Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA. OBSERVAÇÕES SOBRE DECLARAÇÕES DO MINISTRO PEDRO MALAN, RECONHECENDO QUE O COMBATE A INFLAÇÃO, A ESTABILIZAÇÃO DO REAL, APRESENTA PROFUNDO CUSTO SOCIAL.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA. OBSERVAÇÕES SOBRE DECLARAÇÕES DO MINISTRO PEDRO MALAN, RECONHECENDO QUE O COMBATE A INFLAÇÃO, A ESTABILIZAÇÃO DO REAL, APRESENTA PROFUNDO CUSTO SOCIAL.
Publicação
Publicação no DSF de 12/08/1997 - Página 16018
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
  • ANALISE, CRITICA, DECLARAÇÃO, PEDRO MALAN, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA FAZENDA (MF), ENTREVISTA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), RECONHECIMENTO, COMBATE, INFLAÇÃO, ESTABILIZAÇÃO, PLANO, REAL, PROVOCAÇÃO, AUMENTO, CUSTO, NATUREZA SOCIAL, MAIORIA, POPULAÇÃO.
  • ANALISE, NATUREZA ECONOMICA, HISTORIA, RESULTADO, IDENTIFICAÇÃO, INFLAÇÃO, FORMA, EXPLORAÇÃO, CLASSE EMPRESARIAL, MAIORIA, POPULAÇÃO.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco-PT-DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Brasil perdeu há poucos meses uma das mais juvenis, eróticas e inquietas das vidas que por aqui foram vividas. Darcy Ribeiro, mineiro como Herbert de Souza, faz, na unidade da luta dos dois, um contrapólo, no sentido de mostrar essa identidade de compromissos com a vida, com a sociedade, numa diversidade de temperamentos, de formas de expressão, de gestos. Herbert de Souza era a firmeza, a tranqüilidade, a certeza de que só se pode realizar uma vida individual quando esta se entrega ao seu conteúdo social, à sua realização como parte da sociedade. Herbert de Souza nasceu em Bocaiúva, interior de Minas Gerais, numa numerosa família em que a penúria, a pobreza mesmo, sempre foi companheira. Aos dez anos, Thánatos, a morte, se manifestava, o que seria uma constante na vida de Betinho. Em virtude da Tuberculose foi afastado do seio de sua família. Seu pai construiu nos fundos de sua modesta casa um cômodo no qual Betinho passou 3 anos fora do convívio de seus irmãos. Seu pai protegeu os demais filhos afastando Betinho, até que o remédio para a Tuberculose pôde garantir a sobrevida desse menino de Minas Gerais. Por isto talvez Betinho tenha sido tão feliz em todas as suas manifestações a respeito da morte.

Numa sociedade erótica, individualista, egoísta, excludente, numa sociedade que não nos ensina a viver e nem nos ensina a morrer Betinho soube viver e soube encontrar na vida, desde os dez anos de idade, o seu conteúdo tanático, a fatalidade da proximidade, da frieza, da distância, da mágica, da incompreensão da morte.

Betinho sabia por experiência própria e soube manifestar como poucas pessoas que o mergulho no rio da morte é tão natural mesmo para ele que não havia negociado com o outro lado, não havia negociado com Deus ou com os deuses a sua sobrevida, mas ele era perfeitamente tranqüilo diante desta fatalidade que para ele nada tinha de fatalidade. A morte era algo tão natural quanto beber a água que corria das montanhas de Minas na cuia da mão. Portanto, a morte sempre o acompanhou, jamais o aterrorizou.

Os sonhos da juventude eram mais fortes. A ansiedade era maior quando Betinho, em Belo Horizonte, filiou-se como militante dos movimentos estudantis de esquerda. A vida e a inteligência ensinaram Betinho também a esperar e a transformar em realidade o sonho que a nossa sociedade fez cada vez menor. Ao invés das transformações, que o socialismo acendia como esperança da juventude, Betinho se transformou num lutador das transformações possíveis. Isso marca toda essa fase final de sua existência.

