Discurso no Senado Federal

REALIZAÇÃO, NO ULTIMO DIA 2, DO I ENCONTRO DA COMUNIDADE NEGRA E CIDADANIA, NA BAIXADA FLUMINENSE. SINTESE DA ATUAÇÃO DE S.EXA. NO SENADO FEDERAL.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DISCRIMINAÇÃO RACIAL. ATUAÇÃO PARLAMENTAR.:
  • REALIZAÇÃO, NO ULTIMO DIA 2, DO I ENCONTRO DA COMUNIDADE NEGRA E CIDADANIA, NA BAIXADA FLUMINENSE. SINTESE DA ATUAÇÃO DE S.EXA. NO SENADO FEDERAL.
Publicação
Publicação no DSF de 08/08/1997 - Página 15883
Assunto
Outros > DISCRIMINAÇÃO RACIAL. ATUAÇÃO PARLAMENTAR.
Indexação
  • REGISTRO, ENCONTRO, COMUNIDADE, NEGRO, CIDADANIA, PROPOSTA, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, VIOLENCIA, DESIGUALDADE SOCIAL, VALORIZAÇÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
  • ANALISE, HISTORIA, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, NEGRO, BRASIL, DEFESA, APERFEIÇOAMENTO, LEGISLAÇÃO.
  • BALANÇO, ATUAÇÃO PARLAMENTAR, ORADOR, AMPLIAÇÃO, CORREÇÃO, LEGISLAÇÃO, DEFESA, VALORIZAÇÃO, NEGRO, CRIAÇÃO, COMPENSAÇÃO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (BOCO-PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Com o propósito de discutir as novas formulações apresentadas para o enfrentamento da discriminação e das desigualdades raciais em nosso País, realizou-se, em 2 de agosto último, o I Encontro da Comunidade Negra e Cidadania na Baixada Fluminense. Organizado por três entidades afro-brasileiras - Centro de Estudos da Cultura e Teologia Negra, Centro de Articulação das Populações Marginalizadas e Grupo União e Consciência Negra -, o encontro reuniu lideranças, dentre as quais a ilustre Senadora Benedita da Silva, e pessoas da comunidade interessadas em temas como perspectivas e papel do Estado, violência e exclusão social, bem como nas diversas propostas que vêm sendo elaboradas e implementadas com vistas à valorização dos afro-descendentes.

Na ocasião em que tive a honra de ser homenageado, ao lado da figura histórica do marinheiro João Cândido, herói da Revolta da Chibata, acabei não tendo a oportunidade de ler meu discurso, em que faço um breve balanço de minha atuação nesta Casa. Felicitando os organizadores desse importante Encontro, passo agora à leitura do discurso que deveria ter feito naquela oportunidade.

Desenvolvida desde a chegada a estas terras dos primeiros africanos escravizados, em princípios do século XVI, a luta dos afro-brasileiros por igualdade e justiça é uma saga de crueldade e revolta, sofrimento e redenção, que se estende pela História deste País e se confunde com a luta pela liberdade do povo brasileiro. Maioria absoluta da população nos tempos da Colônia e do Império, e ainda maioria neste final de milênio - apesar das tentativas de embranquecer o Brasil, estimulando-se a imigração européia -, os africanos e seus descendentes têm sido desde sempre os verdadeiros responsáveis pela construção deste País. Em troca, o que sempre recebemos foi a discriminação, a humilhação e o desprezo, edulcorados por uma ideologia terrível na sua capacidade de amortecer a consciência dos oprimidos e subjugados: o mito da "democracia racial", instrumento que se revelou extraordinariamente eficaz em manter os negros no "seu" lugar - o da subalternidade absoluta em uma sociedade que, apesar de multirracial e pluriétnica, apresenta níveis de desigualdade racial mais elevados do que nações até recentemente caracterizadas pela prática do racismo oficial.

Primeiros europeus a escravizar africanos, os portugueses desenvolveram toda uma "ciência" da dominação, alicerçada em fundamentos amplamente encontráveis sobretudo nos textos da autoria de sacerdotes, mas também em documentos oficiais. Neles se percebe a preocupação com a cultura africana, que deveria ser destruída, quando necessário, ou domesticada, sempre que possível. A religião, ponto focal da identidade dos africanos e seus descendentes, sempre ocupou um papel central nas preocupações desses políticos e intelectuais, incansáveis nas suas tentativas de suprimi-la ou cooptá-la. Outra arma ideológica foi a negação da contribuição negro-africana à História da Humanidade, alterando-se a identidade racial de povos como os egípcios ou ignorando-se intencionalmente o registro histórico de nações ricas e poderosas cuja negritude não poderia ser apagada.

