Pronunciamento de Roberto Freire em 26/06/1997
Discurso no Senado Federal
COMENTARIOS ACERCA DO DOCUMENTO ELABORADO PELO CIENTISTA POLITICO BRASILEIRO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE HARVARD, ROBERTO MANGABEIRA UNGER, NO ENCERRAMENTO DO ENCONTRO DE REPRESENTANTES DE PARTIDOS DE ESQUERDA E MOVIMENTOS SOCIALISTAS LATINO-AMERICANOS, RECENTEMENTE REALIZADO EM SANTIAGO DO CHILE. HISTORICO DA ESQUERDA BRASILEIRA E DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO.
- Autor
- Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
- Nome completo: Roberto João Pereira Freire
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
-
POLITICA PARTIDARIA.:
- COMENTARIOS ACERCA DO DOCUMENTO ELABORADO PELO CIENTISTA POLITICO BRASILEIRO E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE HARVARD, ROBERTO MANGABEIRA UNGER, NO ENCERRAMENTO DO ENCONTRO DE REPRESENTANTES DE PARTIDOS DE ESQUERDA E MOVIMENTOS SOCIALISTAS LATINO-AMERICANOS, RECENTEMENTE REALIZADO EM SANTIAGO DO CHILE. HISTORICO DA ESQUERDA BRASILEIRA E DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO.
- Aparteantes
- Bernardo Cabral, Eduardo Suplicy, José Eduardo Dutra.
- Publicação
- Publicação no DSF de 27/06/1997 - Página 12558
- Assunto
- Outros > POLITICA PARTIDARIA.
- Indexação
-
- ANALISE, MOVIMENTAÇÃO, PARTIDO POLITICO, OPOSIÇÃO, SOCIALISMO, BRASIL, AMERICA LATINA, REFORMULAÇÃO, IDEOLOGIA, PROJETO, COMBATE, LIBERALISMO, ATUAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO, ECONOMIA, MUNDO.
- ANALISE, DOCUMENTO, AUTORIA, ROBERTO MANGABEIRA UNGER, PROFESSOR, BRASIL, AMPLIAÇÃO, DEBATE, REFORMULAÇÃO, PARTIDO POLITICO, OPOSIÇÃO, ESPECIFICAÇÃO, PARCERIA, NATUREZA POLITICA, OBJETIVO, MODERNIZAÇÃO, ESTADO.
- ANALISE, POSIÇÃO, PARTIDO POLITICO, PARTIDO POPULAR SOCIALISTA (PPS), DEBATE, REFORMULAÇÃO, OPOSIÇÃO.
O SR. ROBERTO FREIRE (BLOCO/PPS-PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, fiz um pronunciamento escrito. A polêmica poderia instalar-se, se fôssemos improvisar até porque poderíamos ser bem mais pontuais, conjunturais. Mas pretendo que a polêmica não se cinja ao plenário do Senado, até porque aqui a polêmica tem vinculação com posicionamentos pessoais e, se esses forem de agressão, mais fácil ainda. Como espero que tenhamos um debate mais produtivo, lerei.
Magistral como sempre, o veterano cineasta japonês, Akira Kurosawa, em um dos seus filmes, recorreu a uma rica expressão para se referir a uma situação de confronto iminente entre dois feudos daquele conjunto de ilhas do Pacífico: "a montanha se moveu". Indicava, com essa imagem, a quebra de um equilíbrio precário entre dois pólos políticos, após a morte do poderoso Shogum.
Pois bem, agora, lanço mão da expressão de Kurosawa para também afirmar em relação à esquerda brasileira: "a montanha se moveu". Após vários anos estagnadas no porto inseguro da resistência, pura e simples; e ainda perplexas com a vertiginosa e desafiante aceleração, nesse último quarto de século, da internacionalização da economia; e atordoadas com a queda do Muro de Berlim e o fim da experiência histórica do socialismo real, as Esquerdas brasileiras, particularmente aquelas mais hegemônicas, parece que começam a sair da letargia e formular, no fundo de um horizonte ainda não tão visível, algumas inflexões ideológicas capazes de culminar na criação de uma nova e viável alternativa política.
Refiro-me, em termos mais específicos, ao recente encontro em Santiago do Chile, realizado na segunda semana de maio e que reuniu vários Partidos de quatro importantes países da América Latina - Brasil, Argentina, Uruguai e México, interessados em fomentar um projeto político capaz de combater a chamada vaga neolibera e também descortinar cenários favoráveis ao continente no quadro do intenso processo de globalização da economia. É bem verdade que nem todas as Esquerdas foram e que nem todos os Partidos democráticos estiveram lá representados. No caso do Brasil, foram convidados representantes do PT, PDT, PSB e dissidências do PSDB e PMDB, mas isso não importa. O fundamental é que se constituiu uma Mesa de discussão, na qual velhos mitos e velhos preconceitos foram deixados de lado para, concretamente, apontar saídas disponíveis para todos nós que não acreditamos no fim da utopia socialista nem aceitamos ficar sob a tutela de um movimento mundial capitaneado pelos países centrais do capitalismo.
Desde o IX Congresso do Partido Comunista Brasileiro e o evidente desmantelamento do socialismo real - e em minha campanha para Presidente da República sempre tive esta realidade presente - os comunistas clamavam por um novo projeto político para as Esquerdas. Que realidade? Temos de superar visões que já estão fundamentadas, velhos preconceitos, para fazermos frente ao neoliberalismo. E dizíamos que tínhamos de apresentar uma proposta para o País.
Apontavam os comunistas para o fato de que antigos paradigmas haviam entrado em colapso e que, na virada do século XXI, para afirmar projetos hegemônicos, a Esquerda teria de, obrigatoriamente, ultrapassar conceitos clássicos, como a centralidade da classe operária, a expectativa de fortalecimento de um Estado produtor e ultracentralizado, e superar o vínculo draconiano às corporações de toda espécie e reinagurar um novo conceito de política, valorizando, sobretudo, o espaço público como arena anterior aos interesses de reprodução do Estado e do próprio mercado.
