Discurso no Senado Federal

HOMENAGEIA A MEMORIA DO PADRE ANTONIO VIEIRA, A PROPOSITO DA PASSAGEM DOS 300 ANOS DE SUA MORTE, A COMPLETAR-SE NO DIA 18 DE JULHO DE 1997.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEIA A MEMORIA DO PADRE ANTONIO VIEIRA, A PROPOSITO DA PASSAGEM DOS 300 ANOS DE SUA MORTE, A COMPLETAR-SE NO DIA 18 DE JULHO DE 1997.
Publicação
Publicação no DSF de 27/06/1997 - Página 12506
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, ANIVERSARIO DE MORTE, ANTONIO VIEIRA, SACERDOTE, VULTO HISTORICO, BRASIL, PAIS ESTRANGEIRO, PORTUGAL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ilustres convidados aqui presentes, a todos quero saudar na pessoa do Ministro da Cultura, Professor Francisco Weffort.

Há grandeza que o tempo não destrói; há eloqüência que a emoção não esquece; existe arte que se universaliza; há voz que a morte não silencia.

Um fenômeno que encerra todos esses aspectos foi, sem dúvida, o Padre Antônio Vieira, cujo tricentenário da morte transcorrerá no dia 18 de julho.

Antônio Vieira nasceu em 6 de fevereiro de 1608, em Lisboa, de Cristóvão Vieira Ravasco e Dona Maria de Azevedo, fidalgos portugueses de nobre estirpe. Com apenas sete anos de idade, sua família transferiu-se para a Bahia. Viagem perigosa. Escaparam da morte quando o navio quase naufragou nos baixios da Paraíba.

Na Bahia, o jovem Antônio, contra a vontade dos pais, que não pouparam razões e instâncias para dissuadi-lo, ingressou no colégio da Companhia de Jesus. E foi tão distinto e avisado nos estudos que, aos 17 anos de idade, ficou encarregado de escrever para Roma, em latim, as cartas anuais da Companhia. Aos 18, foi ensinar retórica no colégio de Olinda. Aqui, brilhou em comentários a Sêneca, a Ovídio e fazendo análise de passagens das Sagradas Escrituras.

Em 1635, com 27 anos de vida, ordenou-se sacerdote. Começou, então, sua vida de pregador, revelando, desde já, qualidades excepcionais.

A libertação de Portugal do jugo espanhol em 1º de dezembro de 1640, no entanto, levou-o à metrópole, compondo a delegação encarregada de hipotecar lealdade a Dom João IV, o novo rei.

Pregou pela primeira vez na capela real no dia 1º de janeiro de 1642. O sucesso foi prodigioso. A partir desse momento, iniciou uma trajetória de êxitos extraordinários, de influências, e também de tormentos amargos. Foi nomeado pregador da câmara real, foi diplomata do rei em Haia, Paris e Roma, mestre do príncipe herdeiro. Sofreu sob o rigor da Inquisição portuguesa e foi condenado. Em Roma, conseguiu a revisão do processo. Nessa cidade, terminou sendo escolhido orador da Rainha Cristina, da Suécia.

Nessas atividades, por seus posicionamentos, por sua influência, competência e sentido de justiça, granjeou admiradores e amigos incondicionais e suscitou inimigos ferozes.

Em 1653, foi destinado ao Maranhão como missionário, onde foi recebido com júbilo pela comunidade local.

Regressou novamente à Europa em 1661 e 1675. Em 1681, voltou definitivamente para o Brasil e aqui se entregou à faina de ultimar a edição de Os Sermões, vindo a falecer em 18 de julho de 1697, aos 89 anos de idade. Na Bahia, que lhe foi berço da meninice e da adolescência. Na Bahia, também regaço na hora da morte.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Srs. convidados, as características do Padre Antônio Vieira e sua atuação como pregador, como missionário e como político ultrapassam o espaço que se lhe possa dedicar ao homenageá-lo. Mesmo assim, profundamente justa e largamente significativa a lembrança que em sua memória se cultiva neste momento. Justa em razão da envergadura de sua personalidade. E de profunda significação em face do que representa a mensagem de sua vida e os ensinamentos deixados nos seus sermões. Ensinamentos e considerações sobre problemas do passado, muitos dos quais, 300 anos depois de sua morte, em tantos aspectos, ainda subsistem e continuam a acabrunhar dolorosamente a vida nacional.

