Discurso no Senado Federal

CONFLITOS NAS PENITENCIARIAS DE TODO O PAIS. CRITICAS AO SISTEMA PENITENCIARIO E APELO POR JUSTIÇA EM RELAÇÃO AS MULHERES ESTRANGEIRAS PRESAS, VITIMAS DE VIOLENCIA DA POLICIA BRASILEIRA.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA. DIREITOS HUMANOS.:
  • CONFLITOS NAS PENITENCIARIAS DE TODO O PAIS. CRITICAS AO SISTEMA PENITENCIARIO E APELO POR JUSTIÇA EM RELAÇÃO AS MULHERES ESTRANGEIRAS PRESAS, VITIMAS DE VIOLENCIA DA POLICIA BRASILEIRA.
Publicação
Publicação no DSF de 04/07/1997 - Página 12981
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • APREENSÃO, PREVISÃO, CONFLITO, PENITENCIARIA, CRITICA, OMISSÃO, EXECUTIVO, GESTÃO, SISTEMA PENITENCIARIO.
  • REGISTRO, ESTATISTICA, MAIORIA, DETENTO, PESSOA CARENTE, NEGRO, ANALISE, EXISTENCIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, JUSTIÇA, BRASIL.
  • INEFICACIA, GOVERNO, FUNÇÃO, REABILITAÇÃO, PRESO, CRITICA, AUSENCIA, ASSISTENCIA JURIDICA, NEGAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, CONDENADO, FAMILIA, AUMENTO, CRIME, DOENÇA, PRISÃO.
  • DEFESA, ALTERNATIVA, PENA, CRIME, AUSENCIA, VIOLENCIA, BENEFICIO, CONDENADO, SISTEMA PENITENCIARIO.
  • NECESSIDADE, MOBILIZAÇÃO, SOCIEDADE CIVIL, PARCERIA, REINTEGRAÇÃO, PRESO, MERCADO DE TRABALHO, SOLICITAÇÃO, ESFORÇO, CONGRESSISTA, APERFEIÇOAMENTO, LEGISLAÇÃO.
  • DENUNCIA, DESRESPEITO, DIREITOS HUMANOS, ESTRANGEIRO, MULHER, PRESO, BRASIL, ACUSAÇÃO, TRAFICO INTERNACIONAL, DROGA.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum inicio este pronunciamento.

Durante os últimos meses vem ocorrendo uma série de conflitos no sistema penitenciário, permitindo-nos prever uma tragédia anunciada, com cenas tão macabras e desumanas quanto as ocorridas no presídio de Carandiru.

A passividade do Poder Executivo quanto a essa questão faz-nos refletir sobre o elevado grau de incompetência na gestão do sistema penitenciário, disfarçada pela esfarrapada crítica à falta de vontade política, tão ao gosto do palavreado liberal, que sempre surge depois das tragédias provocadas ou permitidas pelo Poder Público contra os brasileiros pobres e miseráveis.

Os problemas que assolam o sistema penitenciário são múltiplos e de diversas naturezas. Mas não se pode ignorar o fato de que 95% dos encarcerados são pobres e que dois terços dessa população são compostos de afro-brasileiros - ou "pretos" e "pardos" -, segundo o censo penitenciário de 1994 e dados da CPI do Sistema Penitenciário de 1993.

Esses números, que representam pessoas, mais uma vez expõem a face perversa do racismo brasileiro. A pobreza e a criminalização de negros constituem um dos princípios que permeiam a interpretação do Direito e a aplicação da Justiça em nosso País.

Não se trata aqui de choramingas e lamentos. Pesquisas quantitativas denunciam que, quando se trata de um afro-brasileiro envolvido em ilícitos, a Polícia é persecutória e voraz no cumprimento da sua missão, a Defensoria Pública, não raro, vagueia nos limites da burocracia e a Justiça, na sua cegueira plena, avança sem limites até o mais alto grau de parcialidade.

