Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DA CAMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO AO CENTRO CULTURAL JOSE BONIFACIO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DA CAMARA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO AO CENTRO CULTURAL JOSE BONIFACIO.
Publicação
Publicação no DSF de 06/08/1997 - Página 15698
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMENTARIO, HOMENAGEM, CAMARA MUNICIPAL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), CENTRO CULTURAL.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Para comunicação inadiável. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum faço este registro.

No último dia 28 de julho, a Câmara de Vereadores da cidade do Rio de Janeiro homenageou o Centro Cultural José Bonifácio e, pela importância que ele exerce no panorama da cultura do País quero, desde aqui, associar-me a essas homenagens.

Se a cultura de um povo é o cimento de sua identidade, para nós, africanos e seus descendentes dos dois lados do Atlântico, ela representa há muito tempo o ferro em brasa com que forjamos nossa sobrevivência e coesão como um povo. Manifestando-se não apenas na música e na dança populares, e também na culinária, como quer fazer crer o reducionismo eurocêntrico, mas abrangendo as artes plásticas, a literatura, sem esquecer a tecnologia na agricultura e na mineração, a cultura trazida pelos africanos e desenvolvida no Brasil, em contato e fricção com indígenas e europeus, tem na religião sua verdadeira matriz e síntese. Pois, em torno da religião se organiza a vida do indivíduo e do grupo; nela se estrutura a forma de pensar, de ser e estar no mundo, que, para além da superficialidade dos traços físicos, consubstancia a originalidade e a contribuição dos povos africanos à civilização.

Não foi à toa, portanto, que a estratégia de dominação dos brancos europeus sobre os povos de cor da África, da Ásia e das Américas sempre teve na cultura, de modo geral, e particularmente na religião, um de seus pontos focais. Sabiam eles que, para esmagar fisicamente esses povos e transformá-los em escravos ou vassalos da nova ordem global que se instalava, era preciso domar seus corações, escravizar e colonizar suas mentes e consciências. Era necessário suprimir sua cultura ou, quando possível, domesticá-la, cortando-lhe as raízes e colocando-a a serviço do dominador. Esse processo envolveu fundamentalmente a religião africana, sempre reprimida, mas incluiu também a negação da existência de grandes civilizações no Continente Africano, a transformação dos antigos egípcios num povo "branco" e o "esquecimento" das contribuições destes à cultura grega e, por meio desta, à moderna cultura ocidental. Tratava-se de negar aos africanos, escravizados nas Américas ou transformados em súditos coloniais na África, a própria humanidade, expressa na capacidade de construir civilizações e de contribuir para a evolução da espécie humana como um todo.

Mas a força da cultura africana pode ser atestada por sua própria vida nas condições adversas em que ela, a despeito de tudo, conseguiu florescer. Assim, em todos lugares a que chegaram, por vontade própria ou involuntariamente, os africanos deixaram a marca indelével da sua cultura. De tal modo que, na maior parte das Américas, no Brasil como nos Estados Unidos, na Colômbia, na Venezuela, no Equador e no Peru, para não falar nas nações da América Central e do Caribe, as manifestações culturais mais características e originais, as que são exibidas como típicas da nacionalidade, são exatamente aquelas que brotam da fonte africana.

No Brasil, o cruel massacre da escravidão não impediu o florescimento de uma cultura negra tão poderosa que se impõe como verdadeira cultura do povo brasileiro. Relegada por muito tempo a um segundo plano, vista pela lente caolha do exotismo e do folclore, a cultura afro-brasileira tem passado nos últimos anos por um processo de revitalização e revalorização promovido, fundamentalmente, pelo Movimento Negro e seus aliados nas arenas acadêmica e sócio-política. A criação, pelo poder público, de organismos voltados à preservação e à dinâmica da cultura desenvolvida pelos africanos e seus descendentes se destaca entre as vitórias que vimos obtendo ao longo de nossa árdua luta pela valorização dos afro-brasileiros. O Centro Cultural José Bonifácio brilha como um dos belos exemplos dessa vitória.

Além do orgulho militante pelo sucesso de uma instituição que defende e põe em prática ideais pelos quais sempre pugnei, dois aspectos me ligam efetivamente ao Centro Cultural José Bonifácio. O primeiro deles prende-se à sua origem, pois a idéia de criar uma instituição municipal voltada para a cultura afro-brasileira no Rio de Janeiro nasceu durante meu mandato como Deputado Federal, no início da década dos oitenta, quando a então administração pedetista da Prefeitura a acolheu. Questões burocráticas retardaram por muito tempo a concretização do projeto. Inclusive, justifica-se registrar os esforços no sentido de sua implementação despendidos pelo então Presidente da Rioarte, o poeta Gerardo Mello Mourão. O projeto atravessou, ainda, a segunda administração pedetista do município, sustentado pelos esforços da Divisão de Cultura Afro-Brasileira da Secretaria de Cultura. Até que por fim a tenacidade e a competência prevaleceram, incorporadas na inquietação criativa de Hilton Cobra. Laços de origem, portanto, redobram a minha alegria nesta noite.

O segundo aspecto está na minha admiração pessoal pelo talento e determinação do ator e diretor de teatro Hilton Cobra, responsável pela formação e condução da valorosa equipe que vem realizando esse trabalho admirável no Centro Cultural José Bonifácio. O entusiasmo e a dedicação de Cobrinha, indispensáveis para o êxito que hoje se festeja, lembram-me de outro jovem que, décadas atrás, também por meio do teatro e das artes, buscava elevar o nível de consciência dos afro-brasileiros em particular, e dos brasileiros de maneira geral, não só quanto aos problemas da discriminação e do racismo, mas sobre o valor da cultura de origem africana e dos homens e mulheres que a produzem. O Teatro Experimental do Negro foi o instrumento que criamos, lá se vão mais de 50 anos, para sacudir uma sociedade atrasada e reacionária, obrigando-a a se confrontar com alguns dos piores fantasmas de seu inconsciente coletivo, e ao mesmo tempo a enxergar o valor de uma cultura que ela preferia reduzir aos limites do exotismo. Laços de origem também me prendem, então, a esse enérgico homem de teatro, redobrando o prazer de perceber que essa idéia não morreu.

Quero, portanto, dar minhas calorosas felicitações a Hilton Cobra e sua equipe, tão bem equipada de talento e habilidade, e ao mesmo tempo saudar a nossa valente guerreira e vereadora do PT, Jurema Batista, o COMDEDINE e as organizações afro-brasileiras responsáveis pela oportuna iniciativa. Tenho certeza de que, graças à divulgação que esse evento propicia, o trabalho desenvolvido pelo Centro Cultural José Bonifácio vai inspirar pessoas e organizações, em todo o Brasil, empenhadas em brandir a cultura como instrumento de transformação das relações raciais neste País.

Axé, Centro Cultural José Bonifácio!

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/08/1997 - Página 15698