Discurso no Senado Federal

DIVIDA IRRESGATAVEL DO BRASIL COM A AFRICA, DECORRENTE DA EXPLORAÇÃO DA ESCRAVIZAÇÃO DE NEGROS. RACISMO COMO UMA DAS MARCAS CARACTERISTICAS DAS RELAÇÕES SOCIAIS NO BRASIL, TAMBEM IMISCUIDO NA PROPRIA FORMULAÇÃO DE NOSSA POLITICA EXTERNA.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA EXTERNA.:
  • DIVIDA IRRESGATAVEL DO BRASIL COM A AFRICA, DECORRENTE DA EXPLORAÇÃO DA ESCRAVIZAÇÃO DE NEGROS. RACISMO COMO UMA DAS MARCAS CARACTERISTICAS DAS RELAÇÕES SOCIAIS NO BRASIL, TAMBEM IMISCUIDO NA PROPRIA FORMULAÇÃO DE NOSSA POLITICA EXTERNA.
Publicação
Publicação no DSF de 26/06/1997 - Página 12473
Assunto
Outros > POLITICA EXTERNA.
Indexação
  • CRITICA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, EXCLUSÃO, NEGRO, BRASIL, EXPLORAÇÃO, ESCRAVATURA.
  • DENUNCIA, OCULTAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, BRASIL, COMENTARIO, HISTORIA, OCUPAÇÃO, REGIÃO CENTRO OESTE, OBSTACULO, POLITICA EXTERNA, EMIGRAÇÃO, NEGRO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • CRITICA, HISTORIA, POLITICA EXTERNA, BRASIL, DEFESA, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), IMPERIALISMO, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL, AFRICA.
  • DEFESA, APERFEIÇOAMENTO, POLITICA EXTERNA, BRASIL, RELAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA, AMPLIAÇÃO, INTERESSE, COMERCIO EXTERIOR, AREA, POLITICA, CULTURA.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Maior país negro fora da África, o que recebeu o maior número de africanos escravizados e um dos que mais lucraram com o tráfico transatlântico e a exploração da mão-de-obra africana, o Brasil tem para com a África uma dívida tão grande que seria impossível resgatá-la, mesmo que houvesse irresistível vontade de fazê-lo. Responsáveis, durante a maior parte de nossa história, pela produção em quase todos os setores da economia, africanos e afro-brasileiros, mulheres e homens, deram, literalmente, o seu sangue e o seu suor - para não falar no seu esperma e no seu leite - para a construção deste País, embora, na famosa hora de dividir o bolo, sempre tenham sido, e continuem sendo, preteridos em favor de outros grupos étnicos, uns chegados cedo apenas para explorar e oprimir africanos e índios, outros chegados mais tarde e cuja contribuição foi incomparavelmente menor que a dos africanos.

Herança de séculos de escravidão, atualizada na sociedade pós-1888 em função das necessidades de uma nascente sociedade capitalista, que precisava de mão-de-obra barata na lavoura e na indústria, o racismo é uma das marcas características das relações sociais no Brasil, ainda que por aqui se mostre travestido de seu exato oposto, graças a várias estratégias de dominação, inclusive o mito da "democracia racial". Comparado a um monstro de mil faces, que interfere em variados aspectos da vida em nosso País, o racismo também tem-se imiscuído há muito tempo na própria formulação de nossa política externa.

A SRª PRESIDENTE (Júnia Marise) - Peço permissão ao nobre Senador Abdias Nascimento para, em consultando o Plenário, prorrogar a sessão por mais três minutos, a fim de que S. Exª possa concluir o seu pronunciamento. (Pausa.)

Não havendo objeção, está prorrogada a sessão.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO - Prossigo, Srª Presidente.

Na década de 1920, por exemplo, quando a perspectiva da vinda de afro-americanos para colonizar os vazios de nosso centro-oeste, atraídos por anúncios publicados na imprensa dos Estados Unidos, provocou acaloradas discussões no Congresso, as posições dos que viam nisso uma ameaça à nossa "harmonia racial" consubstanciaram-se em uma ordem sigilosa, enviada aos Consulados brasileiros naquele país, mandando-os negar vistos a esses indesejáveis candidatos a imigrantes. Temia-se que os negros norte-americanos, mais acostumados ao confronto racial em um país que então escondia o seu racismo, viessem a contaminar os afro-brasileiros com exóticas idéias de democracia e igualdade.

Mas é a partir dos anos 1950, quando ganha corpo na África a luta anticolonialista, que o racismo passa a ser um elemento de maior importância na orientação da política formulada pelo Itamaraty. Embora defendendo os princípios gerais da liberdade e do que então se denominava o direito da autodeterminação dos povos, o Brasil atrelou a sua política africana aos interesses de Portugal, à época sob a ditadura salazarista, o que significou, na prática, uma série de votos de abstenção, nas Nações Unidas, em favor da manutenção do domínio luso na chamada África portuguesa...