Por vários momentos, fomos criticados por adotar essa postura. Entre outros absurdos, nossa posição, vez por outra, era caracterizada como faceta humanizada do neoliberalismo, aliás, uma terminologia imprecisa e que, ultimamente, só tem contribuído para estrangular a busca da renovação conceitual no campo da Esquerda. Defender as reformas do Estado e da Sociedade, não na perspectiva do atual esquema de Poder, mas na de um projeto de esquerda, passou a ser considerada uma posição herege, um anátema neoliberal. Antigamente, utilizando a nossa velha terminologia, quem a professasse seria um renegado. Predominou, durante todo esse tempo, a visão canhestra de entender que o Estado brasileiro não deveria ser alterado - daí a defesa impensada do serviço público tal como é e está, os monopólios e todas as empresas estatais, sem nenhuma dimensão estratégica - e, se o fosse, isso só deveria ocorrer no quadro de um novo governo, ou seja, com a Esquerda no Poder.
Ora, não se pode marcar datas para transformar um País. Acreditar que as mudanças só podem advir, no futuro, com um Governo progressista não é política; é uma espécie de aposta, de jogo de azar. Temos de nos preparar para este momento, e por ele devemos lutar, criando novas alianças, formulando novos projetos. Entretanto, quem quer mudar o futuro precisa começar a fazê-lo aqui e agora, independentemente de quem está no Poder. No regime democrático, mesmo em minoria, as Oposições igualmente democráticas e progressistas têm espaços de ação. Mas insistir apenas em uma postura de resistência, sem nada propor de concreto, é antecipar o fracasso e escrever a crônica da derrota anunciada. Afinal, a sociedade não vive do aguardar promessas, essas já bem preenchidas e representadas pela fé. Ela demanda contemporaneidade, propostas claras, coragem e capacidade política para mudar.
As colunas de pedra começam a ensaiar alguns movimentos.
Como centro desse novo cenário está o documento preparado pelo filósofo brasileiro Mangabeira Unger, referência para o encontro a que já aludimos, de Santiago do Chile. Em termos gerais, ele não apresenta grandes novidades em relação ao que já vem sendo falado por várias lideranças políticas e pensadores brasileiros, independentes ou com vínculo partidário. Sua originalidade encontra-se no fato de servir de guia para o debate de alguns Partidos e por levantar pontos que, pelo prisma de determinadas concepções políticas e ideológicas, antes eram inimagináveis.
Em primeiro lugar, o documento traz para o cenário partidário uma discussão preliminar sem a qual não se pode avançar, nem no Brasil, nem na América Latina, qual seja a da necessidade de se buscar uma forte aliança política de Centro-Esquerda, único caminho disponível, pela vertente democrática, para ultrapassar o Bloco de Centro-Direita, que vem realizando mudanças com o viés da exclusão e atravancando as reais e necessárias reformas nos países latino-americanos. Dessa propositura transparece uma compreensão clara: em nenhum País do continente - e esta verdade também se aplicaria ao Brasil - há uma hegemonia partidária suficiente para, isoladamente, ou com aliados residuais, impulsionar processos de transformação. Fora do quadro de uma ampla aliança, nada se move, ou se move, nada se muda.
No Brasil sempre lembramos - e às vezes fomos incompreendidos - que a grande lição para quem pretende retirar o País de seus dramas seculares estava no episódio da Assembléia Nacional Constituinte e não na experiência da Frente Popular, ensaiada no segundo turno das eleições de 1989 e constituída efetivamente em 1994, apregoada por muitos como uma grande novidade. Lá, a aliança de Centro-Esquerda, gravitando em torno da figura democrática e incontestável de Ulysses Guimarães, impôs à Direita conquistas políticas fundamentais, dentre as quais ressaltamos como exemplo o capítulo dos Direitos e Garantias, o da Seguridade Social - base institucional para a construção, entre nós, de um modelo referenciado no Estado do Bem-Estar Social - e a antecipação da Agenda 21, quando definiu-se uma política de meio ambiente e desenvolvimento sustentado. O autodenominado "Centrão" foi isolado e muitas propostas, além daquelas já referidas, nascidas nitidamente do campo de compreensão da Esquerda, acabaram vitoriosas e consignadas na Carta Magna.
Recuando um pouco mais no tempo, voltemos ao próprio Colégio Eleitoral, até hoje questionado por certas correntes de Esquerda. Naquela conjuntura, a Aliança Democrática então forjada foi de fundamental importância, pois, além de sepultar a ditadura militar, varreu grande parte do entulho autoritário dos governos militares e possibilitou a instalação da Assembléia Constituinte que promulgou a Constituição mais democrática de nossa história. Só para ressaltar: as alianças não são alheias nem à história da República nem aos partidos políticos de Esquerda.
Discordamos do documento de Unger, quando estabelece uma estratégia política concebendo uma alternativa ao que denomina "caminho único", representado pelo neoliberalismo que controlaria por todos os poros o fenômeno da globalização. Dizemos que a globalização, além de não ser um processo que possa ser detido, posto refletir o desenvolvimento da humanidade neste final de século, tal como refletiram o cosmopolitismo da burguesia e a internacionalização da economia a partir da primeira revolução industrial, também não tem apenas a perspectiva de um só caminho e um único pólo hegemônico. Acreditamos, firmemente, na possibilidade de gerar um debate nos países e no contexto internacional, de forma a buscar outro direcionamento e uma outra hegemonia, esta includente, mais solidária com os países situados fora do círculo dos países ricos e mais íntegra. Neste ponto, não podemos desconhecer como avanços - e deles extrairmos lições - as últimas vitórias de concepções democráticas e de Esquerda em países como Itália, Inglaterra e França, que já mudaram a agenda da União Européia. Maastricht não é mais o tratado apenas do mercado e da moeda, mas também das cláusulas sociais do mundo do trabalho, enfim, do homem. Desses embates futuros, na Europa, certamente está sendo forjado o Estado que dará continuidade, em novos moldes, às conquistas do antigo Estado do Bem-Estar Social.
