Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA APROVAÇÃO DO ARTIGO 33 DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO QUE ESTABELECE A OBRIGATORIEDADE DE AS ESCOLAS MINISTRAREM UM ENSINO RELIGIOSO INTERCONFESSIONAL, QUE RESPEITE A DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL, VEDADAS QUAISQUER FORMAS DE PROSELITISMO.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
EDUCAÇÃO.:
  • CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA APROVAÇÃO DO ARTIGO 33 DA LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO QUE ESTABELECE A OBRIGATORIEDADE DE AS ESCOLAS MINISTRAREM UM ENSINO RELIGIOSO INTERCONFESSIONAL, QUE RESPEITE A DIVERSIDADE RELIGIOSA NO BRASIL, VEDADAS QUAISQUER FORMAS DE PROSELITISMO.
Aparteantes
Joel de Hollanda.
Publicação
Publicação no DSF de 22/08/1997 - Página 17066
Assunto
Outros > EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, SOCIOLOGIA, RELIGIÃO, BRASIL.
  • COMENTARIO, LEGISLAÇÃO, DIRETRIZES E BASES, EDUCAÇÃO, OBRIGATORIEDADE, ENSINO, RELIGIÃO, RESPEITO, DIVERSIDADE, CRENÇA RELIGIOSA, INCLUSÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.
  • COMENTARIO, FALTA, DEFINIÇÃO, ONUS, ENSINO, RELIGIÃO, TEXTO, LEGISLAÇÃO, DEFESA, OBRIGATORIEDADE, GOVERNO, REMUNERAÇÃO, PROFESSOR, ESCOLA PUBLICA.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sob a proteção de olorum, inicio este pronunciamento.

Juntamente com as manifestações artísticas, a religiosidade se encontra entre as formas de expressão que caracterizam a singularidade do ser humano. Nenhum povo, cultura ou civilização existe hoje em dia, ou jamais existiu, sem o lastro de um ou mais sistemas religiosos. Assim, a religião talvez seja a mais conspícua manifestação da espiritualidade humana, o terreno por excelência em que se expressam as preocupações fundamentais que nos têm afligido desde que nossos mais longíquos ancestrais na escala evolutiva começaram a se indagar sobre quem somos, de onde viemos, para onde vamos.

Nas culturas africanas e indígenas, a religião ocupa um espaço que há muito perdeu na visão européia e ocidental. Para esses povos, religião não é apenas um ritual que se pratique num determinado dia da semana, como forma de garantir uma possível salvação na vida após a morte ou, o que é mais freqüente nos dias de hoje, no cumprimento de uma obrigação social para com os membros do grupo a que se pertença. Muito pelo contrário, nessas culturas a prática religiosa é parte integrante da vida quotidiana, nela se encontrando todos os elementos constitutivos da identidade de cada grupo, bem como os valores essenciais que orientam a vida das comunidades. Assim, não foi por acaso que os europeus, no seu empreendimento de conquista e "colonização" da África e das Américas, procurassem sempre destruir - ou, quando isso não era possível, pelo menos neutralizar - as religiões dos vencidos, como forma de lhes solapar a coesão interna, impondo-lhes um sistema de valores que lhes era estranho e no qual só poderiam ver a si mesmos como derrotados. Um ditado africano ilustra muito bem esse processo: "Quando os europeus aqui chegaram, eles tinham a cruz e nós tínhamos a terra. Hoje, eles têm a terra e nós, a cruz".

Um dos muitos e diversos legados que o povo brasileiro deve aos africanos e seus descendentes é - todos reconhecem - a nossa decantada religiosidade. Com efeito, a religião ocupa na vida diária dos brasileiros, qualquer que seja sua origem, um espaço muito maior e mais importante do que na Europa ou nos Estados Unidos. Em suas formas "puras" ou misturadas entre si, igrejas, seitas, cultos e denominações das mais diversas procedências encontram no substrato espiritual do povo brasileiro, que se alicerça sobretudo em nossa matriz africana, o terreno propício para a sua manifestação. Num momento de acentuada crise moral, traduzida no desrespeito e no descaso em relação aos valores fundamentais que regem as relações humanas em qualquer sociedade, esse substrato espiritual tem, com toda certeza, um importante papel a desempenhar.

Foi por essa razão que fizemos questão de nos manifestar com referência à nova redação, recentemente aprovada por esta Casa, do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, estabelecendo a obrigatoriedade de as escolas ministrarem um ensino religioso interconfessional, que respeite a "diversidade (...) religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo". Além de estatuir que os sistemas de educação regulamentarão os procedimentos para a definição do ensino religioso, estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores e ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso, o novo texto suprime a restrição ao emprego do dinheiro público para custear os gastos ocasionados por tal disciplina.

