Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AO TRABALHO, A TRAJETORIA DE VIDA E A MENSAGEM LEGADA AO PAIS PELO EDUCADOR PAULO FREIRE, FALECIDO NO DIA 2 DE MAIO PASSADO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM AO TRABALHO, A TRAJETORIA DE VIDA E A MENSAGEM LEGADA AO PAIS PELO EDUCADOR PAULO FREIRE, FALECIDO NO DIA 2 DE MAIO PASSADO.
Publicação
Publicação no DSF de 26/06/1997 - Página 12479
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, PAULO FREIRE, PEDAGOGO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, no dia 02 de maio último, em São Paulo, faleceu Paulo Freire. Há apenas dois meses, portanto, deixava esta existência um dos maiores educadores brasileiros. Morreu com 76 anos de idade.

Admirador do seu trabalho, de suas idéias e de suas utopias, tenho meditado sobre a trajetória desse homem e sobre a mensagem ou as mensagens que concebeu e deixou para o País.

Nasceu em Recife no dia 19 de setembro de 1921, na velha casa de uma família modesta, mas de muita harmonia; casa com salas, terraço e quintal cheio de árvores frondosas, que ele lembrava como o "mundo de minhas primeiras experiências". O pai era oficial da Polícia Militar e a mãe, uma "pernambucana, católica, doce, bondosa e justa".

Não viveu uma infância isenta de tribulações; chegou a passar pela experiência da fome, "fome -- como ele mesmo afirmou -- de uma família pequeno-burguesa, que lutava fanaticamente para não perder sua posição de classe".

A morte colheu-o às vésperas de transferir-se para a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde iria ministrar um curso.

Deixou-nos, mas permanece o seu legado. Um legado de aproximadamente 50 livros, dentre os quais se destaca Pedagogia do Oprimido, além de uma singular experiência de pedagogo que trabalhou no Brasil e andou pelo mundo. Lecionou nos Estados Unidos, no Chile, na Suíça, em países da África. Assessorou projetos culturais na América Latina e na África. Integrou o quadro de consultores da Organização para a Educação, Ciência e Cultura -- UNESCO, da Organização das Nações Unidas.

Foi em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, que Paulo Freire começou a mudar as perspectivas da educação brasileira, de modo particular quanto ao método de alfabetização de adultos, que começara a testar em 1961, em uma repartição da Prefeitura de Recife. Em Angicos, um grupo constituído de agricultores, mecânicos, parteiras e comerciantes, cerca de 300 pessoas, conseguiu aprender a ler em 40 horas, freqüentando as aulas na boca da noite.

Paulo Freire atingiu esse resultado, ensinando e aprendendo no contexto da realidade dos alunos, da qual tirou algumas palavras, denominadas geradoras, e trabalhou-as com os alunos, extraindo delas idéias de interesse social e político e, simultaneamente, provocando uma visão crítica dessa mesma realidade.

O método se constituiu um instrumento para lançar a semente da cidadania e da liberdade em solos áridos. Nas décadas de 60 e 70, tal método integrou amplas camadas da população na sociedade civil, transformando-as em sujeitos da própria história, dentro de um processo que o educador chamou de conscientização, iniciado já no primeiro contato com as palavras. Saliente-se, aliás, que Paulo Freire foi o primeiro a utilizar a palavra conscientização no campo da pedagogia.

O extraordinário sucesso do trabalho realizado em Angicos e na coordenação do projeto de educação para adultos dentro do Movimento de Cultura Popular da Prefeitura de Recife levou-o a ser convocado, em 1963, pelo Ministro da Educação Paulo de Tarso Santos, para assumir a presidência da Comissão Nacional de Cultura Popular e a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização. Este programa pretendia pôr fim ao analfabetismo no País, então estimado em 16 milhões de pessoas.

A originalidade do processo motivou naquela ocasião milhares de brasileiros, especialmente jovens, idealistas e voluntários, que acorreram para se inscrever nos cursos de capacitação de coordenadores em todas as capitais do País. O Plano Nacional de Capacitação queria implantar, em 1964, 20 mil círculos de cultura e alfabetizar dois milhões de pessoas. Essa meta reduziria em 15% a taxa de analfabetos do País.

