Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
Publicação
Publicação no DSF de 15/08/1997 - Página 16329
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco-PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em face da premência do tempo, irei reduzir o meu pronunciamento pela metade. Assim, peço que seja publicado na íntegra.

No começo, Sr. Presidente, faço uma relação entre o nosso homenageado de hoje e a Arte. Nesse sentido, faço uma evocação de todo o processo das culturas e da arte africana até a sua chegada ao Brasil, trazida pelos africanos escravizados.

Desse modo, era inescapável que a arte africana viesse a fecundar a cultura das Américas, e particularmente deste nosso Brasil, pelas mãos dos africanos e de sua criativa descendência, verdadeiros responsáveis pela invenção deste País.

Não vou aqui estender-me sobre esse tema, tão bem explanado dias atrás por essa extraordinária mulher negra e favelada, a Senadora Benedita da Silva, a quem sou muito grato pelas elogiosas referências a minha pessoa e ao Teatro Experimental do Negro, que fundei com outros amigos já lá vão cinco décadas. Quero, porém, aproveitar o ensejo para falar brevemente de um grande artista que acabamos de perder. Pois se a função da arte é expressar a vida, ninguém merecia mais esse título do que o nosso querido Betinho, cuja existência foi um raro exemplo de inteligência, sensibilidade, determinação e dignidade a serviço da nobre causa da justiça social.

Amigo feito no exílio, continuamos ligados pelo coração e na luta por justiça quando regressamos ao Brasil. Na qualidade de Secretário de Estado de Defesa e Promoção das Populações Afro-brasileiras, no segundo Governo Leonel Brizola, no Rio de Janeiro, Betinho foi até meu gabinete levar-me solidariedade naquela luta contra a injustiça e a discriminação racial. Anos depois, Betinho indicou-me o médico que nos livrou a ambos da labirintite - o problema da hepatite é outro. Foi meu último contato com esse missionário da solidariedade.

Numa carta endereçada a outro grande brasileiro de igual status humano recentemente falecido, o também querido Senador Darcy Ribeiro, Betinho mostrou claramente a alma de artista que animava seu ofício de sociólogo e político. Referindo-se a uma polêmica menor em que Darcy se metera, movido por um gênio que não lhe permitia esquivar-se a qualquer provocação, Betinho assim se expressou:

      "Darcy, aquele abraço

      Você é de Montes Claros, eu sou de Bocaiúva. Sou mais importante que você por razão de nascimento, mas você não tem culpa. Você tem câncer e eu, além de hemofílico, tenho AIDS. Ganhei mais uma vez. Você não pode comigo. Mas isso é entre nós.

      Vivemos mais ou menos a mesma época, você tem alguns anos mais que eu, você viveu mais perto do Poder e eu mais perto da planície, da sociedade. Não é virtude, é destino.

      Você conheceu a morte mais tarde, eu já nasci com ela. Vantagem minha? Não sei. Você foi mais livre que eu, ousou mais em muitos campos. Em outros, você foi Poder, com Jango e tantos outros. Não importa. Somos grandes amigos e irmãos, apesar de não nos vermos como se deveria. E vivemos no mesmo Rio.

      Quando cheguei no Chile, escapando da ditadura no Brasil, você foi logo me dizendo que eu deveria assessorar Allende. Porque você iria para o Peru assessorar o Alvarado.

Essa mania que nós, brasileiros, temos: pensar que somos deuses. E, no entanto, tudo isso se deu. Fui trabalhar com Joan Garcez, assessor pessoal de Allende. Você foi embora para descobrir lá longe o próprio câncer e montado nele voltar para o Brasil. Da morte para a vida.

Enfim, nossa história é uma permanente disputa pelo absurdo, até que eu te venci: criei a grande Bocaiúva e incluí nela Montes Claros, Belo Horizonte, Rio e uma parte de Paris, sem falar em Nova Iorque.

Mas agora estou triste com esse debate pelos jornais que você fez com gente do tempo da ditadura. Esse debate não merece ser feito por você. Que importa o passado? Os títulos, os curriculuns? Essa gente tem o passado da ditadura, você tem a luta pela democracia! Eles são doutores da ditadura, você é um eterno aluno da democracia, às vezes perigosamente perto do poder. Mas não há nenhuma dúvida sobre o seu lado: o do oprimido, do segregado, do danado, o da maioria. E isso é que é o saber.

Pelo amor de Deus, não perca seu tempo com esse tipo de debate! Com esse tipo de gente! A vida é mais importante.

Discutir títulos é discutir "bestage", como se diz em Minas. Discutir diplomas é discutir ordem. Pare com isso. Continue a discutir a vida, a democracia, a rebeldia, a liberdade. Ou não serás digno da Grande Bocaiúva, da qual Montes Claros é apenas uma parte.

Do seu irmão, doa a quem doer.

Betinho."

Também um artista das Letras, Darcy respondeu na mesma linha:

"Querido Betinho,

Li comovido sua carta. Minha namorada até chorou.

Vivemos vidas paralelas, meu irmão. Belas e bravas vidas de combatentes de nossa geração. Vidas sofridas, mas também gozosas.

Eu, de longe, olhando você viver, enfrentar suas tempestades e delas sair íntegro, sonhador. Às vezes, ferido no corpo, feridas de sangrar, mas você passava a mão por cima, fazendo de contas que as curava e seguia, montado no seu cavalo.

Você, também de longe, me vendo viver meus anos com raiva de envelhecer, incapaz de achar que meu feito mais importante eu já fiz. Senti, por vezes, seus olhos claros me olhando carinhosos.

Agora, Betinho meu, os anos se somaram, tantos, e as dores, ainda suportáveis, anunciando dores maiores, e eu estou com medo de baquear. Antes que desgraça maior me aconteça, enfrentei a desgraça menor que é assumir que eu venho de longe e já fiz meus feitos. Que é hora, portanto, de escrever minhas confissões. É o que estou fazendo. Vou publicar nelas sua bela carta.

Do seu irmão, doa a quem doer,

Darcy Ribeiro."

Lá no Orum, receba Betinho, receba Darcy, o nosso mais comovido axé!

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/08/1997 - Página 16329