Discurso no Senado Federal

PERPLEXIDADE COM ALGUMAS DECLARAÇÕES DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EM ENTREVISTA CONCEDIDA RECENTEMENTE A REVISTA VEJA. CONSEQUENCIAS DESASTROSAS PARA A ECONOMIA BRASILEIRA DA APLICAÇÃO DA LEI KANDIR.

Autor
Lauro Campos (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Lauro Álvares da Silva Campos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
TRIBUTOS.:
  • PERPLEXIDADE COM ALGUMAS DECLARAÇÕES DO PRESIDENTE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, EM ENTREVISTA CONCEDIDA RECENTEMENTE A REVISTA VEJA. CONSEQUENCIAS DESASTROSAS PARA A ECONOMIA BRASILEIRA DA APLICAÇÃO DA LEI KANDIR.
Publicação
Publicação no DSF de 04/10/1997 - Página 20926
Assunto
Outros > TRIBUTOS.
Indexação
  • CRITICA, DECLARAÇÃO, AUTORIA, FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ENTREVISTA, PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), REFERENCIA, INFLUENCIA, TELEVISÃO, FORMAÇÃO, MODELO, NATUREZA POLITICA, DESTINAÇÃO, OPINIÃO PUBLICA.
  • PUBLICAÇÃO, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), CRITICA, LEGISLAÇÃO, CRIAÇÃO, ANTONIO KANDIR, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO (MPO), ISENÇÃO FISCAL, IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS (ICMS), PRODUTO EXPORTADO, OBJETIVO, AUMENTO, PRODUTO INTERNO BRUTO (PIB), SOLUÇÃO, DESEQUILIBRIO, BALANÇA COMERCIAL, BRASIL, MOTIVO, PREJUIZO, ARRECADAÇÃO, NATUREZA FISCAL, ESTADOS, MUNICIPIOS.

O SR. LAURO CAMPOS (Bloco-PT/DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, cheguei à conclusão de que Sua Excelência, o Senhor Presidente Fernando Henrique Cardoso, não existe. Essa declaração da inexistência do Presidente foi feita por ele próprio na sua última e longa entrevista à revista Veja.

Diz Sua Excelência que todo o movimento sindical, toda a agitação social, todas as expressões que o povo brasileiro e a consciência cívica que os brasileiros manifestaram no final dos anos 70 e da qual diz ele ter participado - e se refere especificamente ao papel desempenhado por Luiz Inácio Lula da Silva, naquela ocasião -, tudo isso teve uma existência meramente virtual, irreal, sua presença não foi real. Quer dizer, estamos em um nível de modernidade em que não se verifica apenas aquele fenômeno que Fernando Henrique Cardoso estava cansado de conhecer: as pessoas viram coisas, "coisificam-se". A força de trabalho e a essência humana viram mercadorias; as coisas passam a nos comandar por meio de um fenômeno chamado de fetichismo das mercadorias, que ele tão bem conheceu e tão bem escreveu a respeito.

Agora, com essa tecnologia moderna, Sua Excelência se declara um ser virtual; sua existência passa a ser uma existência televisa. Ele não é mais, ou nunca foi talvez um ser real, de carne e osso. Sua Excelência se declara - ele e seus amigos, ele e seus companheiros - como possuidor de uma existência meramente virtual. Tão grande é a sua presença na televisão, tão grande é a adoração pela mercadoria televisiva, que Sua Excelência deixa de ter uma existência real, para afirmar com orgulho a sua existência meramente virtual.

Há vinte e poucos anos cheguei a apertar sua mão.

Achei que ele fosse real. Uma semana depois que o Cebrap, presidido por Fernando Henrique Cardoso, recebeu a bomba da Direita; uma semana depois de Sua Excelência haver recebido essa agressão, estive lá para pedir-lhe alguns conselhos. Almoçamos juntos. E ele, que outro dia, no Chile, se disse muito pão-duro, pagou um lauto almoço para nós dois.

Pensei que Sua Excelência fosse real, mas agora ele declara à revista Veja que não existe, que é produto da televisão. Ele não percebe que isso é próprio do capitalismo, que transforma as pessoas em coisas, dando-lhes alma. O capitalismo anima as coisas, que passam a nos comandar, como a televisão hoje comanda Sua Excelência, dá-lhe alma. Neste mundo que se descolou da realidade é muito compreensível que alguns poliglotas "Ph Deuses", que cercam como acólitos o Palácio de Sua Excelência, sejam escolhidos principalmente por sua grande capacidade de misturar as coisas, coisas reais com coisas virtuais. Eles são poliglotas. Alguns que passaram pela França falam mensonge; outros, que passaram pela Itália, falam bugià; outros, que andaram pelos Estados Unidos e Inglaterra, falam lie. Mentira! Mentira é o que praticam, e não param de mentir. E, quanto mais mentem, mais caem na admiração presidencial e mais alto sobem na hierarquia do serviço público, da administração e nos favores governamentais. Um deles, um penitente, um reincidente, tem infelizmente, na sua prática de setor, causado profundos danos ao País e à sociedade brasileira.

