Discurso no Senado Federal

HOMENAGENS A FREI DAMIÃO, TRANSCORRIDOS 30 DIAS DE SUA MORTE.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGENS A FREI DAMIÃO, TRANSCORRIDOS 30 DIAS DE SUA MORTE.
Publicação
Publicação no DSF de 01/07/1997 - Página 12777
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DAMIANO DE BOZANO, SACERDOTE, PERSONAGEM ILUSTRE, REGIÃO NORDESTE.

           O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, passados trinta dias da morte de Frei Damião, quero, desta tribuna, render a ele minhas homenagens, na certeza de que a admiração despertada em vida não só perdurará, como se multiplicará daqui para a frente, pois o frade capuchinho nascido em terras distantes teve um verdadeiro encontro de almas com os brasileiros, particularmente com os nordestinos.

           Nascido na Itália há 99 anos, Frei Damião dedicou-se, desde cedo, ao cultivo da religião, pois, ainda na adolescência, ingressou no convento dos capuchinhos, ordem na qual se destacaria mais tarde, como um grande pregador.

           Pio Gianotti, como ainda era conhecido, não esteve alheio aos problemas de seu tempo nem aos deveres com seu País. Nessa condição, foi chamado a servir no exército italiano, período após o qual retornou aos estudos. Ordenado padre, em Roma, em 1923, diplomou-se, dois anos depois, em Teologia Dogmática, Filosofia e Direito Canônico, tendo sido logo guindado à condição de vice-mestre de noviços.

           Antes de vir para o Brasil, em 1931, chegou a ser professor e diretor do Convento de Massa, na Itália. Tinha, portanto, uma promissora carreira eclesiástica naquele país, mas dela abriu mão para vir pregar num distante continente.

           Chegando ao Brasil, instalou-se em Recife e logo começou a pregar as missões. Chama a atenção de seus biógrafos o fato de, por não dominar bem o português, ter de ler seu primeiro sermão, escrito previamente. Mas, mesmo com a barreira lingüística, confessou todas as pessoas que o procuraram naquele dia, em Gravatá, Pernambuco. Daí em diante, sua fama de pregador só fez crescer, tendo atingido o alto da popularidade por ocasião de seu velório, ao qual compareceram mais de 200 mil pessoas.

           Chamou a atenção do resto do País tamanha devoção ao frade. Foi com certa surpresa que a mídia noticiou a ocorrência, sublinhando a espantosa quantidade de pessoas. A imprensa ressaltou também a comoção causada pela morte de um frade que era tido como retrógrado, por alguns, e como conservador, por outros. Mas, afinal, que tinha esse religioso de tão especial? O que fazia que a ele acorressem multidões em vida, e por que causou tamanha emoção nos fiéis a sua morte?

           Com certeza, estudiosos da religião, da política e da sociologia se defrontarão com essas questões, buscando respostas científicas. Mas, provavelmente, nunca chegarão à compreensão leiga, autêntica, ingênua e integral que dele tiveram os sertanejos.

           Poucos poderão compreender a razão pela qual a presença do frei era tão ansiosamente aguardada em obscuros vilarejos do sertão, mesmo sendo seus sermões de difícil entendimento. Consta que, nos últimos tempos, por estar com a voz prejudicada pelos problemas respiratórios, apenas sussurrava. Mas ainda no auge de sua boa saúde, quando fiéis ouviam as palavras, muitos não alcançavam o sentido, a não ser quando o pregador se utilizava de imagens e parábolas para ensinar. Uma de suas histórias é a de duas jangadas em alto mar: uma delas, desgovernada, espatifou-se nos rochedos; a outra, bem guiada, ou seja, que seguia as leis de Deus, chegou segura ao porto. Mas o que as pessoas buscavam era mais que suas palavras, procuravam por sua presença, seu exemplo, sua atitude. E, nesse particular, Frei Damião seguia o exemplo de muitos santos: comia pouco, quase não dormia, não tinha luxos, dedicava-se apenas à religião. Ao que parece, mesmo que o Vaticano leve alguns anos para reconhecer as qualidades do frade, ele já preenchia os requisitos para ser beatificado: a fé, a esperança, a caridade, a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança. Essa é a opinião de alguns religiosos de Recife.

           Diz uma canção muito popular no Nordeste que o "cabra" nordestino, para receber essa designação tem de, entre outras coisas, amansar burro brabo, pegar cobra com a mão, trabalhar sol a sol, e de noite ir para o sermão -- e falar com Frei Damião. A canção, do saudoso Luiz Gonzaga, divulga alguns dos valores contra os quais o frade capuchinho se insurgia. E Frei Damião repudiava muitas coisas modernas: uso de minissaia, sexo fora do casamento, uso de maquiagem pelas mulheres, anticoncepcionais. Considerava isso como coisas do "capeta", fontes de pecado, que remeteriam os faltosos diretamente ao fogo do inferno. Mas os que aceitassem os mandamentos de Deus, pelo contrário, iriam diretamente para o céu.

