Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 15/08/1997 - Página 16322
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.):

      "...se estás para fazer tua oferta diante do altar e te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa tua oferta diante do altar e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão..."

Mateus - cap. 5, v. 23 e 24.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nas minhas leituras do Evangelho, ao pousar os olhos sobre essa passagem, imediatamente veio-me à mente a figura comovente de Herbert de Souza. De formação católica, tendo começado na política estudantil muito jovem, através da JUC mineira, Betinho, aos poucos, foi se afastando dos rigores religiosos - com seus dogmas e rituais - ao perceber que a realidade era grande demais para caber ali, e foi pelo mundo. Foi ser o irmão dos excluídos, foi ser a voz dos que sofrem a dor da fome e da miséria. Pensei: Betinho, sim, deixou sua oferta no altar e foi reconciliar-se com seu irmão.

Após ter tido a grata satisfação de ouvir vários de nossos Pares pronunciar-se com relação a esse raro ser humano e a sua obra, por ocasião de seu falecimento, sempre com expressões de beleza e sensibilidade, cabe-me, talvez, proferir não mais do que algumas singelas palavras em memória do meu querido amigo: o nosso inesquecível Betinho. Aquele com quem tive uma convivência muito próxima, aquele que foi também meu orientador político, aquele que estava presente nos momentos difíceis do Estado do Rio de Janeiro, aquele que fez com que todos nos mobilizássemos e fôssemos participar daquele grande movimento de marcha para a paz no Estado do Rio de Janeiro; Betinho, meu querido amigo, que emocionalmente coloca-me nesta tribuna.

Tentei buscar no meu íntimo, onde habitam os sentimentos, lá, entre o coração e a alma, uma expressão que pudesse retratar a sua incomparável figura. E dentre tantas capacidades que Betinho possuía, ser humano pleno de virtudes que era, encontrei uma palavra-síntese para defini-lo, no sentido de que essa capacidade era o motor que o movia, movia o homem público, o sociólogo, o político, o militante; movia o pai, o esposo e o amigo; movia o brasileiro, o cidadão, movia inteiramente Herbert de Souza: o AMOR.

Refiro-me ao amor no seu sentido mais profundo, mais amplo, no seu sentido universal que é o amor fraterno. Refiro-me à sua incrível capacidade de amar e à sua vocação para, além das palavras que podem morrer em si mesmas, concretizar esse amor através de atos concretos. Refiro-me ao amor que abraça o mundo. À qualidade daquele amor, raro e precioso, que sai de si, perde-se de si, pousa no outro, existe no outro, e volta consolidado para si. Foi essa a capacidade que fez de Betinho o ser múltiplo que era.

Em meio a um turbilhão de sentimentos a partir da notícia de seu falecimento, entendi, não sem experimentar a dor, não sem um sentimento de perda que, tenho certeza, contaminou a todos, que Betinho foi um semeador. Semeou justiça - defendeu a reforma agrária; semeou consciência social - defendeu o orçamento participativo; semeou solidariedade - a responsabilidade que todos temos em aliviar a dor e o sofrimento do próximo, encampando o combate à fome e à miséria. Semeou a caridade. Tinha a exata noção da necessidade de resgatar o verdadeiro valor dessa palavra tão desgastada. Ávido por justiça, arregaçou as mangas, arrebanhou milhares, ergueu a voz e jamais se calou. Conviveu, desde cedo e muito perto, com a morte. Vira a sua face tantas e tantas vezes, mas bravamente a repelira. Sabia que a transitoriedade da vida exigia uma ação para o hoje, uma decisão para o hoje, uma mobilização para o agora. Não tinha tempo para a retórica vazia, desprezava o discurso contraditório, denunciava a hipocrisia. E, por ter atingido tal nível de consciência, dizem, tinha algo de profeta, agia às vezes feito santo, outras - diáfana figura -, feito um anjo; um anjo cívico, um santo cívico, um profeta cívico.

O Sr. Romeu Tuma - Senadora Benedita da Silva, permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, Senador Romeu Tuma.

