir: ensinar aos homens as coisas da vida e ensiná-las com beleza estética, rindo ou chorando.

De acordo com Nélson Werneck Sodré, com essa perspectiva realizou sua obra, "a mais alta já elaborada em nosso país e aquela em que está mais presente o Brasil, numa fase característica de seu desenvolvimento". Perenes também pelo exemplo de força para vencer as dificuldades decorrentes da pobreza, da saúde precária, dos preconceitos e da exclusão. Superou todas essas agruras com estudo e tenaz perseverança. Venceu-as com grandeza. Belo exemplo, inclusive para o nosso tempo, tempo de cibernética e de globalidades, tempo que não cultiva referenciais, exemplo para todos os brasileiros, em particular, para a juventude.

Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/06/1997 - Página 12397