A questão racial, assim, não é problema que se possa descartar de maneira leviana, como é tão comum fazer-se no Brasil. Não é, tampouco, um problema "dos negros". Trata-se, isto sim, da questão central, do nó górdio a ser cortado para que a sociedade brasileira possa definitivamente cortar os laços da dependência, romper as amarras do atraso, livrar-se do complexo que a faz sentir-se inferior diante de europeus e norte-americanos, dos brancos verdadeiros que nossos mestiços de pele clara pretendem ingenuamente tomar como modelo. E um dos caminhos para a solução dessa questão é a luta no campo jurídico.

Embora a questão racial não possa ser resolvida apenas com leis, pois envolve fundamentalmente a cultura e a ideologia, a constituição de um arcabouço jurídico a que possam recorrer os afro-brasileiros, com vistas a se proteger da discriminação ou a implementar ações de valorização do grupo a que pertencem, é primordial para concretizar os anseios e reivindicações de nossa sociedade. Nesse sentido, faz-se necessário não somente aperfeiçoar a legislação atual, mas também criar novos instrumentos que acompanhem a dinâmica de nossa sociedade e atendam a novos anseios nascidos de uma consciência anti-racista mais atualizada e exigente.

Diferentemente do que se costuma afirmar, a lei brasileira não é, nem nunca foi, cega à cor. Diversos mecanismos nela embutidos, implícita ou explicitamente, operam no sentido de manter inalterado o status relativo dos grupos raciais em nossa sociedade. Pesquisa recente revela, por exemplo, que negros tendem a receber penas maiores que brancos para iguais delitos; quando, porém, as vítimas são negras, as penas costumam ser menores. Em resultado desse processo perverso, a participação dos afro-brasileiros na população carcerária é muito superior à sua presença na população como um todo.

As primeiras tentativas de criar uma legislação para coibir a prática da discriminação racial datam dos anos 40. O principal resultado da Convenção Nacional do Negro, realizada em São Paulo, no ano de 1945, sob o patrocínio do Teatro Experimental do Negro, foi a aprovação de uma sugestão dessa natureza, a qual acabaria sendo transformada, no ano seguinte, em proposta apresentada à Assembléia Nacional Constituinte pelo Senador Hamilton Nogueira (UND-RJ). Essa proposta que definia o racismo e a discriminação como crimes de lesa-humanidade, acabou rejeitada sob a ridícula alegação da inexistência de um fato concreto que pudesse demonstrar sua necessidade. Este fato acabou acontecendo: num incidente de grande repercussão, a famosa coreógrafa afro-norte-americana Katherine Dunham foi discriminada num hotel de São Paulo. O então Deputado Afonso Arinos aproveitou a oportunidade para propor projeto que se transformou na Lei nº 1.390, de 1951, que ganhou o seu nome, distorcendo radicalmente a proposta de 1945 ao definir os delitos resultantes de racismo como contravenção penal e não como crime, e ao estabelecer para os infratores penalidades absolutamente irrisórias.

Em 1983, ao assumir uma cadeira na Câmara Federal, apresentei o Projeto de Lei nº 1.661, que recuperava o espírito da proposta de 1945. Embora aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, não chegou a ser votado em plenário. Somente 42 anos depois da primeira tentativa, a prática do racismo passou a ser definida, na Constituição de 1988, como crime inafiançável e imprescritível. Em 1989, com a Lei nº 7.716, que regulamentou esse princípio constitucional, pretendeu-se aperfeiçoar a legislação anterior, mas, em que pese a boa intenção de seus autores, nada se avançou de concreto. Em primeiro lugar, embora pretenda punir o racismo e a discriminação, ela não define o que eles sejam. Tão grave quanto isso é o fato de essa Lei nº 7.716 manter a visão casuística de enumerar exaustivamente as possíveis circunstâncias da prática de discriminação, com o que abre grandes espaços pelos quais escapam os agentes do crime - numa sociedade dinâmica como a nossa, é simplesmente impossível prever todas as possibilidades dessa ação criminosa.

