Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA NACIONAL DAS ARTES.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA NACIONAL DAS ARTES.
Publicação
Publicação no DSF de 13/08/1997 - Página 16081
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, ARTES.

A SRª BENEDITA DA SILVA (BLOCO/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Srª Presidente, Senadora Marina, Srªs e Srs. Senadores, nesta data consagrada ao Dia Nacional das Artes, quero prestar minha homenagem a todos os artistas que, em todos os tempos, colaboraram, mesmo que involuntariamente, para a construção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais solidária.

Quero homenagear aqueles que, apesar das adversidades de uma sociedade que transforma as pessoas em mercadorias, conseguem, pelas obras que produzem, humanizar mais a nossa vida, pois, como poucos, os artistas têm possibilidade de, sutilmente, nos lembrar de nossa humanidade e resgatá-la, quando tudo contribui para nos embrutecer. Os artistas têm o dom, com suas metáforas, de gritar contra as injustiças e iniqüidades, mesmo quando todos são silenciados pela força.

Apesar de a arte ter sido usada para fomentar revoluções ou para manter regimes despóticos, para alimentar as esperanças dos desesperançados, ou para confirmar a autoridade de opressores, recuso-me a vê-la apenas com seu aspecto "utilitarista". Repugna-me ver a arte como um instrumento a serviço deste ou daquele regime, por mais revolucionário que ele pretenda ser, pois a arte tem o dom de reproduzir o humano. E o humano é contraditório. O humano é imperfeito. O humano está em mutação. O humano permanece para além das ideologias e dos regimes.

Com a humanidade a arte tem-se confundido, pois o artista lida com o sentimento, com valores que a racionalidade política, religiosa e científica não são capazes de alcançar.

Muitas vezes, tentou-se utilizar a arte como o sustentáculo de regimes autoritários, como foi o caso do nazismo, ao se apropriar da obra do compositor Richard Wagner, como exemplo máximo de uma arte ariana, um paradigma de superioridade da raça. O tempo se encarregou de mostrar que o nazismo, pelo seu caráter anti-humano, sucumbiu. Já a obra de Wagner pode ser apreciada pela sua beleza até hoje, e nós, que a apreciamos, sabemos que ela não morreu.

No Brasil, a tentativa de se controlar a arte e os artistas, como forma de manter determinados regimes ou de colocar governantes a salvo das críticas expressas pelas obras, teve seu espaço. A experiência nacional nos trouxe dois exemplos: o Departamento de Imprensa e Propaganda de Getúlio Vargas, o famoso DIP, e a censura imposta pela ditadura de 64; durante muitos anos, tentaram dirigir a cultura nacional, estabelecendo valores e padrões, e cortando tudo o que não se adaptasse a eles. Contudo, tais amarras não foram capazes de evitar que os espíritos libertários dos artistas continuassem a atuar e a produzir trabalhos dignos de nosso povo.

Um exemplo vivo da força e expressão da liberdade é a nossa querida Dercy Gonçalves, que venceu a barreira da censura, do tempo, da discriminação, da pobreza, para se colocar como uma das nossas maiores estrelas.

Dercy passou de tudo nessa vida. Fugiu de casa para ser atriz. Sofreu perseguições pela censura. Foi presa nos porões do DOPS. Porém, como a Fênix que ressurge das cinzas, Dercy suportou tudo em nome da sua profissão e seu enorme talento, sua ousadia e sua alegria. Dercy Gonçalves acumula uma bagagem de 60 peças teatrais, 50 filmes, 4 telenovelas, vários programas de TV, além de três discos gravados. Meu abraço fraternal e especial a essa figura ímpar nas artes do nosso País pelos seus 90 anos de idade.

Mesmo quando nos meios políticos convencionais estavam sob o controle, a arte conseguia furar os bloqueios. O Estado Novo estimulou uma determinada versão da história brasileira, que deixava de lado importantes personagens que não serviam à concepção de Brasil que se queria construir. Mas, em 1944, a figura de Zumbi, por exemplo, foi tema da peça "Palmares", encenada pelo Teatro Experimental do Negro, um grupo que se propunha a resgatar o papel do negro na história brasileira.

Faço, neste momento, um parêntese, porque falar do Teatro Experimental do Negro e não falar do Senador Abdias Nascimento seria cometer uma grande injustiça. Abdias Nascimento levou a cultura negra para o teatro e fez com que pudéssemos sentir essa força com todo o jeito, capacidade e gênero que a arte negra trouxe para o teatro. Por estes motivos, devemos, no Dia das Artes, prestar-lhe também as nossas homenagens, pois também S. Exª, como tantos outros, deram e dão contribuições à arte brasileira.