Poderíamos fazer aqui um pequeno comentário: isso é uma demonstração de que não é imbatível o neoliberalismo. O grande e prepotente poderio do neoliberalismo não é tão intransponível quanto possa parecer à primeira vista.
Há no documento de Unger uma assertiva que sintetiza a idéia de ruptura, com concepções atinentes a setores da esquerda brasileira, que merece ser transcrita: "Não queremos voltar ao nacional-populismo e à estratégia semi-autárquica da substituição de importações, nem às finanças públicas inflacionárias de governos fracos e mentirosos".
É interessante observar que, entre os participantes de Santiago, estavam não só alguns que primam suas ações por um nacionalismo exacerbado e com alto grau de populismo, bem como outros que, até bem recentemente, descartavam a importância da estabilidade monetária do real, quase todos saudosos das reservas de mercado.
Se juntarmos a essa visão de ruptura a tentativa de superarmos e, como enfatiza Unger, renegarmos a chamada esquerda corporativa própria a setores organizados e também a esquerda populista dos setores desorganizados da nossa sociedade, teremos efetivamente um amplo espaço de debate e grande perspectiva de resgatarmos, para a esquerda, o projeto da esperança e uma sociedade mais justa.
Outro ponto digno de destaque, também com forte inserção no pensamento dos participantes do encontro, diz respeito à questão das empresas públicas e da política de privatizações. E a formulação é muito clara: diz Unger que a constituição de uma empresa pública, bem como a sua privatização, não é um postulado ideológico. Deve obedecer a realidades históricas bem definidas e se enquadrar em projetos de políticas públicas e de desenvolvimento. Esta orientação recoloca a discussão sobre novas bases, tendo em vista que parcelas expressivas da esquerda brasileira paralisaram-se ante as mudanças no Brasil, por estarem demasiadamente presas às amarras do estatismo.
Esses setores nada mais fazem senão tentar impedir as privatizações e, frise-se, toda e qualquer privatização. A discussão caso a caso, empresa por empresa, seria o racional, inclusive descortinando alternativas quanto aos procedimentos, obrigações, cláusulas sociais e salvaguardas trabalhistas para a economia brasileira. Aliás, o próprio Lula percebeu esse equívoco e puxou a orelha dos seus liderados no processo de venda da Vale do Rio Doce, ao admitir que faltaram outras estratégias, como o condicionamento da privatização a grupos nacionais ou à venda de parcelas expressivas das ações aos trabalhadores, mesmo que fosse necessário recorrer aos recursos do FGTS. Por sinal, talvez por ironia, mesmo não seguindo as observações do Líder do PT e muito menos procedimentos ou condicionamentos do edital de leilão, tivemos uma participação decisiva dos fundos de pensão das estatais na maioria das privatizações já realizadas, o que significa dizer participação e, em alguns casos, até controle de capital pelos trabalhadores brasileiros. Vou-me permitir especular e aqui coloco um ponto para reflexão: não seria essa realidade dos fundos de pensão, como grandes investidores das economias em todo o mundo, o prenúncio de uma nova etapa do capitalismo, o da socialização do capital?
Nós, do PPS, assim como outras pequenas formações e lideranças políticas de esquerda, há muito desideologizamos a questão privatização/empresa pública. Entendemos que o Estado deva sair dos setores tradicionais, que não são mais estratégicos ao nosso desenvolvimento. Entretanto, queremos outro Estado, capaz de investir em áreas sociais relevantes, fortalecer e ampliar empresas públicas e instituições como, por exemplo, Embrapa, Fiocruz, Agência Espacial, dentre tantos outros centros de pesquisa e de investigação existentes no Brasil. E mais: criar novas empresas, institutos e agências que tangenciem e alavanquem a fronteira da ciência e da tecnologia. O novo Estado, pela nossa ótica, não é mais o Estado-empresário, o empreendedor diretamente envolvido nas atividades econômicas, mas o instrumento social para regular mercado e garantir a prevalência do interesse público. Além do mais, precisa ter a competência para, ao mesmo tempo que se relaciona com a economia na regulação da produção e consumo/oferta e procura, exercer também o papel de provedor e indutor de atividades econômicas de resgate do social e de fomento à ciência e tecnologia.
Neste ponto, achamos interessante quando Unger fala da necessidade de um Estado forte e democratizado. Forte no sentido de ter maior capacidade de investimento, demandando para isso mais agilidade no processo de arrecadação e para regulamentar mercado e garantir a ampliação do espaço público. E democrático o suficiente para deixar a condição de ser cartório de grupos privados e voltar a ser instância para fazer fluir, por excelência, os interesses da grande maioria da população. Fundamentalmente, acrescentamos nós, um Estado que estenda a proteção social a toda a cidadania.
Enfim, um Estado do Bem-Estar Social que nunca existiu na América Latina nem no Brasil, a ponto de não termos receio de afirmar que a luta pelo seu estabelecimento - sem clonagem e de molde contemporâneo - entre nós, é revolucionária.
O Sr. Bernardo Cabral - Permite-me V. Exª um aparte?
O SR. ROBERTO FREIRE - Concedo o aparte ao nobre Senador Bernardo Cabral.