Por tudo isso, minha primeira iniciativa ao assumir no Senado a vaga deixada pelo saudoso Professor Darcy Ribeiro foi apresentar o Projeto de Lei do Senado nº 52, de 1997, que define e tipifica a prática do racismo e da discriminação e pune os crimes dela resultantes. As orientações básicas desse projeto são de caráter constitucional: primeiramente, porque esses crimes constituem a forma mais insidiosa de violação do princípio da liberdade (art. 5º, caput, da Constituição) e, depois, pelo fato de ser específica a condenação do racismo (art. 5º, XLII). Além de estabelecer os tipos genéricos para racismo e discriminação, o projeto ainda determina circunstâncias agravantes genéricas - por exemplo, no caso de o agente do crime ser funcionário público.

Outra inovação desse projeto é que ele abre a possibilidade de se vir a adotar no Brasil a chamada ação compensatória, ou "ação afirmativa" - medidas destinadas a compensar a discriminação historicamente sofrida por determinados grupos de pessoas, como mulheres, negros e índios.

Convenções internacionais de que o Brasil é signatário - como a Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, das Nações Unidas, e a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também vinculada à ONU, que trata da discriminação de raça e gênero no mercado de trabalho - prevêem a adoção dessas medidas. A exemplo do que se tem feito em países tão diversos, do ponto de vista político, social, econômico e cultural, como Estados Unidos, Índia, Israel, Canadá, Nigéria, Alemanha, África do Sul e Malásia, sem esquecer as antigas Iugoslávia e União Soviética. Em seu art. 4º, nosso projeto afirma que essa prática não é crime, abrindo a possibilidade de sua adoção em nosso País - que com isso, entre outras coisas, ficaria em dia com as obrigações assumidas na arena internacional.

Como se vê, não se trata de revogar simplesmente um instrumento legal que, com as falhas que nele percebemos, ainda é o único de que atualmente dispomos. Trata-se, isto sim, de aperfeiçoá-lo e de ampliá-lo, para que possa cumprir adequadamente o objetivo de proteger os afro-brasileiros do racismo em todas as suas implicações, abrindo espaço também a medidas que possibilitem a sua promoção e valorização.

Pois é exatamente da promoção e valorização da população afro-brasileira que trata o Projeto de Lei do Senado nº 75, de 1997, utilizando para isso o mecanismo da ação compensatória, ou ação afirmativa. Tal como os descrevemos acima, esses termos englobam uma série de políticas públicas, adotadas em diferentes países, com o objetivo de compensar grupos historicamente desprivilegiados pelos efeitos, no presente, da discriminação sofrida no passado.

Trata-se de um tema que tem sido muito discutido nos últimos tempos, mas, em geral, por pessoas desinformadas ou comprometidas - embora nunca o declarem - com os interesses do status quo. Vamos imaginar dois corredores: um amarrado e o outro solto. Este, evidentemente, ganha sempre, até que a platéia se conscientiza da injustiça e exige que se instaure a igualdade. Será que, para isso, bastaria libertar o corredor que estava preso? Ele está com os membros atrofiados, precisa de um treinamento especial ou, no limite, de alguma vantagem para competir com o outro em pé de igualdade. Mas isso seria discriminação, reagem alguns. Discriminação, sim, mas positiva - outro sinônimo de ação compensatória -, pois que visa a promoção da igualdade.

Os africanos chegaram a este País acorrentados pela escravidão. Aqui, como em toda parte das Américas onde existiu escravidão, eles e seus descendentes foram vítimas de toda espécie de atrocidades, torturas e degradações, o que não os impediu de trabalhar por mais de quatro séculos na construção deste País. Quando a escravidão deixou de ser economicamente viável, devido ao recrudescimento da resistência negra e aos novos parâmetros impostos pela Revolução Industrial, cortaram-se as amarras, abolindo-se a escravidão, mas os afro-brasileiros se encontravam atrofiados por séculos de dominação física e espiritual. Em resultado dessa atrofia, e também dos persistentes mecanismos discriminatórios que permeiam cada faceta da vida brasileira, homens e mulheres negros estão virtualmente alijados dos escalões mais importantes de nossa sociedade, praticamente confinados na base de uma das pirâmides sociais mais injustas do planeta. Dados do IBGE, obtidos por meio do censo e das PNADs - Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios -, mostram claramente o verdadeiro abismo que separa brancos e negros (que o IBGE tradicionalmente divide em "pretos" e "pardos"), segundo indicadores sociais como mortalidade infantil, expectativa de vida, salários e escolaridade.