O Plano Nacional de Alfabetização durou apenas 10 meses, de junho de 1963 a março de 1964. Os acontecimentos de 31 de março de 1964 interromperam o Governo João Goulart e o plano também, que passou a ser uma das iniciativas mais odiadas do Governo deposto.

Para Paulo Freire, tinha início um longo período de absurda incompreensão, patrocinada pelo mais rançoso e obtuso fundamentalismo ideológico. Foi preso. Por 70 dias, permaneceu trancafiado em uma cela. Durante esses dias, como afirmou certa feita em Recife, restou-lhe a única alternativa de perambular de uma parede a outra da masmorra como tigre enjaulado.

Libertado, foi para o Chile, como exilado. Nesse país, convidado pelo Presidente Eduardo Frei, desenvolveu, de 1964 a 1969, intenso programa de alfabetização de camponeses e de formação de técnicos. Em apenas dois anos, alfabetizou 7 mil pessoas no meio rural e conquistou inúmeros seguidores. Por ocasião de sua morte, Cecília Jara Bernadot, assessora do Ministro da Educação desse país, referiu-se ao fato como sendo "uma perda para a educação no mundo". "Seus discípulos -- disse a assessora --, e me incluo entre eles, lamentam profundamente. Aqui, só temos a agradecer sua obra, ainda utilizamos seus métodos".

Nos Estados Unidos, de modo especial na Universidade de Harvard, a atuação de Paulo Freire deixou discípulos e admiradores. Gerard Murphy, Diretor da Faculdade de Educação da Universidade, qualificou-o de extraordinário. "Poucas pessoas no mundo -- afirmou -- contribuíram para a educação como ele. Sua sabedoria, seu brilhantismo e seu profundo conhecimento da relação entre a política e a educação eram únicos".

Para Rosaline Michaelles, Diretora do Instituto de Educação Internacional de Harvard, "os alunos inspiravam-se em suas aulas, em seus trabalhos e, sobretudo, em sua presença. Ele espalhava uma sensação de esperança entre os ouvintes. Não uma esperança passiva. Uma esperança casada com a ação. Uma idéia de que as pessoas podem fazer diferença por meio do seu trabalho. Depois de estar com ele, as pessoas agiam como se o mundo fosse um bom lugar para viver."

Na Europa, foi inspirador de várias experiências, entre elas a Troca Recíproca de Saber, que consiste em redes de intercâmbio de conhecimento. Na França, esse projeto possui 400 centros.

Em 1970, assumiu o cargo de consultor especial para educação do Conselho Mundial de Igrejas. Nesse mesmo ano, foi morar na Suíça, lá permanecendo durante 10 anos. Da Suíça, deslocava-se para os países que o convidavam para falar de educação.

Trabalhou no México, no Centro Internacional de Documentação, juntando-se a Ivan Ilich, expoente importante no campo da crítica aos métodos convencionais de educação.

Organizou o sistema educacional de Cabo Verde após a independência dessa ex-colônia portuguesa.

Finalmente, em 7 de agosto de 1979, após 15 anos de exílio, retornou ao Brasil, pondo-se logo na tarefa, como disse, de "reaprender o Brasil" e reiterando sua opção pela educação libertadora como "um exercício de sujeitos que fazem história".

De volta ao País, aceitou ser Secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo durante a gestão de Luíza Erundina. Deixou o cargo dois anos depois, por inaptidão para cargos públicos. Nesse breve período, lançou o MOVA, programa que alfabetizou 35 mil pessoas, entre jovens e adultos.

Em 2 de maio último, faleceu, saudado como guardião da utopia, revolucionário do ensino, mestre dos oprimidos, pedagogo da cidadania. Deixou o Brasil como realidade ainda longe dos seus sonhos, pois os analfabetos com mais de 14 anos de idade somam 19 milhões, de acordo com Censo de 1991; a educação para jovens e adultos está reduzida a programa de segunda classe; grande parte da população ainda não tem visão crítica da realidade nacional; professores desmotivados ensinam sem vontade; havendo muito pouco conteúdo pedagógico no trato da educação e muita sobra de economismo na política brasileira.