Durante o início da Campanha da Fraternidade deste ano, que tem como lema "A Fraternidade e os Encarcerados", tive a oportunidade, juntamente com a ilustríssima Senadora Benedita da Silva e os ilustríssimos Deputados Luís Alberto, Paulo Paim e Chico Vigilante, de visitar o Exmº Sr. Dom Lucas Moreira Neves, Presidente da CNBB, ocasião em que lhe foi entregue o documento intitulado "Situação da População Afro-brasileira e Segmentos Excluídos do Sistema Penitenciário Brasileiro e Propostas de Garantia do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana". Foi um encontro bastante alvissareiro, em que se evidenciou nossa preocupação comum com os descaminhos do Sistema Penal Brasileiro e a falta de perspectiva dos encarcerados.

Todos sabemos que, por princípio, as penas que privam os indivíduo da liberdade têm como fundamentos a justiça e a defesa social. Mas não se pode perder a perspectiva de que é função do Estado a reeducação e o preparo do apenado para que ele volte ao convívio social. O Estado, porém, além de ser negligente com sua missão, propicia e promove os meios que impedem a recuperação do encarcerado, como indivíduo capaz de ter uma função social, ao mesmo em que agrava o processo de marginalização desse indivíduo durante o período em que está cumprindo a pena.

A violência sem proporções que se instalou nos grandes centros brasileiros praticamente impõe uma sobrepena aos condenados, principalmente pela violação generalizada dos direitos humanos. Uma vez condenado, o indivíduo perde o direito à liberdade, mas não os direitos fundamentais da pessoa humana. São imensos os ultrajes por que passam os familiares dos presos durante as visitas nas delegacias e nos presídios em termos de angústia e de humilhação. É como se a pena se estendesse à família, atingindo mães, filhos, avós, de forma autoritária e impiedosa. Somem-se a isso as centenas, talvez milhares de presos que já cumpriram suas penas e continuam encarcerados, por falta de uma assistência jurídica adequada.

O abuso de autoridade, a corrupção, a tortura como prática cotidiana da vida prisional, o ócio diuturno e a própria criminalidade interna são fatores mais que conhecidos das autoridades e constituem as principais causas das rebeliões que vêm ocorrendo nos presídios brasileiros. A proliferação de doenças como a AIDS e a tuberculose faz parte da rotina insalubre das casas de detenção. Quando o preso consegue escapar da morte e recuperar a liberdade, leva consigo uma capacidade incontrolável de contaminação.

Numa sociedade como a nossa, que incorpora de forma acelerada a alta tecnologia ao sistema produtivo, reduzindo sobremaneira os postos de emprego para os trabalhadores pouco qualificados, as oportunidades oferecidas para um ex-presidiário são praticamente nulas, para o que concorre o fato de 89% dos presos, segundo o censo de 1994, não exercerem nenhum tipo de trabalho ou atividade produtiva.

Outra questão que temos que considerar, apontada em recente artigo da socióloga Julita Lemgruber, publicado no jornal O Globo, é que 45 mil presos - aproximadamente um terço da população carcerária - praticaram crimes sem violência. O que nos permite avaliar que seria perfeitamente razoável a aplicação de penas alternativas.

Nesse sentido, os benefícios seriam significativos, tanto em relação ao sistema penitenciário, quanto em relação ao condenado. Por um lado, a redução dos custos operacionais e de manutenção; por outro, a punição fundada na defesa da cidadania e com o benefício de impedir que o indivíduo que praticou um delito leve tenha de conviver com elementos de alta periculosidade.