O Sr. Bernardo Cabral - Senador Roberto Freire, estava trocando idéias aqui com o Senador Pedro Simon e, no fundo, estávamos elogiando V. Exª. Ele e eu, mais velhos, pelo passado que tivemos de identidade, relembrávamos a sua atuação na Assembléia Nacional Constituinte. É com muita alegria que vemos, a cada tempo que passa, que V. Exª não evolui - não é esse o termo. V. Exª se comporta com a realidade, sobretudo do nosso País. E quando V. Exª declara que o Estado tem que ser um instrumento social para regular o mercado, um Estado provedor, indutor, um Estado democrata o suficiente para deixar de ser cartório de grupos privados e um Estado de Bem-Estar Social, não posso deixar de me congratular com V. Exª. Não posso por algumas razões plausíveis: primeiro, porque essa evolução que acontece no ser humano é sempre para melhor. Infeliz do cidadão que fica estático, que não vai para o caminho do dinamismo, que não acompanha a realidade social do seu País. Se ontem o regime capitalista não deu certo, e o socialista também não acompanhou os passos, hoje temos que buscar esse caminho onde se possam apontar soluções. O Senador Pedro Simon e eu observávamos V. Exª quando apontava, inclusive olhando para a Liderança do PT, o puxão de orelhas que o Lula estava dando, porque fomos companheiros dele na Assembléia Nacional Constituinte. Sabemos que os tempos atuais são outros. Aí, V. Exª há de perguntar: então, por que este aparte? Para cumprimentá-lo por essa escalada, cada vez melhor, no seu raciocínio.
O SR. ROBERTO FREIRE - Agradeço, Senador Bernardo Cabral, e diria que talvez essa escalada, como V. Exª está chamando, tenha uma razão de ser: é que não me despojei de uma visão marxista do mundo e comecei a descobrir que, se antes eu tinha essa visão marxista muito vinculada a certos manuais, até porque tínhamos um movimento internacional vitorioso - embora depois derrotado -, mas vitorioso porque dominava com a sua concepção grande parte do mundo, hoje sinto que talvez esteja compreendendo bem melhor o marxismo. Entendo muito mais o processo dialético na sociedade e aquilo que me parece ser o grande ensinamento, que é esse processo histórico das revoluções que ocorrem e que mudam não apenas a relação do ser humano com a natureza, mas também todas as suas instituições, as suas relações no trabalho, na sociedade, na família; mudam a consciência. E nós estamos vivendo um momento de profunda transformação. Talvez a mais profunda revolução que a humanidade já experimentou, novos paradigmas. E pensarmos essa mudança com as velhas concepções é, evidentemente, como eu disse aqui, crônica de derrota anunciada. Se pensarmos na conjuntura, é uma esquerda que não está entendendo que esse é um processo em que se disputa hegemonia. Tal como na Revolução Industrial. Daí a genialidade de Marx, que disse para o socialismo utópico, para a incipiente classe operária que não era quebrando as máquinas recém-inventadas que se teria melhor qualidade de vida, que iriam construir uma melhor sociedade. Ele indicava que ali estava a forma de se organizar e de entender o processo e colocar a máquina a serviço do trabalho, e não a máquina como instrumento da acumulação do capital.
É a mesma coisa hoje. A esquerda que não entende que no processo de globalização, de internacionalização, planetização - dê-se o nome que se queira - não podemos quebrar as máquinas, mas entender o processo e afirmar nossa hegemonia, com os aspectos positivos e negativos que esse processo tem. Se assim agirmos, poderemos voltar a ser força determinante na condução de uma luta pela sociedade mais justa. Se não entendermos, cairemos no gueto, no isolamento e faremos a política com aquilo que nunca foi característica da esquerda: com raiva e com ódio. A esquerda sempre fez ao contrário: com esperança e amor.
É com essa compreensão que vejo a montanha se movendo, imaginando que nesse ponto nós da esquerda, nós do antigo Partido Comunista, nós do PPS, estamos em casa. Nesse caso, participamos do diálogo, participamos da construção de uma alternativa. Queremos uma esquerda nesse projeto. Não pode continuar a esquerda imaginando fazer política com suas velhas concepções - que eram nossas - como estatizar a economia, buscar a culpa no outro, criar o fantasma - como antes do imperialismo, na nossa radicalização. E é interessante lembrar que, quando falávamos do imperialismo, havia um socialismo para nos dar referências. Hoje não temos. Fala-se em neoliberalismo para tudo, como ouvi recentemente um Líder de Partido de esquerda dizer que aconteceu em Minas um motim e que aquilo era fruto do neoliberalismo. Ou seja, é um demônio; é uma visão de fé, não é uma visão da racionalidade política. Nessa visão não iremos para lugar algum.
Eu quero ir e não quero ir sozinho como PPS; quero ir com as forças democráticas deste País, com as forças de esquerda pela generosidade que representa esse projeto, que representou historicamente e que pode representar para o futuro, e é por isso que estamos querendo participar desse debate.
Falei ontem com o Presidente do PT, dizendo exatamente que, ao abrir debate, podia contar com o PPS, mas que, quanto à reedição da Frente Brasil Popular, como foi em 1994, evidentemente, o PPS não vai participar. Essa é uma decisão do Partido, não por ser contra a frente de esquerda ou por não querermos estar juntos da esquerda. Pelo contrário, somos da esquerda, do campo da esquerda. Queremos afirmar para a sociedade essa proposta da mudança e não a proposta do passado.
Construir essa alternativa é exatamente um dos meus objetivos ao trazer a nossa posição em um documento que serviu de debate, em Santiago do Chile, ao PT, ao PDT, ao PSB, a algumas Lideranças de outros Partidos, como do PSDB e do próprio PMDB; construir a tentativa de voltar a ser alternativa de poder, porque essa é a forma de nos contrapormos à vaga neoliberal, ao bloco de centro-direito, afirmando aquilo que é contemporâneo, até para podermos ter futuro.
O Sr. José Eduardo Dutra - Concede-me V. Exª um aparte?
O SR. ROBERTO FREIRE - Concedo o aparte ao ilustre Parlamentar que, no campo da esquerda, dentro do PT, é uma Liderança que consegue há muito tempo iniciar e participar de debates como este e ter a compreensão de renovação que a esquerda brasileira deve ter.
O Sr. José Eduardo Dutra - Senador Roberto Freire, inicialmente, quero dizer aos meus colegas que não estou com a orelha quente.
O SR. ROBERTO FREIRE - A expressão até que realmente não é para todos.