Homem que venho de longe, do tempo em que o dispositivo constitucional que assegura a liberdade de culto era apenas "para inglês ver", sendo desmentido na vida real por práticas abertamente discriminatórias, sobretudo em relação às religiões de origem africana, foi com muita satisfação que assisti à tramitação e aprovação final dessa alteração, elemento importante na concretização de uma sociedade multirracial e pluriétnica. Conhecedor, porém, das muitas armadilhas que se colocam diante daqueles que ousam defrontar-se com o status quo religioso no Brasil, chamaram-me a atenção dois aspectos do artigo alterado. Em primeiro lugar, o dispositivo que fala da "definição dos conteúdos do ensino religioso" sem a prévia definição dos objetivos educacionais, ou seja, dos comportamentos, valores e atitudes a serem adquiridos, mudados ou reafirmados pelos educandos - um deslize evidente aos olhos dos especialistas em educação. Em segundo lugar, a obrigatoriedade de se constituir uma entidade civil permanente, com a participação de representantes das diferentes denominações religiosas, para opinar sobre os objetivos e conteúdos do ensino religioso - o que constitui não apenas um enorme entrave à aplicação da Lei, mas também uma intromissão indevida do Estado na vida das instituições privadas, em flagrante ameaça ao direito de livre associação. Em razão de tudo isso, apresentei Emenda Aglutinativa de Redação, alterando o Projeto de Lei em pauta, mas não obtive sucesso em convencer meus nobres colegas Senadores do acerto ou oportunidade de meus argumentos.

Outra questão que nos chamou a atenção, e que continua em pauta, refere-se ao custeio do ensino religioso. Ao suprimir do art. 33 da Lei nº 9.394, de 1996, a expressão "sem ônus para os cofres públicos", a Lei nº 9.475, de 1997, não define expressamente a quem deverá caber tal ônus. Abre espaço, portanto, a uma discussão que se acendeu, logo após a aprovação do novo texto, com a declaração do Exmº Sr. Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, de que "os Estados serão livres para decidir" sobre o tema, pois "não há determinação de que os professores sejam remunerados". Nesse caso, a opção caberia não só aos sistemas estaduais de ensino, mas igualmente ao federal e aos municipais, conforme o texto da Lei. No cerne dessa discussão, uma dúvida fundamental: poderia o Poder Público optar entre cobrir ou não as despesas do ensino religioso?

De fato, se a lei for interpretada ao pé da letra, fica patente a ausência de qualquer mandamento a respeito do ônus financeiro. Em princípio, poderia haver a alternativa de o Estado arcar ou não com ele. A interpretação, no entanto, não pode ser apenas literal. Faz-se indispensável considerar a intenção do legislador, manifesta nos próprios projetos de lei, bem como em pareceres, discursos e outros documentos. Desse modo, cabe registrar primeiro a justificação do Projeto de Lei nº 2.757-A, de 1997, de autoria do Deputado Nelson Marchezan, em que este destaca ser o ensino religioso "de vital importância para a formação da personalidade", não devendo se confundido com doutrinação religiosa. Trata-se de parte integrante da formação e do currículo, incompatível, portanto, com o custeio privado. Diz a Justificação do Deputado Marchezan:

      "(...) A presente proposição legislativa objetiva corrigir um equívoco da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ao suprimir a expressão "sem ônus para os cofres públicos" do art. 33, "caput", da referida lei e, com isso, assegurar a todos a possibilidade de um ensino religioso que seja instrumento para a construção de uma sociedade mais solidária, fraterna e cidadã."

Já o Projeto de Lei nº 3.043, de 1997, encaminhado em regime de urgência pelo Poder Executivo, é ainda mais explícito, na Exposição de Motivos nº 78, de 12 de março de 1997, de autoria do Sr. Ministro de Estado da Educação e do Desporto:

      "(...) Esta é a questão mais delicada - a lei determina que o ensino religioso, quando ministrado nas formas prescritas, tem que ser oferecido "sem ônus para os cofres públicos", o que pode representar uma restrição para a atuação das diferentes denominações religiosas, uma vez que teriam que ou dispor de recursos para a remuneração dos professores ou contar com a disponibilidade de trabalhadores voluntários. Fica claro que, nessas condições, a escola nem sempre poderá atender à demanda da sua clientela - e, portanto, cumprir a determinação constitucional -, uma vez que estará na dependência da disposição das comunidades religiosas de arcar com o custo, coletivo ou individual, da oferta da disciplina. Estabelece-se, assim, uma relação de dependência ou de aliança entre o Estado, que deve oferecer o ensino, e a Igreja, responsável pela oferta ou não do ensino religioso sem ônus para os cofres públicos. Assim sendo, o cumprimento do dispositivo constitucional acaba por refugir da capacidade decisória do Poder Público."

O documento ainda assinala que o ensino religioso com a perspectiva de proselitismo não deve ser subvencionado pelo Estado. Por isso mesmo, afirma que o respeito à pluralidade religiosa, assim como ao princípio constitucional da separação entre Estado e Igreja, impõe que "o ensino religioso seja tratado menos como `ensino de uma religião' ou o `ensino das religiões' e mais como o ensino de conceitos que ajudam a criança e o adolescente a compreender a importância de abraçar uma religião (...)". Destaca ainda que, "em sua quase totalidade, os sistemas estaduais de educação já haviam assimilado, há anos, o ensino religioso como parte indissociável dos currículos da escola fundamental e equacionado formas aceitáveis de ofertá-lo, com caráter interconfessional e às expensas do Poder público". E enfatiza: "(...) sempre com o ônus da remuneração dos professores para os cofres públicos".

