Discurso durante a 88ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

ELOGIOS E ALGUMAS RESTRIÇÕES AO RECENTE 'PACOTE' BAIXADO PELO GOVERNO, REFERENTE A REFORMA AGRARIA.

Autor
Carlos Bezerra (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MT)
Nome completo: Carlos Gomes Bezerra
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • ELOGIOS E ALGUMAS RESTRIÇÕES AO RECENTE 'PACOTE' BAIXADO PELO GOVERNO, REFERENTE A REFORMA AGRARIA.
Publicação
Publicação no DSF de 26/06/1997 - Página 12485
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • COMENTARIO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), DECRETO EXECUTIVO, REGULAMENTAÇÃO, REFORMA AGRARIA, CRITICA, EXECUTIVO, EXCESSO, FUNÇÃO LEGISLATIVA.
  • ELOGIO, PROVIDENCIA, GOVERNO, DESCENTRALIZAÇÃO, GOVERNO ESTADUAL, REFORMA AGRARIA, ALTERAÇÃO, MODELO.
  • REGISTRO, RESULTADO, EXPERIENCIA, REFORMA AGRARIA, ESTADO DE MATO GROSSO (MT), UTILIZAÇÃO, NEGOCIAÇÃO, COMPROMISSO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRATICO BRASILEIRO (PMDB), GOVERNO ESTADUAL, TRABALHADOR RURAL.
  • CRITICA, LEGISLAÇÃO, IMPEDIMENTO, VISTORIA, PROPRIEDADE, SITUAÇÃO, INVASÃO, AUMENTO, BUROCRACIA, AÇÃO JUDICIAL, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRARIA (INCRA).
  • COMENTARIO, ERRO, COMBATE, MOVIMENTO TRABALHISTA, SEM-TERRA, PREJUIZO, ANDAMENTO, REFORMA AGRARIA.

           O SR. CARLOS BEZERRA (PMDB-MT) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, pretendo abordar, mais uma vez, a questão da reforma agrária. Desta vez o faço provocado pelo recente "pacote" baixado pelo Governo sobre o assunto, na forma da Medida Provisória nº 1.577 e do Decreto nº 2.250, ambos datados de 11 de junho de 1997. "Pacote" que quero aqui comentar, elogiando-o na sua maior parte, mas também fazendo-lhe algumas sérias restrições.

           Não é de hoje que trago a esta Casa meu apoio à reforma agrária e minhas preocupações com o seu mau encaminhamento por sucessivos governos. Em discurso que pronunciei em agosto de 1995, estendi-me sobre o tema, apontando a especial importância da reforma agrária num país como o Brasil, em que os terríveis contrastes sociais estão enraizados na concentração histórica da propriedade fundiária. Falei da necessidade de romper com essa má tradição; da reforma agrária como solução para o inchaço da pobreza nas cidades e para os conflitos no campo; da função que a reforma agrária teria de exercer na modernização de nosso capitalismo, como ocorreu em outros países. Indiquei o sucesso de alguns projetos de assentamento de pequenos proprietários no meu Estado, o Mato Grosso; a necessidade de reforçar os mecanismos de financiamento aos assentados pela reforma agrária. Ressaltei que ela, se bem feita, resultava em desenvolvimento com justiça social.

           Em outro pronunciamento, também em 1995, alertei o Governo para que não ficasse na rotina do "feijão com arroz", quanto à reforma agrária; para que cuidasse de fazê-la avançar, senão nela falharia, como haviam falhado governos anteriores. Adverti o Governo de que sua reforma agrária tinha de ser replanejada, rediscutida, reencaminhada.

           Em maio de 1996, com o Governo dando sinais de que começava a despertar para a questão, mostrei que, em contraste com a lentidão e a pouca criatividade do Governo Federal, os Estados começavam a tomar iniciativas mais eficientes e imaginosas. Citei o exemplo de Mato Grosso, onde havia recentemente sido firmado um acordo entre Governo Estadual, INCRA, entidades de trabalhadores rurais e proprietários, assegurando assentamentos provisórios pacíficos, escalonados em cronograma, com uma série de providências a pavimentar o caminho para assentamentos definitivos e satisfatórios para todas as partes. Lembrei, então, que pequenos lotes rurais, bem trabalhados, podem ser produtivos. Que, aplicadas generalizadamente, boas iniciativas como aquela corrigiriam os vícios fundiários do Brasil, engrandeceriam sua agricultura; que a reforma agrária, para valer, teria de ser bem conduzida e bem orientada.