O Sr. Romeu Tuma - Senadora Benedita da Silva, gostaria de cumprimentá-la pelo pronunciamento cheio de emoção, de tristeza e de respeito a uma pessoa como Betinho. V. Exª fala sobre a maneira de ele agir com justiça, com amor, com respeito à cidadania e da sua luta contra a morte. Provavelmente a morte ficou com vergonha de levá-lo pelo trabalho que vinha, em vida, desenvolvendo e, por isso, demorou, e ele continuou enfrentando a dor, o sofrimento e o próprio sacrifício moral que essa doença impõe aos portadores do HIV. Betinho é um exemplo vivo de quem merece o céu e, provavelmente, merece o amor e o respeito dos seus cidadãos. O Senador Lúcio Alcântara citou o exemplo de Gandhi. Tivemos Adolfo Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, que foi quem iniciou no continente americano o movimento da não-violência. Acredito, Senadora - e V. Exª deve saber melhor que eu, pois teve um convívio mais próximo com Betinho -, que ele somou tudo isto: um pouco de Gandhi, um pouco de Esquivel e mais ainda, um pouquinho daquilo que a sua própria alma lhe oferecia, que era distribuir alguma coisa para aqueles que mais sofrem, pouco se importando com os holofotes, com o destaque. Ele não tinha objetivo político algum. Queria estar bem consigo mesmo e distribuir aquilo que todos nós devíamos ter um pouco: amor ao próximo. E tinha também a grande preocupação de evitar o crescimento desses conflitos sociais. Muito obrigado pelo aparte, Senadora Benedita da Silva. Parabéns!

A SRª BENEDITA DA SILVA - Senador Romeu Tuma, agradeço o aparte de V. Exª, que será inserido em meu pronunciamento.

E gostaria de dizer também que a iniciativa do Senador Lúcio Alcântara, e de outros Srs. Senadores, foi movida, tenho certeza, pelo sentimento de gratidão que temos por essa figura, que busquei retratar no discurso, mas não tive como fazê-lo. Busquei também nas imagens que tinha. Posso aqui citar uma delas, que para mim é de grande importância. Estávamos no Rio de Janeiro, lutando para salvar nossa indústria naval, que já estava quase fechando as suas portas. Íamos participar de um movimento que reivindicava ao Governo Federal condições e recursos para o Estado do Rio de Janeiro, a fim de que os nossos estaleiros não fechassem, pois já estava havendo demissões em massa.

Lembro-me, Senador Romeu Tuma, de que estávamos perto das barcas para atravessar a Baía até o outro lado do Rio, e, de repente, rompeu um vaso de Betinho, que começou a sangrar. E sangrou demais, o que nos preocupou. Naquele momento, estávamos ali eu, o Vereador Pitanga, a Deputada Jandira Feghali, o Deputado Carlos Minc, junto de Betinho. Mesmo sabendo que eu era enfermeira e a Deputada Jandira, médica, ele disse que nós não tínhamos o que fazer ali, que cabia a ele ir à clínica e, a nós, pegar a lancha imediatamente, a fim de não perdermos o ato, que era extremamente importante, pois os trabalhadores não podiam perder seus empregos. Aquele gesto incrível daquela pessoa, que estava ali se esvaindo em sangue e que dizia para nós não lhe darmos atenção, pois aquilo era perfeitamente natural, que outros cuidariam dele, e que fôssemos ver o que ele considerava maior do que aquilo por que estava passando naquele momento. Esse homem nos emociona.

Por isso, tenho certeza de que foi esse o sentimento que levou cada um de nós aqui, que também apoiamos a iniciativa do Senador Lúcio Alcântara e o aparte que S. Exª fez, para lhe prestar essa homenagem.

O Brasil que pensa e que sofre nunca vai esquecer o ano de 1997. Nele perdemos Antônio Callado, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e, agora, o nosso Betinho. São todos representantes dessa geração de brasileiros preocupados com a pessoa humana que trabalha, sofre e luta para sobreviver, nesta sociedade extremamente hostil que é o nosso País. Parece até que a partida de personalidades tão ativas e queridas, num curto período de tempo, se deu para mostrar, aos que ficam, a responsabilidade que temos de mudar a situação do nosso País, de melhorar a vida do nosso povo.

Talvez esteja fora deste contexto mencionar que os jornais do mundo inteiro noticiaram, com grande destaque, o falecimento de Herbert de Souza, o Betinho. Le Monde, The New York Times e Washington Post não pouparam elogios à sua vida e à sua obra. "Homem que encontrava força na dor; admirado por todos; enérgico combatente das injustiças sociais; homem que deu de comer a 32 milhões de miseráveis; sociólogo que representava as grandes lutas sociais; herói inscrito na memória nacional". Seria pretensão, exagero da nossa parte colocá-lo no mesmo nível de homens como Martin Luther King ou Gandhi?

O Sr. Bernardo Cabral - Senadora Benedita da Silva, permite-me V. Exª um aparte?

A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte ao Senador Bernardo Cabral.