O mesmo aconteceu com seus dois irmãos, Francisco Mário, o mais velho, e Henfil. Foi o nosso sistema de saúde que matou os três, de início, contaminando-os com a AIDS, em virtude das transfusões de sangue a que eles tinham de recorrer por causa da hemofilia de que eram vítimas. Todos os três demonstraram o absurdo, o desumanismo, o descaso de nossa sociedade para com a vida e a saúde humana.

Como se não bastasse, o mesmo aconteceu com Florestan Fernandes, quando o sistema de saúde o atacou uma vez, contaminando seu fígado com hepatite incurável, e a segunda vez, quando Florestan Fernandes fez uma operação que lhe extirpou o fígado, fazendo com que ele se submetesse a um transplante daquele órgão. Já praticamente salvo, foi um tratamento equivocado do hospital que levou a vida deste outro grande sociólogo brasileiro: Florestan Fernandes.

Agora, de poucos anos para cá, ao lado da AIDS, o sistema de saúde contaminou Betinho também com hepatite.

Portanto, o que vemos é que o sofrimento que ele enfrentava com tanta superioridade, a morte com a qual aprendeu a conviver, como só pessoas muito bem aquinhoadas conseguem ultrapassar os condicionamentos da nossa cultura erótica, individualista, egoísta, para entender, para compreender a presença constante de Thánatos ao lado de Eros. Ele já estava mais do que preparado. Para ele, esse transe não foi nada. A perda de Betinho é uma perda para nós que ficamos. A perda de Betinho é uma perda para as crianças brasileiras, que não encontrarão mais aquela mão magra e fria, alimentada por um coração quente, que lhes estendia o alimento e o remédio. A morte de Betinho é um sofrimento para todos os marginalizados brasileiros com que a sensibilidade social do grande Herbert de Souza soube irmanar-se durante toda a sua vida.

Portanto, como teremos toda uma sessão para relembrar e homenagear este grande vulto, apenas registro o sentimento que me produz o afastamento de Betinho. Tantas afinidades a minha triste, pobre e desguarnecida figura guardava com ele, tantas afinidades com seus escritos, principalmente seus escritos sobre a morte. Eu também aprendi a conviver com ela e a entender o seu significado maior.

Betinho, talvez, como disse Leonardo Boff, "transformou-se numa explosão cósmica" - uma frase semelhante àquela que Darcy Ribeiro proferia quando se referia à pós-vida e ou a possibilidade de vida após a morte. Portanto, o que se foi de Betinho fisicamente era algo muito pequeno que agora se transformou já em cinzas. Mas o que Betinho representou para este trecho de nossa história é realmente uma lição de vida, uma lição de coragem, uma lição de humildade e segurança, humildade, modéstia e força, persistência, radicalismo na intransigência de sua bondade, na intransigência de sua confiança em que o futuro resgatará os males do presente.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não posso duvidar que Betinho se preocupou a vida toda com alguns problemas. Sobre um deles pretenderei falar ligeiramente nesta sessão.

O Ministro Pedro Malan, indiscutivelmente uma figura respeitável deste Governo, "admite que a queda do nível de emprego nos grandes centros pode ter efeito negativo nas eleições". Em entrevista concedida a Eliane Cantanhêde*, da Folha de S. Paulo, o Ministro Malan reconhece que o combate à inflação, a estabilização do Real, apresenta profundo custo social.

Eu me refiro a esse custo social como custo FHC. O que eu digo não resulta da perspectiva de um político ou de um Senador que deseja se opor ao Governo e encontrar argumentos para alimentar as suas críticas. Não! 