Foi missionário da sua Igreja, com o entusiasmo de quem solicitou dos superiores a dispensa dos estudos maiores da Filosofia e da Teologia, para dedicar-se exclusivamente e desde cedo à catequese. Em 1666, recluso por ordem dos inquisidores nos cárceres do Santo Ofício, assim escreveu:

"De idade de dezessete anos fiz voto de gastar toda a vida na conversão dos Gentios e doutrinar aos novamente convertidos, e para isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola... E porque para esse ministério me não era necessária mais ciência que a Doutrina cristã, pedi aos Superiores me tirassem dos estudos, porque não queria curso nem Teologia, e cedia dos graus da Religião que a ele e a ela se seguem".

Como missionário, andou também pelo meu Estado do Ceará. Em 3 de março de 1660, partiu de São Luís do Maranhão em direção à serra da Ibiapaba, para fundar missão entre os tabajaras e os tapuias. Viagem penosa! Caminhou descalço e enfrentou espantosas dificuldades. Em comitiva, com mais dois padres da Companhia e cerca de 50 pessoas, na maioria índios, impacientado por causa da resistência que lhe oferecia o mar, desembarcou ao cabo de poucos dias e pôs-se a fazer o trajeto a pé.

Referindo-se à marcha, relatou: "A pequena tropa, exposta às chuvas, ao sol e às picadas de milhões de insetos e mosquitos venenosos, atravessou rios, e os areais imensos dos lençóis, pisando a areia, sobre abrasada, movediça, que ora lhes fugia debaixo dos pés, ora lhes açoitava as faces...".

"Ibiapaba - escreveu - que na língua dos naturais quer dizer terra talha, não é uma só serra, como vulgarmente se chama, senão muitas serras juntas, que se levantam ao sertão das praias de Camuci, e, mais parecidas a ondas de mar alterado que a montes, se vão sucedendo e como encapelando umas após das outras, em distrito de mais de 40 léguas. São todas formadas de um só rochedo duríssimo, e em partes escalvado e medonho, em outras coberto de verdura e terra lavradia, como se a natureza retratasse nesses negros penhascos a condição de seus habitadores, que, sendo sempre duros e como de pedras, às vezes dão esperança de se cultivar".

E que sublime esforço desenvolvia para entrar no mundo dos indígenas, entendendo-lhe a linguagem e a alma. "Por vezes - escreveu - me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do bárbaro, e ainda do intérprete, sem poder distinguir as sílabas, nem perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a mesma letra com duas ou três semelhantes, ou compondo-se (o que é mais certo) com mistura de todas elas".

Talvez sua atuação como missionário seja o fator que mais admiravelmente desvendou a têmpera do Padre Antônio Vieira. Freqüentar palácios, pregar a reis e rainhas, relacionar-se no mundo diplomático, conduzir negociações no campo da política é apreciável e em boa margem compensador. Encurtar os vôos do pensamento, privar-se do conforto da convivência nos escalões superiores da sociedade, deixar a culta Europa, as cátedras douradas, os púlpitos rutilantes, para, como diz a poetisa D. Amélia Rodrigues - "falar de Deus ao íncola Tupi..." é "...humilde, sublime, heróico abaixamento."

Vieira foi um religioso mestre na parenética, o maior escritor português do século XVII; ele e Bossuet, os maiores pregadores católicos do mesmo século. Pouco importa a discussão sobre se cultista, conceptista, síntese do Barroquismo ou gongórico - aliás, gongórico certamente não foi. Suas palavras, suas construções, seus raciocínios, sua lógica têm sentido. Fundamentam-se na realidade, que elogiam ou reverberam. Criticam e orientam com clareza. Não são grandiloqüência vã, mas doutrina de justiça e retidão.