           Talvez esse modo de lidar com conceitos tão abstratos da religião fizesse a popularidade de Frei Damião entre a gente sertaneja e, ao mesmo tempo, despertasse a ira de prelados que reprovavam uma visão tão antiga do papel da Igreja e do sacerdote.

           Frei Damião, na verdade, "caiu do céu" para o povo nordestino, formado, desde tempos imemoriais, sob preceitos religiosos rígidos, pois tem como fonte os conceitos do Concílio de Trento, do século XVI. O capuchinho se insere numa tradição de práticas religiosas muito apreciadas no Nordeste, que são as missões, as procissões, as festas de padroeiros e a devoção a determinados santos.

           As missões evangelizadoras a que Frei Damião se dedicou têm uma longa e fecunda tradição no Brasil, tendo sido iniciadas com os primeiros padres que aqui aportaram com a frota de Cabral. Tiveram continuidade com a ação de pregadores famosos, como o Padre José de Anchieta, recentemente homenageado aqui no Senado. Mas, ao longo dos últimos quatro séculos, encontramos destacados pregadores na mesma região em que atuou Frei Damião: o mais célebre deles, Padre Vieira, pregou no Ceará, na Bahia e no Maranhão, no século XVII; Frei Martinho de Nantes, também no século XVII, organizou a resistência indígena contra fazendeiros no Rio São Francisco; no Ceará, já no século passado, Padre José Maria Ibiapina celebrizou-se na região do Cariri.

           Mas a experiência mais significativa para os nordestinos antes de Frei Damião foi a representada por Padre Cícero, de Juazeiro, santificado ainda em vida pelos seus devotos, não obstante as contendas que teve com a hierarquia da Igreja Católica. E algumas características são muito semelhantes entre esses dois religiosos. Padre Cícero começou sua pregação junto às comunidades mais carentes, em 1872, com uma batina remendada, com um bastão na mão, com um chapéu de palha de carnaúba; austero, comia pouco e nunca pedia dinheiro. A fama de Padre Cícero aumentou mais ainda com a notícia de que obrava milagres, fato que o levou à suspensão de seu ofício como padre. Se para a hierarquia católica nunca houve comprovação de tais milagres, para o povo eles existiram, e hoje a cidade de Juazeiro é um centro de romaria para o qual acorrem nordestinos de todos os cantos, em busca de uma experiência de fé.

           Muitos dos admiradores consideravam ser Frei Damião a própria reencarnação do Padrinho Padre Cícero. Mas o frade negava qualquer semelhança, pois, ao contrário do primeiro, considerava-se o mais obediente dos sacerdotes, aceitando mesmo deixar de visitar certas dioceses em função do pedido de alguns bispos. Dizia que a vontade de Deus o conduziria a qualquer lugar, quando Deus quisesse.

           E quiseram os fiéis que Frei Damião visitasse muitos lugares: fez mais de 800 pregações nos mais diferentes lugares, sempre louvado, sempre acompanhado por gente que se deslocava de muito longe para vê-lo.

           Sua figura singular reunia um corpo de metro e meio; os olhos miúdos e a barba rala não deixavam dúvidas para seus seguidores de que ele era a própria imagem de um santo. Eis o ponto em que se confirma a proximidade de Frei Damião com os nordestinos, educados desde sempre numa fé na qual os santos têm papel fundamental na intermediação com o divino. Quem conhece o Nordeste sabe que, nas casas dos católicos, os santos da devoção têm um lugar especial, seja em quadros ou em oratórios especialmente mandados construir para serem objetos do culto familiar.

           Diante de um mundo em transformação, em que o desconhecido amedronta, o nordestino se apega aos valores tradicionais para não perder a identidade. Os ensinamentos dos mais antigos são seguidos de forma admirável. As novenas, as procissões e o culto aos mortos, heranças do catolicismo medieval português, se mantêm vivos no coração dos nordestinos.

           Submetidos a tantos sofrimentos, seja os causados pelos fenômenos naturais, como a seca, seja os provocados pelos homens, como a crônica falta de resolução para os problemas econômicos e sociais da região, os sertanejos têm na religião um elemento que não falha, que sempre lhes socorre. Assim é que se explicam as numerosas promessas feitas aos santos; promessas que são pagas, se alcançada a graça, em romarias a Juazeiro do Norte, a Canindé, ou por ocasião das festas de padroeiros. Neste mês de junho, por exemplo, temos três datas significativas para a fé popular: Santo Antônio, no dia 13, São João, no dia 24, e São Pedro, no dia 29. A par das festas folclóricas que se realizam em algumas cidades, ocorrem as procissões, ocasião em que os fiéis renovam seu contato de fé com os santos. Como se pode ver, a identidade entre o que pregava Frei Damião e o que dele esperavam os nordestinos era total. Por essa razão, quero aqui me solidarizar com todos os seus admiradores, na crença de que poderemos construir um mundo melhor e poderemos transformar a dura realidade nordestina, como, certamente, seria desejo de Frei Damião.

Era o que tinha a dizer. Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/07/1997 - Página 12777