Coincidiram, portanto, as intenções dos Poderes Legislativo e Executivo. E o parecer do relator na Câmara dos Deputados - uma proposição aprovada - destacou que os projetos em análise adotavam o princípio de que "o ensino religioso é parte integrante essencial na formação do ser humano como pessoa e cidadão, estando o Estado obrigado a promovê-lo, não só pela previsão de espaço e tempo na grade curricular do ensino fundamental público, mas também pelo seu custeio, quando não se revestir de caráter doutrinário ou proselitista(...)". Com isso, conclui, satisfazem-se os princípios constitucionais que tratam da relação entre o Estado e as Igrejas.

Dessa forma, fica claro que o entendimento dos legisladores de que o ensino religioso financiado por pessoas jurídicas de direito privado não atende aos princípios constitucionais de separação entre o Estado e a Igreja. Sua adoção abriria as portas ao proselitismo das que tivessem - e somente das que tivessem - recursos para tanto. Para evitar tal inconveniência, o Poder Legislativo, com a sanção presidencial, entendeu que o ensino religioso, sob o teto da escola pública, respeitará a diversidade cultural e religiosa do País e não poderá ser proselitista. Coerentemente, para que o Estado tenha controle, possa baixar e aplicar normas, seguirá a tradição de custeio do ensino religioso, inclusive com o pagamento dos professores pelas redes escolares públicas. É o que fica patente nos documentos referentes à tramitação do Projeto na Câmara dos Deputados. Nesta Casa, tanto o parecer do Relator, eminente Senador Joel de Holanda, quanto a discussão do Projeto acolhem tacitamente as intenções contidas no texto originário da Câmara. Foi também manifesta a preocupação no sentido de que os professores sejam efetivamente remunerados. Desse modo, o acordo mencionado na sessão de 17 de junho último, para se retirar a palavra "remuneração" do parágrafo 1º do art. 33, não prejudica a intenção expressa. O dispositivo que veio a ser aprovado dispõe que os sistemas de ensino estabelecerão as normas para habilitação e admissão dos professores, mas os princípios constantes das intenções dos legisladores deixam claro que as redes públicas estão obrigadas a remunerar os docentes. Tal é a intenção expressa dos representantes eleitos do povo. Só resta que a cumpram as autoridades competentes.

Axé!

O Sr. Joel de Holanda (PFL-PE) - Permite-me V. Exª um aparte, nobre Senador?

O SR. ADBIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Ouço V. Exª com muito prazer.

O Sr. Joel de Holanda (PFL-PE) - Acompanhei com muita atenção o pronunciamento de V. Exª, que fez uma apreciação muito lúcida e completa das questões envolvendo o ensino religioso do País e, sobretudo, da contribuição do Congresso Nacional, ao aperfeiçoar a atual legislação brasileira que trata da questão do ensino religioso nas escolas públicas. V. Exª salientou bem a preocupação do Congresso, tanto da Câmara quanto do Senado, em fazer prevalecer os princípios estabelecidos na nossa Constituição, ou seja, que o ensino religioso deve ter caráter facultativo, buscando a interconfessionalidade, e deve ser visto como um fator de contribuição para a formação da pessoa humana e do cidadão. Tal responsabilidade deve ser distribuída entre o Governo Federal, os Estados e as entidades representativas da várias religiões, para que estabeleçam a melhor forma de se prover as escolas dos professores necessários para o ensino religioso, nas várias confissões. Portanto, parabenizo V. Exª pela análise que acaba de fazer. A nossa preocupação não foi, de forma alguma, no sentido de impor qualquer religião aos nossos alunos nas escolas públicas. Não houve a intenção em estabelecer conflito entre o Estado e a Igreja nem em atender pleitos da religião a, b ou c. Preocupamo-nos, sim, como educadores, que o ensino religioso possa ser viabilizado, porque, se não houver ônus para o setor público com relação ao pagamento desses professores, assistiremos ao desaparecimento do ensino religioso das nossas escolas por falta de professores ou, então, essas aulas se transformarão em proselitismo, em propagandas de determinadas religiões; não seriam aulas onde os conceitos religiosos seriam apresentados aos alunos, servindo, sobretudo, como contribuição para a construção da sua personalidade, dos princípios da ética e da moral, da cidadania e assim por diante. Portanto, fiquei muito feliz em ouvir o pronunciamento de V. Exª e o cumprimento pela forma precisa e competente como abordou essa importante questão que, por certo, irá dar uma contribuição muito importante à educação do nosso País.

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ) - Agradeço o seu aparte. V. Exª, na qualidade de Presidente da Comissão de Educação desta Casa e também de Relator da matéria, ajudou a esclarecer, a dar mais amplitude aos conceitos e à análise que vinha fazendo a respeito dessa lei. Assim, agradeço muito a V. Exª e peço ao Sr. Presidente que integre o seu aparte como essência do meu discurso.

Muito agradecido a V. Exª.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/08/1997 - Página 17066