O Sr. Gilvam Borges - Senador Abdias Nascimento, V. Exª permite-me um aparte?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO - A Presidência já me advertiu que...

O Sr. Gilvam Borges - Já extrapolou o tempo?

O SR. ABDIAS NASCIMENTO -...o meu tempo já terminou, e ainda não concluí o meu pronunciamento.

O Sr. Gilvam Borges - Retiro o meu pedido. Deixarei para aparteá-lo em outra oportunidade. Tenho observado os pronunciamentos de V. Exª e não poderia deixar de fazer uma intervenção, mas a farei em outra oportunidade.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO - Agradeço a compreensão de V. Exª. Realmente, gostaria muito de receber o seu aparte.

Prossigo, Srª Presidente.

Embora defendendo os princípios gerais da liberdade e do que então se denominava o direito da autodeterminação dos povos, o Brasil atrelou a sua política africana aos interesses de Portugal, à época sob a ditadura salazarista, o que significou, na prática, uma série de votos de abstenção, nas Nações Unidas, em favor da manutenção do domínio luso na chamada África Portuguesa, que compreendia Angola, Moçambique, Guiné Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, sem qualquer preocupação de caráter humanitário ou com as implicações geopolíticas dessa posição. Em suma, sem a consciência do que tal poderia representar para um país com pretensões a um papel de liderança no hemisfério sul. Eu mesmo sofri, na própria pele, os reflexos dessa "política, perseguido em meu próprio país por obra e graça" da PIDE a terrível polícia política de Salazar, então com livre trânsito, para defender, no Brasil, os interesses escusos da atrasada classe dominante portuguesa.

Infelizmente, foram os interesses materiais - disfarçados por um discurso hipócrita que apelava às afinidades étnico-históricas - os responsáveis pela radical transformação da política africana do Itamaraty, em meados da década de 70. Não por coincidência no justo momento em que os portugueses eram expulsos, pela força das armas de suas "colônias" africanas, que eles - tal como todos os "colonizadores" europeus - haviam ajudado, de todas as formas, a subdesenvolver. Com o esperto reconhecimento, pelo Brasil, do governo revolucionário de Angola, nascia o "pragmatismo responsável", termo que expressa, com toda a eloqüência, a verdadeira motivação dessa guinada de 180 graus, que teve, pelo menos, o mérito de atualizar a política externa do País, colocando-a em dia com as modernas tendências da política internacional e abrindo as portas a uma aproximação menos oportunista com o continente africano.

Desde então, o Brasil tem ampliado bastante as suas relações com os países africanos de maneira geral e em particular com os de língua oficial portuguesa, favorecido pela posição geográfica e pelo grau de desenvolvimento de sua economia, que o coloca, nesse sentido, em posição vantajosa até mesmo quando comparado com os Estados Unidos ou as nações da Europa. Explica-se: os produtos elaborados ou aperfeiçoados no Brasil, país tropical ainda em via de desenvolvimento, atendem muito melhor às necessidades dos africanos do que os produtos "de ponta", oriundos do mundo desenvolvido, planejados para um mercado muito diferente daquele que caracteriza a maior parte da África. É a chamada "tecnologia intermediária", o grande trunfo do Brasil nas suas relações comerciais com o chamado Terceiro Mundo.

O avanço na área comercial ainda não teve, contudo...

A SRª PRESIDENTE (Júnia Marise) - Peço licença ao nobre orador para comunicar a S. Exª que, lamentavelmente, até a prorrogação que lhe foi concedida já se esgotou. No entanto, S. Exª pode concluir o seu pronunciamento, e ele será publicado na íntegra.

O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO - Muito obrigado.

A SRª PRESIDENTE (Júnia Marise) - O pronunciamento de V. Exª é muito oportuno, e a Presidência o cumprimenta.

O SR. ABDIAS DO NASCIMENTO - Muito obrigado. Vou ler apenas o período final do meu pronunciamento.

Nem tudo, porém, está perdido. Ainda é tempo de o Brasil assumir um papel mais positivo em suas relações com o mundo africano, parte integrante do hemisfério de que somos, pelo peso dos números, os líderes naturais. Se pusermos de lado as viseiras do eurocentrismo, veremos que nossa aproximação com a África, que já começa a despertar do secular torpor trazido pela escravidão e o colonialismo, como mostram os inéditos índices de crescimento de algumas nações ao sul do Saara, não é apenas uma opção entre muitas. Trata-se, antes, de um imperativo que o Brasil, cedo ou tarde, terá de reconhecer e enfrentar. É nossa esperança, como brasileiro de origem africana, que o faça logo, em benefício dos africanos de todos os brasileiros.

Axé!

Muito agradecido, Srª. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/06/1997 - Página 12473