No início do mês de maio, o Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela, entidade que teve origem no Complexo Frei Caneca, no Rio de Janeiro, realizou o Seminário "Questões Penitenciárias - O Presidiário Pede Socorro", cujo documento de apresentação afirmava o seguinte:

      Ciente de que o sistema penal, da forma como vem funcionando, não recupera, mas contribui para marginalizar ainda mais os detentos, faz-se urgente a mobilização e a atuação conjunta dos vários segmentos da nossa sociedade, de forma que aos homens e mulheres que foram condenados a pagar por seus erros com o confinamento sejam restituídos os direitos de cidadania, a dignidade humana e oferecidas reais oportunidade de reintegração social através da qualificação profissional e do trabalho.

Em outro trecho o documento afirma:

      Garantir a ressocialização é um dever do Estado brasileiro e uma necessidade social que, longe de ater-se aos interesses dos indivíduos punidos pela Justiça do País, é fator de enorme importância na construção de uma sociedade menos violenta, que se estruture a partir de ideais mais justos e igualitários, que não acirrem ainda mais as profundas desigualdades nela vigentes.

Considerando que as rebeliões nos presídios têm sido a única forma de os apenados chamarem a atenção das autoridades e da sociedade em geral, e ainda que existe um déficit de 80 mil vagas no sistema penitenciário, é mais do que evidente que estamos diante de uma iminente tragédia. Assim que esta Casa pode e deve contribuir, dentro dos seus limites, para a solução desse quadro aterrador. Nesse sentido, faço um apelo aos colegas Congressistas para, num empenho conjunto, avaliarmos o mais breve possível as propostas da sociedade sobre a matéria em questão, de forma a que possamos fornecer uma resposta do Legislativo a esse grave problema.

Quero aproveitar o ensejo para denunciar, fazendo eco à reportagem publicada no dia 22 de junho último pelo Jornal do Brasil, a situação cruel a que se vêem submetidas as mulheres estrangeiras encarceradas em nosso País por suposta participação no tráfico de drogas - as chamadas "mulas". Seduzidas pela promessa de dinheiro fácil ou simplesmente enganadas pelos traficantes, que se utilizam dos mais diversos expedientes para fazê-las transportar entorpecentes - principalmente cocaína - sem ter conhecimento do que carregam, muito menos dos perigos que correm, essas mulheres acabam vítimas de um conjunto de fatores perversos que contribuem para que sejam desrespeitados seus direitos humanos. O principal deles é o próprio enquadramento na Lei de Crimes Hediondos, feita para coibir seqüestros e considerada excessiva quando se trata de punir mulheres exploradas por organizações internacionais. Além disso, quase todas se queixam de terem sido extorquidas por policiais após a prisão em flagrante. Não tendo vínculos com o País, são obrigadas a aceitar os serviços de advogados dativos - defensores pagos pelo Estado -, que terminam cobrando, sem recibo, altos honorários em dólares. Some-se a isso a freqüente ausência de intérpretes nas audiências na Justiça, contrariando o art. 71 do Estatuto do Estrangeiro, e teremos uma idéia da situação kafkiana por que passam essas infelizes.

Recentemente, tive oportunidade de visitar, no Presídio Talavera Bruce, no Rio de Janeiro, uma jovem sul-africana, de nome Carol Portia Taulse, que, enganada por uma pretensa amiga, foi presa no Aeroporto do Galeão com cocaína e agora terá de passar anos na cadeia. Sensibilizado por sua evidente inocência, estou trabalhando, em conjunto com outros defensores dos direitos humanos, para obter a revisão do processo. Um processo cheio de falhas, incluindo a falta de sustentação no Tribunal. Não se trata, aqui, de defender traficantes, mas, em primeiro lugar, de garantir a essas pessoas o direito de ampla defesa, consagrado em nossa Constituição. E de tornar mais proporcional a lei que pune o tráfico, distinguindo entre os verdadeiros responsáveis - que quase sempre se mantém impunes - e aqueles que lhes servem, consciente ou inconcientemente, de simples instrumentos.

Justiça, Srªs e Srs. Senadores, é o que peço para essas mulheres estrangeiras, presas de uma forma tão cruel pela nossa Polícia!

Axé.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/07/1997 - Página 12981