           Reproduzo aqui a essência desses meus pronunciamentos passados como reafirmação da minha posição a favor da reforma agrária, posição sólida que mantenho desde que, jovem, comecei a lidar com política. Considero equivocadas e infelizes as resistências e as dúvidas que surgem contra a reforma agrária. Ela tem de ocorrer, em grande escala; sem radicalismos, é verdade, mas nos termos justos colocados por nossa Constituição: o uso produtivo da terra, a indenização razoável aos desapropriados. Fazê-la avançar é um dever dos governos, das lideranças políticas; avançar de forma inteligente, eficaz.

           São pensamentos que aqui coloco por ocasião dos novos atos governamentais sobre o assunto. Atos que, como até aqui fiz, considero que posso criticar, nos pontos devidos, movido justamente pela vontade de ver a reforma agrária dando certo.

           De início, devo lamentar que, mais uma vez, se tenha recorrido ao instrumento da Medida Provisória, que não é a maneira de governar mais indicada para o amadurecimento de nossa democracia. Seria preferível que o Governo usasse sua liderança e influência para convergir em idéias com o Congresso, já que muitas propostas existem no Legislativo para agilizar e tornar mais justa a reforma agrária. Mas, de qualquer forma, é preciso reconhecer que o "pacote" contém vários pontos positivos, que logo indicarei. Acima de tudo, deve-se ressaltar dois aspectos genéricos louváveis nas medidas do Governo: primeiro, que tenha ele decidido romper com o modelo rígido que vinha sendo seguido há muitos anos; segundo, que tenha reconhecido a importância da descentralização na reforma agrária, do papel que pode ser desempenhado pelos Estados.

           E aqui, quero crer, foi determinante o exemplo de Mato Grosso, onde uma iniciativa local conseguiu atenuar e solucionar conflitos, e fazer avançar a reforma. Em Mato Grosso, a negociação, o compromisso, o consenso vêm dando bons resultados. É interessante notar que essas iniciativas bem-sucedidas em Mato Grosso, reunindo e pacificando os interesses de todas as partes, surgiram a partir de um posicionamento político do PMDB estadual. Foi uma posição deliberada do partido, bem pensada e discutida. O PMDB decidiu articular-se com o movimento social dos trabalhadores rurais; a partir daí, procurou proprietários e Governo Estadual, convencendo-os a adotar uma atitude cooperativa e flexível. O INCRA comprometeu-se a agilizar as medidas burocráticas relacionadas com algumas desapropriações. E as invasões, por entidades de trabalhadores rurais, foram contidas em forma moderadas e aceitáveis.

           Minhas posições em matéria de reforma agrária, Senhor Presidente, não têm nada de mera retórica. Reuni-me com as partes envolvidas, visitei acampamentos de trabalhadores rurais que pleiteiam terras, mediei conflitos. O tema ocupa boa parte do meu tempo. Fiz propostas legislativas nesta Casa. Minha liberdade quanto ao assunto foi adquirida com trabalho efetivo, liberdade para elogiar e criticar.

           Antes de abordar o "pacote" do Governo, convém relembrar telegraficamente os passos formais básicos que pautam a ação do INCRA. Primeiro, o INCRA escolhe uma propriedade indicada para assentamento de reforma agrária. Segundo, o proprietário é notificado da vistoria a ser feita pelo INCRA, vistoria que levanta os dados sobre a propriedade, principalmente a confirmação de que ela é improdutiva. Se a propriedade é improdutiva, vem o terceiro passo, que é o decreto de desapropriação. O quarto passo é a avaliação da propriedade. O quinto é a disponibilização, por parte do Tesouro, dos recursos para a desapropriação, em dinheiro para as benfeitorias e em títulos para a terra. No sexto passo, o INCRA ajuíza ação de desapropriação, depositando judicialmente dinheiro e títulos. Sétimo, não havendo oposição judicial do proprietário, o juiz ordena a imissão de posse em favor do INCRA. Oitavo, o INCRA promove o assentamento.