O Sr. José Eduardo Dutra - Nessa passagem do pronunciamento de V. Exª, o Senador Bernardo Cabral e o Senador Pedro Simon perguntaram se o Lula tinha puxado minha orelha. Até peço permissão à Mesa para me alongar um pouco no aparte ao orador, já que restam 50 minutos e este é um assunto instigante. Peço desculpas, se eu já antecipar algumas questões que sei estão no pronunciamento de V. Exª, que teve a delicadeza de entregar-me uma cópia anteontem. Quero dividir o meu aparte em dois: um, para certa divagação ideológico-filosófica; outro, para uma questão mais momentânea, do dia-a-dia. Durante muito tempo, a esquerda, a partir do marxismo vulgar, estabeleceu, em primeiro lugar, um imanentismo na classe operária: ela era a classe que tinha um papel já determinado na história; foi, muitas vezes, classificada como a primeira classe suicida da história, porque, como classe revolucionária, iria fazer a revolução que possibilitaria a extinção das classes; ela inclusive. No entanto, este século 20 é repleto de ironias e de perplexidades; uma delas é que a classe operária está se extinguindo não a partir de uma revolução, não a partir da tomada do poder; ela está se extinguindo em termos numéricos em função da própria evolução do capitalismo. E quando dizem que isso é uma vitória do capitalismo, digo que é uma vitória em termos, porque caímos na segunda grande ironia do século 20. Quando nosso velho Lênin, guru meu e de V. Exª durante muito tempo, na época da Revolução Soviética, procurou dinamizar a economia soviética sob a alegação de que o operário russo era indisciplinado e que não estava preparado para dar o salto de qualidade da indústria, introduziu na economia russa o primeiro estado operário da história, introduziu o taylorismo, que era o método de gestão do trabalho tipicamente capitalista para possibilitar que a economia soviética desse o salto de produtividade. Meio século depois, quando o capitalismo estava chegando a um grau de dificuldade em dar salto de qualidade, saldo de produtividade, começa a pegar particularmente por intermédio da iniciativa japonesa, que hoje se espraia pelo mundo todo e busca exatamente, dentro de conceitos socialistas, a introdução de novo método de gestão no trabalho que possibilite dar o saldo de qualidade para o capitalismo, ao introduzir a chamada gestão por qualidade total, isto é, passar a entender que o operário deveria deixar de ser uma simples mão-de-obra e deveria passar a ter, também, influência no controle da produção, deveria passar a ter influência na gestão da produção, ter decisão sobre o destino de seu trabalho. Quer dizer, conceitos estranhos à lógica do taylorismo e à lógica do capitalismo foram buscados dentro da experiência socialista. Essa é, a meu ver, a grande ironia da história. Nessa questão da qualidade total, diversos setores da Esquerda e do sindicalismo têm adotado a mesma posição que os ludistas adotaram na época da Revolução Industrial. Na ocasião, quebravam as máquinas, hoje querem destruir e não aceitam nem discutir o conceito de qualidade total ou de novas gestões de qualidade nas fábricas, alegando que essa é uma forma de aumentar a exploração, quando, na verdade, não é. Tenho uma experiência pessoal interessante que passo a relatar. Quando era Presidente do Sindicato dos Mineiros, em Sergipe, a Direção do Sindicato tomou a decisão de colocar em xeque a Companhia Vale do Rio Doce, empresa, então estatal, que tinha avançado mais no conceito de qualidade. Só que o conceito de qualidade total abrange a qualidade intrínseca do produto - aquilo que conhecemos como qualidade -, a satisfação do cliente e a satisfação e o bem-estar do trabalhador. O problema é que o empresariado nacional só quer pegar os dois primeiros itens e se esquece do terceiro. Chamamos a Direção da Vale, em Sergipe, e dissemos que queríamos aplicar a qualidade total. A nossa proposta deu um certo nó na cabeça dos dirigentes da Vale, porque estavam acostumados com outros sindicatos, não queriam saber de programa de qualidade total, pois pensavam que se tratava de algo que iria aumentar a exploração. Procuramos introduzir esse debate. E posso garantir que esse debate está ganhando corpo dentro da Central Única dos Trabalhadores. A própria postura que o Sindicato do ABC vem implantando nos processos de negociação é resultado da proliferação e da ampliação dessa visão. Dentro da questão estatal, em todos os debates públicos de que participei - inclusive, V. Exª participou de um debate juntamente comigo, no Espírito Santo - disse que durante muito tempo a esquerda entendeu a estatização como atalho para o socialismo.
O SR. ROBERTO FREIRE - Não diria atalho, mas a transição socialista - alguns imaginavam isso.
O Sr. José Eduardo Dutra - Mas qual era a lógica? Quanto mais estatizada estivesse a economia, melhor, porque quando tomássemos o Palácio de Inverno, estaria mais fácil de implantar o socialismo. Como aqui não temos Palácio de Inverno, até porque o nosso clima não prevê isso, acabamos dando com os burros n´água. Concretamente, portanto, temos adotado a postura de defender um Estado que não foi construído por nós. No que diz respeito às empresas estatais e à administração pública, trata-se de um modelo de Estado que, quando implantado de forma mais expressiva, fez com que os democratas, os socialistas, os comunistas, os homens de esquerda fossem presos, banidos, torturados e mortos. Fomos levados a uma situação de defender o status quo e, por mais que fizéssemos o discurso "não, não é bem assim", transpareceu para o povo uma outra impressão. Por isso, perdemos o debate ideológico no conjunto da sociedade, com exceção da Companhia Vale do Rio Doce. O caso específico da Vale foi o único que o Governo perdeu, em que a população, majoritariamente, era contra sua privatização. Continuando nessa divagação, V. Exª no seu pronunciamento toca num ponto que eu já havia colocado nos debates internos no PT: a discussão da nova forma de propriedade. Quer dizer, antes havia a propriedade privada típica que, nos nossos panfletos, nos nossos boletins, era simbolizada por um empresário de cartola, com o bolso cheio de dinheiro; havia a propriedade estatal, que achávamos que era pública e significava o caminho para o socialismo. Mas, como enquadrar, dentro dos nossos conceitos tradicionais de propriedade - e isso ocorre no mundo todo -, os fundos de pensão que têm, cada vez mais, um papel fundamental.