Seu estilo é repleto de metáforas e comparações engenhosas, de conceitos de erudição enciclopédica, expressões e arranjos de frases surpreendentes, vasta riqueza léxica, notável sintaxe, atrevidos impulsos de espírito, elevado teor vernáculo, insuperável energia e vivacidade, cinzelado manejo de linguagem, inigualável verve motejadora. Realmente uma oratória ousada e fulgurante, a mais ousada e fulgurante produzida na língua portuguesa.

Para Vieira, "pregar é entrar em combate com os vícios". Com tal intuito, suas prédicas são peças de inegável rigor lógico e de inquestionável ordem estrutural, organizadas para não perder a batalha contra os vícios. O "Sermão da Sexagésima", de formidável poder dialético, enfeixa as linhas básicas a observar para uma boa pregação:

"Há de tomar o pregador uma só matéria, há de defini-la para que se conheça, há de dividi-la para que se distinga, há de prová-la com a Escritura, há de declará-la com a razão, há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias que se hão de seguir; com os inconvenientes que se devem evitar; há de responder às dúvidas, há de satisfazer as dificuldades, há de impugnar e refutar com a força da eloqüência os argumentos contrários, e depois disto há de colher, há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar".

Vieira foi político. O norte da razão de Vieira era a política. Todo o seu pensar dirigia-se aos negócios do Estado. Nesse tempo, em que à política faltavam meios eficazes para coordenar opiniões e dirigir vontades, o púlpito era a tribuna pública. Essa opção, esse gosto pelas coisas da política renderam-lhe numerosas tribulações. Inimigos ferozes, de interesses contrariados, tentaram investir contra a vida do jesuíta.

Na política, segundo o poeta Tomás Ribeiro, Vieira "disse verdades amargas ao povo, aos nobres e ao Rei". Extraordinária sua agudeza ao caracterizar o comportamento das categorias dos agrupamentos políticos:

"Assim como agora se unem para subir, assim se dividirão depois para se derrubar. Quantos se uniram para a batalha, que depois se mataram para os despojos? A ambição que agora os une, essa mesma os há de apartar depois, e de um lado contra outro lado, como de dois montes opostos, se hão de combater e fazer a guerra".

Os ditames para a boa prédica enumerados no Sermão da Sexagésima, observou-os invariavelmente e com vibratilidade, sempre em luta, sempre bradando alto contra todos os vícios, quer vícios de ordem estritamente moral, quer vícios no campo da atuação política ou no horizonte da ética. Constituem verdadeiros azorragues as investidas contra a corrupção em sermões como o do Bom Ladrão, no qual declina o verbo "rapio" em todos os tempos, modos e pessoas, caracterizando as ações dos prepostos da Coroa nas colônias, ou o Sermão dos Peixes, com que castigou duramente os adeptos da escravidão dos indígenas ou da instrumentalização de povos, pessoas e bens públicos em benefício particular.

Assistido por um dinamismo incomum, o político Antônio Vieira ocupou-se de todas as questões candentes do seu tempo e agiu para dar-lhes destino compatível com o que julgava correto. Perseguiu esse objetivo com coerência e coragem inquebrantáveis. É exemplo dessa coragem sua campanha contra a Inquisição portuguesa e contra a maneira com que esse instituto tratava os cristãos-novos de Portugal e a ele mesmo. Com essa atitude, correu o risco de inexorável e dura condenação.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não são somente os sermões que luzem e surpreendem por circunlóquios, metáforas, alegorias, antíteses, paradoxos, hipérboles e serena intrepidez; sua vida é prototípica, paradoxo de fé, metáfora de existência, hipérbole de obediência, intrepidez de renúncia, lucidez de profeta; assombro cristalino de amor.

Após 300 anos de sua morte, em plena época de globalização, de Estados democráticos, de regimes republicanos, de meios de comunicação extremamente eficazes e rápidos, de crescente e sensível amadurecimento da consciência ética, às vésperas de um novo milênio, muitos campos ainda subsistem para a continuação do combate empreendido por Vieira ao longo de sua vida de religioso, missionário e homem público.

Semelhante grandeza, tão retumbante voz, tão altissonante brado, nem a morte, nem o tempo calam.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/06/1997 - Página 12506