           É fácil perceber que, nessa cadeia, a lentidão e a complicação burocrática desnecessária podem causar grandes demoras e prejuízos; e que, na fase judicial, uma boa negociação pode poupar muito tempo e dinheiro.

           O "pacote" do Governo, veio, essencialmente, combater pontos de estrangulamento, bem como distorções e desvios que vinham solapando esse processo encadeado. Em muitos aspectos, o Governo foi feliz. A Medida Provisória nº 1.577, que modifica as Leis de nº 8.629 e 8.437, respectivamente de 1993 e 1992, alterou, por exemplo, o conceito de notificação previamente à vistoria. Como os tribunais vinham interpretando que a notificação ao proprietário tinha de ser pessoal, isso dava ensejo a manobras de evasão e adiamento por parte do notificado. Agora, a notificação poderá ser a preposto ou representante do proprietário e até mesmo, simplesmente, por meio de edital publicado em jornal. Além disso, durante um período de 6 meses após a notificação de vistoria fica vedada qualquer modificação na propriedade quanto ao seu domínio, dimensão ou condição de uso. Com isso, quer-se esvaziar manobras de descaracterização da propriedade, tais como seu fracionamento ou falsa venda; enfim, mudanças visando a evitar a desapropriação.

           Outro ponto positivo da MP é o que procura vincular o valor de avaliação da propriedade, mais claramente, ao seu valor de mercado, procurando evitar superavaliações.

           Muito importante é a nova possibilidade de convênios para delegar aos Estados o cadastramento, vistorias e avaliações de propriedades rurais situadas nos respectivos territórios. Essa abertura fica condicionada à instituição, no Estado, de órgão colegiado com a participação da sociedade civil. É uma saudável descentralização da reforma agrária, passando a ter influência na sua solução os atores que melhor e mais intensamente vivenciam e conhecem os problemas.

           O Decreto nº 2.250, que integra o "pacote", estabelece que entidades estaduais representativas de trabalhadores e produtores rurais poderão indicar ao órgão colegiado estadual, ou ao INCRA, áreas passíveis de desapropriação, bem como designar representantes técnicos para acompanhar a correspondente vistoria, a qual terá de se dar num prazo definido. Trata-se de uma complementação do princípio descentralizador introduzido pela MP.

           Tanto a MP como o Decreto contêm ainda outros pontos positivos sobre os quais não me estenderei. Mas, como disse, o "pacote" contém também aspectos criticáveis, e é muito importante apontá-los.

           O Decreto, em seu artigo 4º, impede que o imóvel invadido seja vistoriado, até que cesse sua ocupação. Ficaria paralisado, portanto, nesses casos, o processo encadeado de passos visando à desapropriação para reforma agrária. A intenção aí foi desestimular as invasões, a meu ver de forma equivocada. Essa medida é de hostilidade a um movimento social legítimo, a uma mobilização positiva de um segmento social que faz parte do País e que não se deve procurar esvaziar e esmagar. A solução para os conflitos no campo está na negociação entre as partes, nunca na liquidação de um movimento social.

           Além disso, a medida pode ser tecnicamente contra-producente, pois há numerosos casos de propriedades invadidas em que se caminha, por meio de negociação, para soluções de compromisso que fariam avançar a reforma agrária, com todas as partes tendo seus interesses essenciais atendidos. Com a vedação de vistoria, fica paralisada a reforma agrária justamente nos casos mais maduros para a sua efetivação. Aos casos de invasão organizada somam-se muitos outros em que se deu uma invasão gradual, espontânea, dispersa, mas que também ficariam caracterizados como "propriedade invadida", impedindo o avanço da reforma agrária justamente onde ela é mais necessária e viável.

           Um ponto altamente criticável na Medida Provisória é o seu artigo 4º, que amplia de 2 para 4 anos o prazo para que o Poder Público possa propor ações rescisórias referentes a casos de desapropriação. Aparentemente, é uma medida que pretende dar mais espaço para que sejam contestadas distorções e situações injustas. Na verdade, trata-se de um dispositivo legal perigoso e prejudicial ao interesse público, já que reforça e estende no tempo o poder de litígio do setor jurídico do INCRA, cuja atividade tem se revelado das mais nocivas aos interesses da reforma agrária.