O SR. ROBERTO FREIRE - É a reflexão que coloquei aqui.
O Sr. José Eduardo Dutra - Por isso pedi desculpas antecipadamente, Senador Roberto Freire. Estou adiantando o assunto porque li isso no seu discurso. Como enquadrar os fundos de pensão dentro dessa lógica? Uma empresa, propriedade de um fundo de pensão, que por sua vez ele é resultado da participação acionária de milhares, de milhões de pessoas, de trabalhadores, isso é empresa privada? É uma empresa socializada? Não sei! O que sei é que ela não se enquadra dentro das categorias que conhecemos.
O SR. ROBERTO FREIRE - Não é do capitalismo tradicional.
O Sr. José Eduardo Dutra - E acho que esses elementos servem para mostrar também que o capitalismo não foi o vitorioso, pelo menos não a forma de capitalismo que era combatida na época do velho Marx, pois teve a capacidade de se moldar e pegar pontos que eram sugeridos. Saindo dessa divagação e chegando ao real, também sou defensor da tese de uma aliança de centro-esquerda para as eleições de 1998. O problema é que a aliança, assim como o namoro, depende das duas pessoas quererem. Confesso que estou pessimista em relação ao cenário para 1998. Onde está o Centro? O PSDB que deveria ter, em tese, esse papel, a meu ver está abdicando dele. Lembro-me de que na discussão da quebra do monopólio do petróleo e das telecomunicações, aqui nesta Casa, os Senadores do PSDB conversavam comigo e diziam que se tratava de uma questão meramente simbólica, mas quando da ocasião da regulamentação sua aliança seria conosco. Isso não aconteceu, o projeto da Aneel - Agência Nacional de Energia Elétrica, que votamos aqui, ou melhor, que o Senado mais uma vez carimbou sem votar, tem a cara do PFL. E mais, a cara do PFL da Bahia. Disse isso no dia da votação porque estava presente o Relator da matéria, o Deputado José Carlos Aleluia do PFL da Bahia. O mesmo aconteceu com relação à questão do petróleo, com exceção da Petrobrás, mas há outros elementos que prevaleceram claramente à questão do PFL. Tenho muito medo de ficar pregando no deserto essa tese de centro-esquerda, dentro do meu partido e dentro da esquerda, por absoluta falta de piscar de olhos do outro lado, quer dizer, de início de namoro. Quando o namoro começa há um piscar do olhos de cá, outro de lá, encontros, um pegar na mão, mas não sei se o outro lado quer namorar. Penso que o partido de centro-esquerda tem optado pelo outro lado, e isso está sendo muito demonstrado nas votações do Congresso Nacional. De qualquer forma, quero parabenizar V. Exª por trazer, mais uma vez, esse debate para cá, pena que o debate acabe ficando somente entre a Esquerda. Considero-o fundamental, aqui no Senado podemos falar sem patrulhamentos à direita ou à esquerda. Parabenizo novamente V. Exª, muito obrigado pela concessão do aparte, e desculpem-me, V. Exª e a Mesa, por eu ter transformado o aparte em um pronunciamento.
O SR. ROBERTO FREIRE - Ao contrário, quero dizer que é verdade que no Senado Federal não sofremos esse patrulhamento porque fazermos parte do Bloco de Oposição sob a liderança de V. Exª. É a demonstração concreta de que, mesmo podendo ter discordâncias, temos muitas convergências.
Interessante, creio, o que V. Exª chamou de uma certa divagação. Poderíamos debater o assunto, mas aí perderíamos talvez o que há de mais rico para começarmos a aprofundar a discussão.
O problema da ironia que o marxismo vulgar sofre é verdadeiro. Diria até que o marxismo, mesmo não vulgar, sofreu alguns desmentidos na sua aplicação prática. O socialismo talvez tenha criado, na sua experiência real, uma economia tão simplificada que impediu o livre desenvolvimento das forças produtivas, o que ele imaginava que o capitalismo iria fazer. Fomos derrotados com a revolução científico-tecnológica exatamente por isso. A sociedade não teve capacidade de fazer o aggiornamento, que o capitalismo fez.
Há várias questões importantes, como as contribuições, a economia planejada e a intervenção do Estado, que, por ironia, salvou o capitalismo da crise. Tudo isso é importante e deve ser aprofundado.
Eu gostaria de lembrar aquilo que V. Exª destacou. Houve um pequeno exemplo, que dá a exata dimensão do que é a mudança do chamado sistema capitalista, do que é a nova empresa, do que é o novo paradigma da economia, o qual estamos vivendo. Lembro-me de que, quando discutíamos a respeito do Sivam, foi citada a ESCA, empresa privada, que tinha capacidade de formular o software; uma das denúncias não dizia respeito ao problema do INSS, mas ao fato de que o seu presidente não era brasileiro. Essa empresa teria o código; os equipamentos dariam as informações, mas a codificação, o programa e o sofware pertenciam a essa empresa.
Essa empresa não pode continuar funcionando. O que se faz? Lembro-me de que alguém disse: é só usar a saída tradicional da esquerda, ou seja, estatizar. Estatizar o quê? A ESCA funcionava em um prédio com alguns computadores, mas o fundamental dessa empresa, que era o cérebro, não poderia ser estatizado.
No capitalismo industrial, estatiza-se. Há aquilo que produz e reproduz, que é o capital fixo, ou seja, os equipamentos, as máquinas; ao se retirar esse algo físico da propriedade privada, ela é transformada em estatal e continua produzindo, mas o cérebro não. E esse é um novo paradigma, um tipo de economia totalmente distinta. Ou entendemos isso ou não estamos entendendo mais nada.