Deixa o Brasil em um contexto de globalização neoliberal, evento, aliás, que não o assustava: "minha convicção -- afirmou -- é que nenhuma realidade se processa desta ou daquela forma porque foi dito ou está sendo dito que assim é que tem que ser. Não acredito que a ética do mercado, que é profundamente malvada, perversa, a ética da venda, do lucro, seja a que satisfaz o ser humano."

Para Miguel Darcy de Oliveira, do Instituto de Ação Cultural -- IDAC, fundado por Paulo Freire para desenvolver trabalhos na área de educação e cidadania, "a filosofia de Paulo Freire pode se aplicar bem à era da globalização. Temos que nos posicionar diante dela como sujeitos e não como objetos, definindo o nosso papel diante do mundo".

Deixou o Brasil após receber mais de 30 condecorações honoris causa de universidades estrangeiras e brasileiras, prêmios da UNESCO, da OEA, do Governo da Bélgica, de associações dos Estados Unidos, do Canadá, prêmio Mestre da Paz da Espanha e Diploma do Mérito Internacional da Associação Internacional de Leitura de Estocolmo.

O seu Pedagogia do Oprimido -- por ele mesmo considerado sua obra mais importante --, escrito em português, mas por razões políticas publicado primeiro em espanhol e inglês, foi traduzido em 18 idiomas, entre os quais hindu, basco, indonésio, árabe, japonês, dinamarquês e coreano; nos Estados Unidos, está na vigésima-sétima edição e entre as 10 obras mais consultadas da biblioteca do Congresso americano.

Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, estudando a vida de Paulo Freire, uma conclusão surge clara: Paulo Freire foi um brasileiro comprometido com a vida. Um brasileiro que pensou a existência e o contexto em que ela se faz história, para extrair desse contexto os elementos da praxe humana, para reflexão e retotalização como descoberta da liberdade. "Criar o que ainda não existe -- afirmou certa feita -- deve ser a pretensão de todo o sujeito que está vivo".

Seu ensinamento da liberdade efetivava-se por meio de uma pedagogia propiciadora de condições efetivas para o oprimido, reflexivamente, descobrir-se e fazer-se sujeito de sua destinação histórica. Uma pedagogia com raízes na cultura específica do educando, para que este faça da aprendizagem um ato de criação e recriação, um caminho para ir adiante, superando a vida biológica, atingindo a vida biográfica. Este, talvez o sentido mais profundo da alfabetização: aprender a escrever a própria vida, como autor e como testemunho da própria história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se.

Apesar das desventuras que frustraram a trajetória histórica de Paulo Freire em sua pátria, tenho certeza de que seus ensinamentos haverão de frutificar ainda muito. Embora de pequenas dimensões, são férteis e significativas experiências como as do Projeto Axé para meninas e meninos de rua de Salvador, o Projeto Caatinga para jovens e adultos de Ouricuri, no sertão pernambucano, o Projeto do Cabo, também em Pernambuco, para crianças, jovens e mulheres, o Centro de Formação do Movimento Nacional dos Meninos e das Meninas de Rua de Belém do Pará e outros tantos, que seria demasiadamente longo enumerar.

Paulo Freire superava-se constantemente, em busca de alternativas para o cidadão, mulher ou homem, criança ou jovem, tornar-se construtor da própria cidadania. Escolheu a educação como campo propício para essa transformação. "Se a educação sozinha -- disse já no fim de sua vida -- não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. (...) Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. (...) Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros."

A partir desse esforço incansável para encontrar alternativas de dignificação do ser humano, especialmente do excluído, compreende-se a grandeza moral e a obra do brasileiro Paulo Freire. Compreendem-se todas as suas indignações. Compreendem-se todas as suas e nossas utopias. Compreende-se também a sua reação quando, em Recife, recebeu professoras primárias e soube que entre elas havia as que ganhavam 15 reais por mês para ensinar e, ainda, às vezes, tiravam desse dinheiro para comprar giz: "talvez -- disse -- fosse até melhor morrer e deixar de sofrer a impotência de amar".

Era o que tinha a dizer!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/06/1997 - Página 12479