           Para entender esse ponto, é preciso chamar a atenção para uma grande dificuldade que entrava a reforma agrária e que é pouco conhecida pela opinião pública. O maior inimigo da reforma agrária não é a fraude, se bem que essa existe, em variadas formas e vinda de várias fontes. O grande inimigo é o labirinto burocrático que se constrói em torno da reforma agrária. E a fonte geradora central das dificuldades burocráticas é a ação jurídica do INCRA, caracterizada pela beligerância burocrática e pelo furor querelante. Beligerância e furor totalmente contraproducentes, e que têm em muito prejudicado o interesse público, ao alimentar os mecanismos viciados de protelação, de adiamento e de procrastinação que marcam o processo de reforma agrária.

           O País ignora o quanto isso lhe tem custado. A indústria de recursos mantida pelo INCRA só faz alimentar a indústria protelatória, que castiga a reforma agrária e que tem um preço enorme. O passivo de indenizações devidas pelo INCRA é hoje de 4 bilhões de reais, quando poderia ser dez vezes menor, se não fosse essa indústria de recursos. A guerra burocrática promovida pelo setor jurídico do INCRA acaba elevando, de muito, as indenizações pagas. Há casos de ações perdidas pelo INCRA dez, vinte e até trinta vezes, devido a múltiplos, sucessivos e maníacos recursos promovidos pelo seu setor jurídico. Três milhões de hectares foram até hoje desapropriados, e o INCRA só conseguiu tomar posse da metade. Isso, principalmente, pela desorientação que rege sua ação jurídica.

           Por isso fico decepcionado quando vem esse artigo 4º da Medida Provisória e aumenta prazos para ações, isto é, amplia os poderes de quem os vem usando muito mal. Não posso evitar a conclusão de que, nesse ponto, a influência do setor jurídico do INCRA levou o INCRA e o Governo a serem vítimas de um engodo, ao propor uma legislação exatamente contrária à que é necessária.

           Pois a solução para a indústria de recursos do INCRA não é mais prazo e, sim, menos prazo. A solução é adotar, impor internamente no INCRA, um rito sumário, essa sim, providência capaz de garantir aos trabalhadores sem terra e aos proprietários rapidez no processo, desde a seleção da terra a desapropriar até sua distribuição aos assentados.

           Tive oportunidade, no ano passado, de propor legislação nesse sentido. Fi-lo na forma de emenda ao Projeto de Lei que dispõe sobre o rito sumário no processo de desapropriação para reforma agrária, o de nº 53, de 1996. A Lei Complementar em vigor determina que é de 2 anos o prazo para proposição de ação expropriatória, contado da publicação do decreto que declarou o imóvel de interesse social para fins de reforma agrária. Ora, sendo a reforma agrária um processo drástico e emergencial, não se justifica um prazo tão longo. Por isso minha emenda estabelece que, contado da publicação do decreto declaratório, o INCRA tem o prazo de 90 dias para propor a ação de desapropriação. A emenda determina, também, que o aproveitamento do imóvel para objetivos de reforma agrária se deve dar em até 180 dias, decorridos da data de imissão de posse.

           A agilidade do processo serve ao País, aos futuros assentados e aos próprios proprietários, pois lhes dá segurança sobre o rito e a cadência do processo, sem submetê-los às incertezas que marcam a situação atual. Está, pois, equivocada a MP neste ponto: ela deveria ter restringido e não ampliado prazos.

           Senhor Presidente, vemos que, a par de reconhecidos avanços do Governo na questão, temos ainda bastante a aprender e a aperfeiçoar em tudo o que diz respeito à reforma agrária. Sim, temos muito a construir pela frente: nós parlamentares, as associações de trabalhadores e produtores rurais, os Governos Estaduais, o INCRA, o Governo Federal. Mas é um esforço que dever ser feito, é uma luta que merece ser travada, para que a reforma agrária, finalmente, nos traga, como pode trazer, o desenvolvimento econômico e a justiça social.

           Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/06/1997 - Página 12485