Segundo - é uma questão bem política e que é importante discutir com V. Exª, porque, como disse antes, quando lhe concedi o aparte, não só por participar do Bloco, -, não houve puxão de orelha em V. Exª, até porque tenho a compreensão exata desse processo e da questão da centro-esquerda, mas talvez não tenha uma experiência, que nós, no Partido Comunista, tivemos e que seria muito ilustrativa aqui. Poderia lembrar o Partido Comunista Italiano, que historicamente lutava pelo compromisso com as forças de esquerda da democracia cristã. Berlinguer falava em compromisso histórico, porque não tinha condições de romper a barreira de um terço do eleitorado e tinha que buscar aliança com setores de esquerda e democráticos de outros partidos. Isso veio a se realizar agora, com a esquerda democrata cristã, depois da crise da República Italiana e da "Operação Mãos Limpas". O Partido Comunista Italiano, mesmo hoje, como Partido democrático de esquerda, vem perseguindo essa aliança, mesmo não podendo fazer o casamento porque o outro par não o desejava. Mas perseguiu.
Vou dar um exemplo nosso: o Partido Comunista brasileiro, na época da ditadura foi fundar o MDB, sabendo que era um instrumento que a ditadura tinha inventado para criar uma pantomima de democracia. Defendíamos que a luta era ali; era a luta legal, e a chamávamos de luta de massa. Nada de buscar confrontos. O primeiro deles foi o voto nulo dos representantes da AP e, hoje, muito deles estão no Governo. Lembro-me bem disso. Nós dizíamos: vamos junto com o MDB disputar a eleição e fazer campanha. Havia todo um processo político. E começamos. Fui fundador do MDB, embora tenha sido militante, na juventude, do Partido Comunista.
Em 1968/1969, houve a crise da Esquerda brasileira, do processo de luta armada e dos confrontos, e nós defendíamos a luta de massa, a luta legal, a ampliação da frente, chamando-a, num primeiro momento, de Frente Antifascista, depois, Frente Democrática. E nada de confronto.
Há um episódio interessante que é bom lembrarmos. Todo mundo está assistindo "O que é isso companheiro?". Um daqueles que saiu na troca com o Embaixador americano foi Gregório Bezerra. E só saiu depois que foi publicada uma carta feita por ele e pelo Partido Comunista brasileiro, dizendo que discordava daquele tipo de ação e que não era assim que se iria derrotar a ditadura. E só saía para não ter nenhum problema, inclusive com relação ao Embaixador americano.
É interessante lembrar: havia uma postura difícil, dura. Éramos chamados de reformistas e impedidos de falar em assembléia porque não tínhamos feito a opção pelo confronto armado e dizíamos que aquele não era o caminho. O caminho era o da formação de uma frente democrática, a mais ampla possível. Com que palavras de ordem? Num congresso clandestino, em 1967, o partido defendeu anistia, Constituinte e eleições diretas. Essas palavras de ordem não eram aceitas no MDB. Éramos discriminados. Isso era tese comunista. Lembro-me de que Brossard, Ulysses Guimarães, bem como vários editoriais condenavam essas teses, mas continuamos insistindo.
O noivo mais próximo não queria o casamento conosco e, muito menos, noivos mais distantes, como Teotônio Vilela, que estava na Arena, e tantos outros que não estavam na Oposição. Esse processo foi-se avolumando. Veio primeiro a Esquerda, derrotada na luta armada, na política do confronto, e integrou-se ao MDB. A partir de 1974, depois da vitória que o povo concedeu à Oposição contra a ditadura, começaram a integrar-se setores da esquerda. Vieram depois setores liberais e democráticos da sociedade. Isso foi-se avolumando, o casamento se deu, e superamos a ditadura.
Hoje, é claro que o noivo de centro-esquerda, ou o noivo democrático, está fazendo o casamento com a Direita. O Governo Fernando Henrique Cardoso, na sua contradição, é exatamente isso. Entendemos assim.
Mas há uma Esquerda que não admite nem namoro, nem noivado e, muito menos, casamento com o PSDB, que passa a ser um grande inimigo, tal como algumas vezes fizemos na História. Os sociaisdemocratas eram chamados de sociaisfascistas, no nosso vulgar marxismo stalinista.
Não vou ter nenhum noivado, e 1998 não é horizonte para mim. Pode até ser, pode até acontecer, porque a sociedade brasileira é tão dinâmica que isto pode acontecer: construirmos uma alternativa e até ganharmos as eleições. Mas esse não é o meu horizonte da política. Não posso ter política errática. Não posso ser contra o Governo. Não. Eu sou Oposição ao Governo, porque não faço política contra o Governo, até porque, em alguns momentos, pode haver políticas do Governo que eu apóie, e não é porque é este Governo que vou posicionar-me contra ele. Essa é uma posição pavloviana, se for falar do ponto de vista psicológico; é uma reação.
Continuo admitindo o PSDB ou o PMDB como forças democráticas da sociedade brasileira. Com elas tenho de buscar diálogo e, se possível, namoro, noivado e casamento, num Governo que pretendo de ampla coalizão democrática, viabilizando a centro-esquerda. Quando isso vai ocorrer? Com certeza, não vai ocorrer em determinado momento sem que eu comece a construi-lo agora com políticas concretas, mesmo não tendo a devida correspondência ou reciprocidade. Não posso, por exemplo, imaginar que são os nossos adversários aqueles que não estão junto comigo hoje. Estamos em campos diferentes, mas pertencemos ao mesmo campo democrático de Esquerda. Se partirmos dessa visão, permanentemente teremos diálogo. Podemos até não atuar juntos, hoje, amanhã, em 1998, mas tenho de procurar atuar em qualquer momento, principalmente no momento em que eu imaginar ser a alternativa de poder, porque não vou governar sozinho, com a frente de Esquerda ou com os partidos de Esquerda; vou governar com a centro-esquerda brasileira, sob pena de não ter governabilidade. Se tenho essa visão, preciso trabalhar para atingir esse objetivo. Vou dar com os burros n´água muitas vezes, é verdade, mas pore isso não posso perder a capacidade de dialogar.