Esse quadro de desigualdades com certeza não existiria caso se tivesse implementado o direito à isonomia garantido pela Constituição. Por isso, o projeto de lei que apresentei ao Senado visa justamente à aplicação desse princípio constitucional na área do mercado de trabalho e da educação, obrigando empresas públicas e privadas a reservar 20% das vagas em seus quadros funcionais para homens negros e 20% para mulheres negras; reservando para alunos negros 40% das bolsas de estudos em todos os níveis de ensino; e alterando os currículos escolares, em todos os graus, para que estes incorporem explicitamente as contribuições dos africanos e seus descendentes em termos de história, ciência, cultura e religião, eliminando ao mesmo tempo as referências preconceituosas e estereotipadas aos negros nos livros didáticos, bem como sua invisibilização.

A preocupação com a precariedade de acesso dos afro-brasileiros aos instrumentos de defesa legal orientou a elaboração do Projeto de Lei do Senado nº 114, de 1997, que tem como propósito facilitar o recurso à chamada ação civil, a qual, atualmente, só pode ser iniciada pelo Ministério Público. Por esse projeto, indivíduos ou entidades da sociedade civil organizada também poderão instaurar ação civil pública com as finalidades de evitar ou interromper atos danosos à honra ou dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, e de obter a reparação de tais atos, quando não seja possível evitá-los. Objetiva-se, assim, dotar esses grupos de um instrumento ágil e eficaz que lhes possibilite enfrentar as manifestações de racismo e discriminação, quer sejam de caráter individual ou coletivo. Outro aspecto importante desse projeto de lei é a criação de um fundo de defesa e combate ao racismo, sustentado pelas indenizações a que possam fazer jus os autores das ações, a ser instituído, até 12 meses após a aprovação e publicação desta lei, pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

O Projeto de Lei do Senado nº 73, de 1997, completa esta breve exposição de meu trabalho até o momento. Apresentado em função de uma necessidade do momento - impedir que a Vale do Rio Doce, e depois dela outras estatais, pudesse ser adquirida por um consórcio de que participava a multinacional Anglo American, que apoiou ostensivamente o regime do apartheid na África do Sul, é acusada de ter financiado a guerrilha contra-revolucionária em Angola e Moçambique e foi condenada em diversos países por infringir a legislação antitruste. Trata-se, aqui, de impedir que a fúria privatizacionista abra espaço às aves de rapina dos negócios internacionais, permitindo que empresas identificadas com a face mais cruel e imoral do capitalismo venham a se apossar de um patrimônio acumulado graças ao trabalho do povo brasileiro.

Esses quatro projetos sintetizam meu trabalho no Senado no primeiro semestre deste ano. Seu objetivo comum é concretizar a pauta consensual do Movimento Negro, criando não apenas leis isoladas, mas um conjunto coerente e integrado de peças legislativas capaz de reforçar os afro-brasileiros, individualmente e como grupo, em seus embates na arena jurídica. No entanto, tenho profunda consciência de que, para que esses projetos sejam aprovados e depois, como leis, implementados, faz-se necessário que os setores organizados de nossa comunidade acompanhem nosso trabalho, tomem conhecimento dessas iniciativas e as debatam em suas organizações, e que mantenham contato conosco para que possamos manter sempre o elo com o movimento que representamos. Tenho dito muitas vezes que este é um momento extraordinariamente favorável. A questão racial deixou de ser tabu, sendo agora reconhecida pelo próprio Presidente da República, que criou o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Outros fatos recentes, como a inédita decisão do Supremo Tribunal do Trabalho dando ganho de causa a um negro discriminado na Eletrosul, a atuação conjunta e eficaz de organizações negras nos casos de Tiririca e do Ministro Padilha, o sucesso de publicações de boa qualidade destinadas ao público negro, sem esquecer a organização de uma bancada afro-brasileira no Congresso Nacional - tudo isso aponta para um novo tempo de conquista, para a luta negra, dos corações e consciências de todos os brasileiros identificados com as causas da justiça e da liberdade. É responsabilidade de todos nós aproveitar a conjuntura favorável para estabelecer, de uma vez por todas, a agenda afro-brasileira como item prioritário na pauta das grandes questões nacionais.

Axé!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/08/1997 - Página 15883