Em 1958, defendi uma tese em Roma; em 1963, defendi uma tese, para catedrático, chamada Inflação, Ideologia e Realidade. Desde 1958, tenho-me preocupado, diuturnamente, com esses temas, esses temas que dizem respeito profundamente à vida humana, ao processo de dominação, de espoliação e de - para repetir Erich Fromm - "evisceração de uma parte da sociedade para a outra". Diz esse autor, discípulo de Freud e adepto de Marx, que não é só entre as pessoas que as relações sadomasoquistas se apresentam. Também na sociedade, diz Erich Fromm, uma classe social passa a ter prazer em eviscerar, em retirar a essência da outra classe social e, assim, enriquecer à custa da pobreza; passa a gostar de ver o próximo sofrendo. E, por mecanismos fantásticos que habitam o ser humano, a classe sofredora, masoquistamente, passa a gostar de sofrer.

Pois bem, eu, sempre, desde que comecei a estudar economia, percebi, felizmente, que a inflação é um dos instrumentos principais que produzem esse processo de esvaziamento, de exploração, de evisceração dos trabalhadores. Retira a sua essência lavorativa, a capacidade e a força de trabalho que definem o homem como homo faber e passam essa essência alienada para os exploradores.

Portanto, desde 1958, tudo que escrevi orienta-se justamente nesse sentido, tangencia esse assunto ou tenta decifrar esses hieróglifos da sociedade moderna, da sociedade capitalista.

Para que se possa instrumentalizar essa luta e esse processo de aumento daquilo que o Presidente FHC chamava de mais-valia absoluta e de mais-valia relativa - sendo essa mais-valia a exploração do trabalho humano feito pela máquina, pela técnica, pela tecnologia - o que acontece é que aqueles... (O Sr. Presidente faz soar a campanhia.)

Eu iria fazer um breve resumo do século XV até os nossos dias das diversas formas pelas quais a cabeça dominante, a cabeça dos exploradores justifica a necessidade do arrocho salarial. E, se não existe inflação para arrochar, então outros instrumentos - isso escrevi neste livro publicado em 1980: "A crise da Ideologia Keynesiana" - outros instrumentos, como por exemplo os 51% de inflação sem reajuste salarial.

Não me refiro ao fechamento dos sindicatos para permitir o processo de exploração que a inflação faz no momento. Quando a inflação é retirada, é posta de quarentena, outros instrumentos de espoliação são colocados em ação. O Plano Real, para mim, colocou todos esses instrumentos, faltando apenas a reforma tributária para completar esses instrumentos a que me referi em muitos de meus modestos trabalhos.

Portanto, o que vemos agora é que a inflação brasileira, para realizar esse trabalho ladravaz, tinha que ser de 84% ou mais, atrapalhando, portanto, o cálculo econômico e o funcionamento da própria economia. Então, a inflação foi abolida, e foram colocados outros instrumentos de espoliação, que podem funcionar com a inflação zero ou próxima de zero.

Isso eu não inventei agora, não tirei da algibeira, não tirei do bolso ou da cartola de argumentos oposicionistas; há muitos e muitos anos, felizmente, tive a sorte, a felicidade de ter essa compreensão e de, portanto, não me surpreender com a presença desses instrumentos que substituem a inflação.

Para terminar, Sr. Presidente, Keynes, o maior economista deste século, ortodoxo, capitalista, afirma que existe uma tendência para a alta dos salários, que levaria a sociedade à crise e à destruição, e que, para se contrapor a essa tendência de alta dos salários, que se verificaria - diz ele - independentemente das melhorias tecnológicas, deve ser contraposta pela inflação. Para Keynes, inflação é uma forma de defesa da classe dominante, da burguesia, contra uma tendência - segundo ele, podemos recuar até Sólon - de elevação de salários. Portanto, assim se justifica o uso do instrumento inflacionário até o seu esgotamento.

Após o esgotamento da inflação como instrumento de dinamização e de expropriação, de acumulação de capital, agora, então, instrumentos não monetários e não inflacionários são postos em ação para manter as relações e proporções desumanas e os processos de transferência de riqueza, de vida, de trabalho e de resultados de uma classe social que produz para aquela que finge produzir.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/08/1997 - Página 16018