Quero também lembrar Léa Garcia, Grande Otelo, Zezé Motta e uma pessoa muito conhecida minha Antonio Pintanga, que é, sem dúvida, um grande discípulo de Abdias Nascimento. Lembrar esses nomes é lembrar que temos memória neste País.

No mesmo sentido, o DIP havia estabelecido uma visão oficial de história a ser contada pelas escolas de samba, nos desfiles de Carnaval. Mas, em 1960, com o enredo "Quilombo dos Palmares", o Salgueiro ressaltava Zumbi como herói do povo brasileiro, dando um passo decisivo para o reconhecimento de que hoje goza esse importante personagem. Personagem esse que recebeu, pela Unidos de Vila Isabel, uma grande homenagem. Estamos hoje, no Dia Nacional das Artes, resgatando a história da arte no Brasil.

O Cinema Novo também contribuiu para o conhecimento de episódios da nossa história, até então pouco divulgados. O filme "Ganga Zumba", de Cacá Diegues, em 1963, além de exaltar as figuras que eram colocadas à margem pela história oficial, trouxe atores negros desempenhando os papéis principais, fato que causou estranheza na sociedade, como ressalta o escritor Haroldo Costa.

Em 1965, o teatro traz o espetáculo "Arena conta Zumbi", de Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal, com música de Edu Lobo, como parte de um projeto de cultura popular associado à União Nacional dos Estudantes - UNE. Uma das falas iniciais do espetáculo é a seguinte, segundo citação de Haroldo Costa:

      O número de mortos na campanha de Palmares - que durou um século - é insignificante diante do número de mortos que se avoluma, ano a ano, na campanha incessante dos que lutam pela liberdade. Ao contar Zumbi, prestamos uma homenagem a todos aqueles que, através dos tempos, dignificam o ser humano, empenhados na conquista de uma terra de amizade, onde o homem ajude o homem.

O mesmo Zumbi volta à cena com o filme "Quilombo", também de Cacá Diegues, em 1984, e à avenida, em 1988, nos sambas-enredos da Mangueira e de Vila Isabel, confirmando sua importância como personagem histórico que merece habitar o imaginário popular e ser mencionado nas obas de arte e nas celebrações.

Mas o resgate de um personagem histórico valioso para o nosso povo é apenas uma das infinitas possibilidades de a arte atuar libertariamente. Os conhecidos CPC (Centros Populares de Cultura), da década de 60, levaram, com suas caravanas, uma mensagem que permitia repensar o Brasil sob a ótica popular de libertação, destruindo a concepção de uma arte acadêmica, voltada para as elites. Uma arte que instruísse, que levasse à reflexão. Não obstante o alcance das caravanas ter sido pequeno em relação a imensidão do País, nem a arte nem o Brasil voltaram à condição anterior.

O Cinema Novo, com sua leitura nua e crua do Brasil, traz um novo enfoque. Eram filmes que se afastavam do padrão do mercado norte-americano, com documentários como "Cinco vezes favela", em que os cineastas retratam a dura realidade urbana; ou que revolucionavam a estética do cinema, como os de Gláuber Rocha; ou que denunciavam as condições miseráveis do Brasil, como um "Vidas Secas", de Nélson Pereira dos Santos.

Essas obras, mesmo que não tenham chegado ao grande público e não tenham sobrepujado o cinema de entretenimento, levaram a uma reflexão sobre o Brasil e contribuíram para a formação de uma geração que se engajaria em projetos de mudança.

Ainda no cenário da década de 60, período emblemático para o Brasil e para o mundo, eclodiu o movimento tropicalista, que seria responsável por trazer uma nova visão artística sobre o Brasil, retratando tudo o que havia de arcaico e de moderno em nossa sociedade. Com guitarras elétricas, Caetano e Gil falavam de um Brasil moderno de aviões e monumentos; um País de chapadões e palhoças; um País de crianças mortas, como na canção Tropicália. Os mesmos artistas, 30 anos depois, manteriam a mesma capacidade de nos premiar com uma música como Haiti, em que denunciam a iniqüidade nas relações econômicas e raciais com versos que conhecemos da música popular brasileira.

A música nos conclama a pensar no Haiti, pois o Haiti é aqui, mostrando-nos como um espelho, o verdadeiro País em que vivemos e denunciando a hipocrisia reinante, propagandeada pelo Governo e pela mídia.

Penso que nenhum discurso científico, histórico ou político poderia nos trazer tantas informações e nos despertar tanto os sentimentos quanto o discurso artístico.

