Pronunciamento de José Serra em 14/08/1997
Discurso no Senado Federal
HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
- Autor
- José Serra (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
- Nome completo: José Serra
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- HOMENAGEM POSTUMA AO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
- Publicação
- Publicação no DSF de 15/08/1997 - Página 16416
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).
O SR. JOSÉ SERRA (PSDB-SP. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em homenagem póstuma ao poeta Robert Frost, o Presidente John F. Kennedy lembrou que "uma nação revela-se não somente pelos homens que produz, mas também pelos homens que lembra e presta homenagem".
Por isso este tributo ao Herbert José de Souza, o Betinho, que hoje faz o Senado e que se reproduz no País inteiro, mais do que engrandecer o homenageado, engrandece nosso País, o Brasil de hoje.
As pessoas a quem mais respeito na vida são aquelas que conseguem servir a si mesmas dedicando-se aos outros. Para elas, Aristóteles sempre esteve certo ao dizer que o único caminho para alguém assegurar a felicidade a si próprio é aprender a dar felicidade aos demais. Betinho fez parte desse grupo, razão pela qual, merece o tributo de todos.
Conheci Betinho numa noite de 1962 em São Paulo, apresentado por um amigo comum, José Carlos Seixas. Ouvi, nessa noite Betinho reclamar do frio e da garoa paulista. Eu começava, como estudante, a fazer política. A Ação Popular estava sendo criada, e ele era o guru máximo dos estudantes da juventude católica, ou próximos a ela, politizados e não marxistas.
Junto com Luiz Alberto Gomez de Souza, Betinho havia editado um livro, Cristianismo Hoje, no qual escrevera um artigo que era um verdadeiro manifesto à juventude, incitando à indignação e à luta aquelas gerações nascidas em torno da Segunda Guerra, ávidas para construir uma sociedade mais democrática e justa, objetivo que parecia ao alcance de nossas mãos.
Betinho havia se formado em Sociologia na excelente Faculdade de Ciências Econômicas de Minas Gerais, onde foi bolsista em tempo integral, e poderia ter seguido com facilidade uma bem-sucedida carreira acadêmica. Mas decidira dedicar-se à Ação Popular, que, segundo sua idéia e de outros companheiros, deveria transformar-se num movimento socialista que extrapolasse a área estudantil.
Desde então, convivemos durante 11 anos, a maior ou menor distância geográfica, mas sempre de perto. Convivemos até o golpe do General Pinochet, no Chile, quando fui buscá-lo no apartamento em que vivia, em Santiago, a fim de levá-lo a refugiar-se na Embaixada do Panamá, com cujo Embaixador eu já negociara o seu asilo. Ele ainda acreditava que o golpe não se consolidara e resistiu um pouco à idéia do asilo, mas, finalmente, concordou, quando o convenci de que seu apartamento seria prontamente allanado, ou seja, sofreria uma batida pelas forças militares golpistas.
Quando eu estava na Presidência da UNE, em 1963/1964, Betinho era uma companhia cotidiana. No início, aqui em Brasília, onde ele assessorava o então Ministro da Educação, Paulo de Tarso. Depois, no Rio, onde ele, juntamente com outros companheiros, dava-me sustentação política, diante das responsabilidades imensas que a UNE detinha à época, desproporcionais ao tamanho da experiência de um jovem de 21 anos - que era a minha idade.
Poderia aqui evocar muitas coisas a respeito desse período, mas creio que seria mais apropriado a um texto de memórias do que a uma homenagem à memória de Betinho.
Quando veio o golpe de 1º de abril de 1964, ele estava ao meu lado. Chegamos a escrever juntos um manifesto, inutilmente, chamando os estudantes à greve geral, diante da iminência da deposição do Presidente da República.
Procurado intensamente pelas forças de repressão da época, Betinho exilou-se em Montevidéu. Mas não ficou mais de um ano no Uruguai, exilado. Voltou ao Brasil, para aqui viver e engajar-se na luta contra a ditadura que se consolidava.
Somente em 1972 afastou-se do Brasil, depois de trabalhar "integrando-se à produção" numa fábrica de louça, apesar de hemofílico, que não podia sofrer ferimentos. Descoberto e perseguido, salvou sua vida rumando para o Chile, fixando residência em Santiago.
No Chile, consolidou seu segundo casamento, reintegrou-se ao trabalho universitário, na FLACSO, criou um centro de estudos para os jovens exilados brasileiros - IESE - e refletiu muito sobre o Brasil e sua experiência de militante político. Foi talvez seu período de vida mais "normal", mais tranqüilo desde a época do golpe no Brasil.
O mesmo vigor suave que Betinho desenvolveu enfrentando a fragilidade física, ele dedicava à luta social e política. Mas creio que não tinha vocação para ser político, no sentido profissional, do termo. Mas e essa postura de não político, no sentido profissional, só veio a materializar-se plenamente nos últimos dez anos. Sua atuação não era orientada para o poder. Não vivia o permanente dilema que inferniza os políticos de tradição ideológica e doutrinária: trair ou perecer, isto é, abandonar os princípios em função da conquista ou da conservação do poder, ou perder a luta por recusar-se a abandonar os princípios. Sua política não era a de conquista para si ou para seu eventual grupo. Não precisava ser sempre "realista" nem eficaz do ponto de vista da marcha para o poder. Era a política que deveria incitar à indignação e à solidariedade. E nisso foi eficaz como ninguém.
Há algum tempo, num aniversário de Franco Montoro, evoquei umas palavras de Bertolt Brecht sobre os homens imprescindíveis. Valem para o Betinho, pelo que fez na vida:
"Há homens que lutam um dia e são bons. Há outros que lutam um ano e são melhores. Há os que lutam muitos anos e são muito bons. Porém há os que lutam toda a vida. Esses são os imprescindíveis."
Todos os que estudam História sabem que poucos homens atingem uma situação de grandeza diante de seu tempo e da sociedade que os produziu. Dentre esses poucos, só alguns são reconhecidos por sua grandeza ainda em vida, só alguns, muito poucos, podem contemplar o reconhecimento da sua grandeza enquanto vivem. Somente os integrantes desse pequeno grupo privilegiado que, de fato, pode receber em tempo o veredito da história a seu respeito.
Talvez tendo em mente essa realidade, Sófocles escreveu há cerca de dois mil anos:
"Temos de esperar até o anoitecer para ver quão esplêndido foi o dia."
Pois bem, os familiares, amigos e admiradores do Betinho podem, neste momento, desfrutar o conforto de que ele pertence àquele grupo privilegiado. É talvez o único privilégio estritamente pessoal que jamais teve. No anoitecer de sua existência Betinho pôde olhar para trás e refletir: "O dia foi realmente esplêndido".