O Sr. Bernardo Cabral - Senadora Benedita da Silva, em primeiro lugar, quero que V. Exª me desculpe por interromper seu discurso, até porque ele é fruto de um convívio afetivo entre V. Exª e o homenageado de hoje, o Betinho. Associo-me à densidade da sua peça oratória, eu que não tive convívio afetivo com ele, senão aquele convívio profissional, de tomarmos parte em algumas conferências, algumas palestras - a última delas aqui no auditório Senador Petrônio Portella. Creio que poucas pessoas, neste Senado, teriam, como V. Exª, a propriedade de falar sobre Betinho. Entendo, numa análise superficial que possa fazer dele, que, na orquestra sinfônica da inteligência e de bem servir o ser humano, ele foi o maestro incomparável. V. Exª cita alguns líderes estrangeiros. Se Betinho tivesse nascido em um país que também não fosse o do idioma português, ele estaria ombreado a todos eles, porque ele é daqueles que, com o que realiza ou produz, tem uma entrevista marcada com a posteridade. E a entrevista do Betinho com a história está garantida, sobretudo nas palavras de V. Exª.

A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte, Senador Bernardo Cabral, que enriquece o meu pronunciamento.

Como já disse, não consegui encontrar no dicionário palavras que pudessem fazer parte deste discurso para expressar o que Betinho representou e representa para todos nós e, em particular, para mim. Tive com ele uma das grandes experiências da vida. Era um homem que não se deixava ser cooptado por nada. Ele tinha seus próprios caminhos. Ao mesmo tempo em que era um homem político, não se ligou a nenhum partido. Mas foi a maior autoridade político-partidária que este País conheceu, porque podia chegar diante de grandes lideranças, de diferentes partidos políticos, e propor uma aliança ou repreendê-los em suas pretensões.

Lembro-me, Senador Bernardo Cabral, quando, em 1982, em minha casa, conversávamos a respeito do País, da abertura política e da luta pela anistia. Betinho, conhecendo todo o meu trabalho e o meu envolvimento com a comunidade, procurou-me para me dar uma satisfação. Mas quem era eu para que ele viesse me dar uma satisfação? Observem o respeito que Betinho tinha pelas pessoas e como ele prestava atenção a cada um de nós. Ele foi até lá para me dizer que achava muito importante - naquele momento havia o voto vinculado - que pudéssemos eleger Brizola Governador do Estado do Rio de Janeiro. E eu lhe disse que não poderia acompanhá-lo, porque o candidato do meu Partido era um outro grande brasileiro, Lisâneas Maciel, e eu estava candidata a Vereadora para representar os interesses das comunidades carentes, do morro. Era a voz do morro, a voz das mulheres, a voz dos pobres, dos trabalhadores. Ele disse que tinha um compromisso com todas aquelas causas que eu iria representar caso fosse eleita, mas que estávamos necessitando não apenas de um Poder Legislativo, mas de um Poder Executivo com coragem de tomar iniciativas para amenizar o sofrimento e a dor da pobreza no Estado do Rio de Janeiro. E ele disse: "Vou votar em Brizola. Mas você é muito jovem e terá outras oportunidades; e eu também terei outras oportunidades de acompanhá-la e não abandonarei o seu mandato". E assim o fez. Sempre produziu políticas para sustentar não apenas o meu mandato, mas de todos aqueles defensores de causas justas.

Esse é o homem a quem estamos aqui prestando essa grande homenagem.

Betinho morreu com 39 quilos, alquebrado fisicamente pela hepatite, com as carnes consumidas pela AIDS. Mas, contam os que estavam ao lado do seu leito de morte, que mantinha o olhar de gigante. Um olhar que tragava o espaço, através de todas as coisas, indo pousar talvez, tranqüilamente, em Deus.

Betinho encaminhou o País de volta ao debate essencial: o resgate urgente da dignidade do seu povo; lançou sobre os excluídos os seus olhos de ver, claros, enormes, decididos. Betinho, o semeador!

Lembro-me de ter lido, se não me trai a memória, em Shakespeare: "Não ama aquele que não demonstra o seu amor!". Que gigante nesta arte Betinho foi! A arte de amar! Nas palavras do jornalista Márcio Moreira Alves - e nas minhas - encerro minha homenagem: "Sábado morreu o santo cívico Herbert José de Souza. Deus o tenha na sua glória".

Adeus, Betinho! Vá descansar despreocupado, porque nós "seguraremos o tranco" e também iremos até o fim para dar continuidade à obra que você tão bem soube realizar e que é um compromisso de todos os brasileiros que amam e respeitam a sua Pátria.

Era o que tinha a dizer, Srª Presidente.

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/08/1997 - Página 16322