Hoje, vivemos uma globalização que, infelizmente, continua a impor padrões de consumo e padrões musicais com a força da mídia mas, mesmo dentro dessa violenta avalanche, é possível colhermos bons frutos. Gêneros como reggae, por exemplo, têm profundo impacto sobre nossa sociedade, não só pela contagiante melodia mas, também, pela valorização de padrões culturais da cultura negra: a estética de se valorizarem os penteados e vestimentas de inspiração africana significa muito para o resgate da identidade do brasileiro, historicamente pressionado a se europeizar e a negar não só os seus traços culturais como, também, os genéticos. Do funk, tão perseguido, hoje, que tem expressado nos jovens o novo momento da cultura popular brasileira e que, também, é uma arte e que não tem sido alvo de atenção dos poderes e que têm permitido que se propague que apenas um agrupamento de violentos jovens que nada têm a pensar ou a fazer, quando se têm neles, também, o resgate da cultura, pura e simplesmente, da arte popular brasileira. Do mesmo modo, o Axé music, não obstante a mercantilização que vem sofrendo, é um importante palco de afirmação de uma arte que sempre foi relegada.

Não poderia concluir essa minha homenagem às artes sem mencionar o samba, uma das expressões mais fortes de nossa cultura musical, que também é capaz de nos arrebatar de alegria ou nos fazer chorar de tristeza, independentemente das limitações sociais e econômicas, pois o samba, como dizia Noel Rosa, não vem do morro nem da cidade: ele nasce do coração.

Mesmo as novelas, criticadas por seu caráter comercial e alienante, pois valorizam um sentimentalismo exacerbado, distante da vida real, trazem contribuições críticas à nossa sociedade. Na medida em que não podem ser por demais afastadas do que acontece no País, por mais que fantasiem, trazem à discussão assuntos essenciais como o da reforma agrária, que fez parte da trama de uma novela recentemente. As pesquisas de opinião feitas após a exibição da novela revelaram o quanto essa demanda por redistribuição das terras é apoiada pelas populações urbanas.

No campo das artes plásticas, gostaria de homenagear os artistas que, como Siron Franco, contribuem com suas obras para construir um mundo melhor. Exemplos de seus trabalhos mais engajados podem se ver na bandeira brasileira desenhada com caixões de anjinhos, para denunciar a mortalidade infantil; ou no monumento em homenagem a Galdino, o índio pataxó vítima de um ato de barbárie. São obras que nos despertam não só a consciência social, política e ecológica, mas também a espiritual e até mesmo moral.

Por fim, quero homenagear, em tempos de multimídia e de globalização, o recente trabalho sobre os sem-terra, com fotos de Sebastião Salgado, CD com músicas de Chico Buarque e texto do escritor português, José Saramago. A obra, que teve repercussão no mundo todo, remete-nos a esse conteúdo libertário da arte e, novamente, cumpre um papel que outro meio de expressão não poderia: o de nos envolver pela consciência e pela emoção para despertar a indignação contra as injustiças.

O agradecimento que faço aos artistas faz-me lembrar que não existe arte sem cultura. O teatro, com sua arte cênica, tem dado uma contribuição para uma reflexão que devemos fazer em torno do País que temos e das coisas que vivemos. Só tenho a lamentar que a arte não tenha lugar na política, mas que a política é feita de grandes artes - a música, a dança, as artes plásticas, o esporte, que, como arte, tem o Guga como oitavo do mundo; o teatro, como aqui já disse, homenageando o Senador Abdias Nascimento; o circo, que teve e continua tendo, na escala das artes, um espaço que ainda encontra um preconceito muito grande. Quem não se lembra de Fred, de Carequinha, de Benjamin, ainda que quase do século passado, o único palhaço negro que a história brasileira conheceu, que a arte brasileira conheceu. A pintura de Heitor dos Prazeres; de Portinari; o pincel que retrata, numa exposição linda de Rubens Guchman, a qual tive a oportunidade de ver, a estética do futebol, que fala de Zico, de Romário, de Pelé, de Didi, de Garrincha, de Heleno de Freitas.

São essas as lembranças que trago para esta homenagem, fazendo deste momento o momento dos meus agradecimentos a todos os artistas que, com suas melodias, fotos, fatos, esculturas, imagens e poesias contribuem para a superação de um mundo caduco e pela construção de um mundo novo.

Também quero dedicar esta homenagem a Solano Trindade, com uma das suas mais brilhantes artes da poesia, de "Trem sujo da Leopoldina", que parece dizer: - Tem gente com fome. Tem gente com fome. Tem gente com fome. Se tem gente com fome, dá de comer!

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/08/1997 - Página 16081