Lamentavelmente, alguns setores de Esquerda - não generalizo, claro, porque no PT existem setores que têm nitidamente essa compreensão; V. Exª, Senador Eduardo Suplicy, é um deles -, setores de esquerda, repito, colocaram o Governo Fernando Henrique Cardoso, particularmente sua figura, como nunca a Esquerda colocou nenhum Presidente da República, salvo talvez os ditadores militares.
A culpa é de Fernando Henrique Cardoso? Claro que é. Talvez ele esteja mais satisfeito com Antonio Carlos Magalhães; com a aliança com o PFL, que lhe dá sustentação aqui. Nós não lhe damos nenhuma! Mas não tenho de estar buscando a culpa nos outros, embora pudéssemos apontar e elencar inúmeros equívocos produzidos pelo Governo em relação à Esquerda, à Oposição. Não tenho dúvida. Mas tenho de buscar - porque isso posso resolver - os meus equívocos. Posso analisar os equívocos do Governo, mas, primeiramente, preciso saber quais são os meus para não os cometer. Se continuar cometendo, tudo bem; não deu o namoro que eu queria. Mas continuarei insistindo. Em política, há isso.
O que estou querendo propor é que, neste momento, se este é o nosso objetivo, comecemos a pensar, como políticos, em como atrair esses setores para formular um projeto para o País, insistindo permanentemente, abertos ao diálogo, tendo a capacidade de reformular aquilo que é possível reformular, tentando construir esse espaço.
V. Exª ontem, Senador Suplicy, apresentou muito concretamente um fato que pode ser espaço para este diálogo: a Previdência Social. Claro! Vai dar? Não sei, mas vou lutar para que dê, para que ocorra. E não vou lastimar se não ocorrer. Vou continuar insistindo em buscar novos espaços. E é nesse sentido que Santiago do Chile abre a possibilidade de começarmos a falar nessa linha, com essa perspectiva. Daí a satisfação do PPS em dizer que a Esquerda brasileira, tal como a montanha na frase de Kurosawa, começa a se mover. E nós queremos nos mover juntos.
Para finalizar, eu gostaria de ouvir o Senador Eduardo Suplicy, que também é uma honra para nós.
O Sr. Eduardo Suplicy - Senador Roberto Freire, concordo com a avaliação que faz V. Exª do documento preparado pelo professor da Universidade de Harvard, Roberto Mangabeira Unger, que está se mudando para o Brasil em julho próximo. O documento foi apresentado recentemente em Santiago do Chile, como base para a discussão dos partidos progressistas mais à esquerda. Avalio que há ali concepções extremamente importantes, que de alguma maneira formam a base intelectual das forças que recentemente ganharam eleições em Portugal, França, Inglaterra e Itália, sobretudo quando apresenta uma concepção de direitos civis e direitos sociais que cada cidadão em cada sociedade deve ter como um direito próprio. Julgo também muito importante desenvolvermos esse diálogo a respeito de novas formas de organização da produção e empresarial. Há uma multiplicidade de formas cooperativas de produção. Inclusive, diante da crise por que passaram inúmeras empresas brasileiras durante o período de recessão, algumas delas - trabalhadores e empresários, de um lado e de outro - tiveram que estabelecer diálogos noutra perspectiva. No domingo último, o economista Paul Singer falou de múltiplas experiências de autogestão que surgiram a partir da organização de trabalhadores que se empenharam para que empresas não fossem fechadas. Nesta semana, anunciou-se que, no ABCD, empresários, trabalhadores, metalúrgicos, sentaram-se à mesa, abriram livros e informações, num grau de profundidade que não ocorria há cinco, dez ou vinte anos, para tomarem decisões importantes sobre criação de oportunidades de emprego e sobre novas formas de participação e remuneração do trabalho. Tratam-se de experiências que se incorporam na direção do que V. Exª está propondo como caminhos importantes sobre os quais a Esquerda deve estar dialogando.
O SR. ROBERTO FREIRE - Agradeço ao Senador Eduardo Suplicy. Eu diria que esse tipo de debate é fundamental. Novas formas empresariais, novas relações, estão surgindo. Eu diria que não há uma mudança apenas no mundo do trabalho, há uma mudança no mundo do capital. Estamos vivendo uma perspectiva de novos paradigmas em todas as relações humanas.
A Esquerda, se quiser ser contemporânea do futuro, terá de entrar neste debate, desvencilhando-se de toda uma concepção passada, trazendo para o debate aquilo que é permanente, que estava no nosso passado e que é importante que continue no futuro. São os nossos valores; o valor da solidariedade, da fraternidade, do internacionalismo, da superação de fronteiras, de etnias e de conceito de estrangeiro, da justiça, da igualdade. Esses são permanentes; mudam em função de realidades históricas.
Se trouxermos isso e formos para o debate aprofundado do que há, não tenho dúvida de que voltaremos, muito rapidamente, a ser uma alternativa de poder.
Gostaria de agradecer à Mesa pela liberalidade, de pedir desculpas ao Senador Júlio Campos e de agradecer, especialmente, à Senadora Regina Assumpção, de Minas Gerais, que faz parte de um partido - o PTB - que gostaríamos se integrasse no campo democrático, discutindo, participando, não sei se pela origem do nome, pelo que representou o PTB na História brasileira antes de 64, mas, de qualquer forma, por algo que tem relação com o Partido Trabalhista na sua origem, o Partido Trabalhista inglês.
Portanto, se quiser fazer aggiornamento, como estamos pretendendo, seria muito bem-vinda.
Nesse sentido, agradecendo a atenção, mesmo com poucas pessoas, parece-me que foi um debate importante, pelo menos para nós do PPS.