Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
Publicação
Publicação no DSF de 15/08/1997 - Página 16320
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, juntamente com outros Srs. Senadores, tomei a iniciativa de propor esta sessão de homenagem à memória do sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, para que o Senado pudesse ter a oportunidade de exaltar uma personalidade que, com tantos serviços prestados à comunidade, realmente é merecedora desta manifestação do Senado Federal.

A nobre Senadora Benedita da Silva, que logo mais irá suceder-me na tribuna, não apenas firmou o requerimento para que esta parte da sessão fosse destinada a esta homenagem, como também solicitou que ela fosse antecipada do dia 21 para hoje, a fim de que todos nós pudéssemos, ainda sob o impacto do desaparecimento de Betinho, fazer aqui uma referência indispensável a ele, que, em vida, foi um benfeitor da comunidade e um homem profundamente comprometido com as causas sociais; um homem que fez de suas limitações físicas, da fragilidade de sua saúde, um instrumento de mobilização de energias pessoais e da sociedade, para empreender uma série de movimentos e de campanhas com profundo sentido de solidariedade humana e de preocupação com os excluídos, com os mais pobres, com os que estão à margem do desenvolvimento, com os que não encontram oportunidade para realizar minimamente as suas aspirações individuais e familiares.

Na sua formação de mineiro de Bocaiúva, norte do Estado de Minas Gerais, onde nasceu no ano de 1935, há um componente que creio tenha sido decisivo para plasmar a sua personalidade, para conformar o seu caráter: foi justamente o fato de ter feito ativamente política universitária, participado dos movimentos universitários, não apenas em Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte, mas também no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Brasil como um todo. Betinho era filiado à organização AP, Ação Popular, tendo um conteúdo religioso na sua formação, que foi justamente a sua militância na Juventude Universitária Católica. Belo Horizonte foi um centro formador de vários desses militantes da JUC, sob orientação do Padre Henrique Lima Vaz.

Ele tinha dificuldades físicas. Era hemofílico, assim como todos os seus irmãos - sabemos que a hemofilia é uma doença hereditária, característica do homem. Então, ele e seus irmãos homens, todos estavam marcados por essa doença. Agregando-se a isso, pela necessidade de transfusões sangüíneas repetidas, de sangue e hemoderivados, e pela precariedade do nosso sistema de Saúde, ele terminou por contrair o vírus da AIDS numa dessas inúmeras transfusões a que se submeteu. Todavia, todas essas deficiências físicas e de saúde que tinha, ele as compensou com um grande serviço prestado à comunidade.

Há uma passagem interessante na sua vida. Após 1964, durante o Governo Militar, Betinho, então militante da Ação Popular, foi para o ABC clandestinamente, fazer aquilo que muitos marxistas e revolucionários pregavam, que era viver junto ao operariado, ter uma militância direta com os trabalhadores. Foi trabalhar numa fábrica de porcelana no ABC; e, com uma saúde tão débil quanto a dele, acabou tendo uma hemorragia no joelho - os hemofílicos são suscetíveis a essas hemorragias espontâneas. Evidentemente, não pôde mais continuar trabalhando ali. Ao sair, usou uma expressão interessante: "Saio daqui intelectualmente humilhado".

Nessa fábrica, ele teve a oportunidade de um contato direto com o mundo duro do trabalho. Às vezes, temos uma tendência a idealizar o trabalho, mas esse trabalho braçal, rude, não deve ser visto apenas como um valor ideal, porque, muitas vezes, o trabalhador tem que executar certas atividades em condições extremamente desfavoráveis. Betinho provou isso na prática e, ao sair, disse que saía daquela experiência "intelectualmente humilhado".

Pois bem, depois de ter ficado fora do Brasil durante muitos anos, Betinho retornou e terminou se transformando numa figura suprapartidária. Como ele dizia: "Não aceito mais ser dirigido por outra pessoa". Então, na verdade, ele não tinha uma filiação partidária; não estava nem sequer vinculado, no sentido estrito da expressão, a uma corrente política, a uma corrente ideológica. Mas, fiel aos ensinamentos que absorveu no convívio da Juventude Universitária Católica, da chamada Doutrina Social da Igreja, ele tinha realmente uma grande preocupação com os problemas sociais. E fundou o Ibase, Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, que foi ali realmente a base de lançamento dos grandes projetos que ele idealizou aqui no Brasil e que mobilizou comunidades inteiras, justamente em defesa dessas pessoas mais necessitadas. Dali partiu a idéia daquela Campanha Contra a Fome, pela Vida e pela Cidadania, e muitas outras que ele coordenou e idealizou.

É interessante salientar que, sendo ele uma personalidade que, muitas vezes, teve que se opor frontalmente a governos e até a pessoas, ele o fez de certa maneira docemente, ternamente, sem que isso significasse que estivesse cedendo nas suas convicções ou nas suas propostas.

Chegou a integrar o Conselho do Comunidade Solidária; depois desligou-se dele, mas nunca deixou de estar disponível para realizar todas essas campanhas ou empreendimentos que resultassem na melhoria das condições de vida da nossa população. Inclusive, considero pessoas como Betinho extremamente importantes, pois, com a sua mensagem, o seu ideal, e até pela forma como se comportam, muitas vezes elas conseguem remar contra a corrente, opondo-se a certos movimentos econômicos ou políticos que têm uma lógica própria, são irreversíveis, mas essas pessoas são capazes de se opor a eles com idéias generosas, baseadas no princípio de solidariedade, fraternidade e companheirismo. Betinho era uma dessas pessoas.

Daqui a poucos dias, vamos assistir à comemoração dos 50 anos de independência da Índia. Quando os colonizadores ingleses deixaram esse país, que continua ainda muito pobre e com muitos problemas, inclusive para alimentar o seu povo, houve uma figura que se sobressaiu e que deixou lições muito importantes para a humanidade: Mahatma Gandhi. Hoje a Índia está quase tão pobre quanto era na época do colonizador, mas algumas das idéias, dos comportamentos, das atitudes de Gandhi foram incorporadas inclusive pelo mundo ocidental: por exemplo, a idéia da desobediência civil, que consistia em se opor a certas ações de governo ou da sociedade de maneira pacífica, mas com grande conteúdo moral de resistência. São lições inesquecíveis que nos deixou esse grande homem, lições que, volto a dizer, foram incorporadas, inclusive, por outras sociedades como uma forma de afirmar princípios e atitudes diante de determinadas situações.

Betinho, guardadas as proporções, tinha esse sentido da paz, da resistência e da mobilização das vontades e das pessoas em torno de projetos de grande alcance social. Nesse momento em que desaparece do nosso convívio, podemos dizer que ele combateu a sua própria doença como combateu a fome: não venceu a AIDS, como não conseguiu exterminar a fome do Brasil, mas deixa para o País essa lição de dignidade. Betinho viveu sonhador e feliz.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/08/1997 - Página 16320