Uma vez um deles, um mentiroso hoje instalado na Presidência do Banco Central, disse que o Lula, o Luiz Inácio Lula da Silva, iria dar calote no dia seguinte ao de sua posse na Presidência. E, com essa mentira, muita gente deixou de votar no Lula. Assim, ele foi aumentando o seu gabarito para chegar lá, onde chegou. Pois bem, eles já sabiam que calote seria dado pelo Collor. O Sr. Kandir, hoje Ministro, era o feitor; foi ele que elaborou o plano criminoso do calote contra a sociedade brasileira. O Sr. Antonio Kandir disse que, se fosse aprovada a Lei Kandir, o PIB brasileiro cresceria 9% ao ano. Que lei fantástica, que lei dinamizadora a Lei Kandir... Pois bem, já ouvi, calado, neste plenário, cerca de dez Senadores mostrarem os males causados pela Lei Kandir aos Estados e aos Municípios. Trata-se daquela lei que prometia aumentar as exportações através da desoneração tributária do ICMS sobre as mercadorias destinadas à exportação. Essa lei iria resolver o problema da balança comercial brasileira, aumentando enormemente as exportações e iria fazer com que o PIB crescesse a 9% ao ano.

Se as mentiras estivessem incluídas no PIB, no Produto Nacional Bruto, e fossem contabilizadas como grandes valores, o Brasil realmente cresceria muito mais do que 9% ao ano. Bugià, mensonge, lie, mentira mesmo; os poliglotas estão por aí, mentindo em todas as línguas, em todas as linguagens e enganando o povo. Quando S. Exª, o Ministro Antonio Kandir, tomou posse não no Governo Collor, mas no Governo do Neofernando Henrique Cardoso, o que foi que ele disse em seu longo discurso? Fechou-o com chave de ouro, resumindo tudo o que faria no Governo: -austeridade, austeridade, austeridade. Foi isto que disse S. Exª com muita ênfase: austeridade! E agora promete esbanjar, esbanjar e esbanjar. Para quê? Por quê? Trocou S. Exª a austeridade pelos gastos, seguindo o caminho do Dr. Gustavo Franco. Esse, uma semana, no máximo, depois da posse do Dr. Antônio Kandir, anteviu que iríamos entrar no Real II, e a austeridade anterior, as demissões, o enxugamento se transformariam em gastos, em readmissões. Vamos amainar o sucateamento dos aposentados, vamos parar um pouco com as demissões de 107 mil funcionários públicos que o Ministro Bresser Pereira tinha anunciado. Vamos criar agora o Real II, o momento em que tudo o que era proibido será permitido. E disse o Sr. Gustavo Franco, naquela ocasião: "Com esses gastos que vêm por aí, a inflação vai voltar um pouco", e depois se esqueceu do que havia dito e que saiu nas manchetes dos jornais.

Pois bem, não é preciso ter dom adivinhatório, basta entender um pouco do que vai acontecer com a tal Lei Kandir para sabermos quais seriam os seus resultados reais - não imaginários, não aqueles resultados prometidos que levaram o Sr. Antônio Kandir às alturas do Ministério.

Escrevi na Folha de S.Paulo de 20 de setembro do ano passado um artigo chamado "Os sapatos do Dr. Kandir":

      Keynes foi ridicularizado quando sugeriu ao governo inglês a realização de investimentos públicos financiados por recursos fiscais que, ao aumentar a renda, os volumes de emprego e da produção - ampliando a base tributária -, permitiriam que o governo recuperasse os investimentos públicos iniciais.

      Diziam seus críticos que a receita de Keynes para redinamizar a economia britânica, assombrada com a presença de 1,2 milhão de desempregados em 1928, era o mesmo que alguém pretender se elevar puxando para cima seus próprios sapatos.

      Kandir, que não é nenhum Keynes, promete um acréscimo de 1,5% do PIB brasileiro, decorrente de sua medida de desoneração tributária.

      O Ministro Kandir, que já nos passou tantos sustos, promete uma nova surpresa à população. Afirma que, se o Governo desonerar os produtores de matérias-primas e de produtos semi-elaborados do pagamento do ICMS, ou seja, de parte do que os neonadas chamam de "custo Brasil", uma nova era de euforia, de desenvolvimento, se abrirá diante da tristeza e das penas até agora resultantes do enxugamento real.

      Vejamos o roteiro das conseqüências da "mais importante medida" editada após o Real - trata-se da Lei Kandir, contra a qual Governo e Oposição se unem hoje.

      Estados e Municípios experimentarão uma perda decorrente da redução da arrecadação do ICMS - é o que está acontecendo e contra isso escutamos, diariamente, os protestos, muitas vezes até irados dos, Srs. Senadores. A lei dinamizadora reconhece aquele prejuízo e, por isso, procura compensá-lo, pelo menos até o ano 2002, mediante a transferência de títulos do Tesouro. Logo, a União também perde.

      Os Estados e Municípios só poderão usar os papéis do Tesouro na transferência à União de parcelas de impostos a ela devidas. Logo, os sapatos que deveriam puxar o Brasil para cima, beneficiando todos os brasileiros, por enquanto se afundam no terreno movediço em que se funda o prometido e festejado milagre fiscal.

      Se os produtores de matérias-primas e semifaturados destinados à exportação reduzirem seu custo fiscal e se apropriarem da importância antes destinada ao pagamento do ICMS, deles para a frente nada mudará - cada um, ao invés de pagar o ICMS, diante da desoneração, obviamente irá embolsar essa importância. Eles venderão seus produtos pelos preços antigos, morrendo na praia a dinamização kandiriana.

      Para que os exportadores - porque toda essa articulação seria para beneficiar as exportações, para que o Brasil exportasse mais - ganhem, é necessário que as mercadorias por eles compradas baixem seus preços. Nessa hipótese, nem produtores, nem transportadores, nem intermediários, nem banqueiros poderão se apropriar da desoneração do ICMS.

      Ou seja, supõe-se que todos os agentes, na cadeia que as mercadorias percorrem, sejam capitalistas idiotas que, diante da redução do custo correspondente à desoneração tributária, não elevarão seus lucros.

      Além disso, para que os exportadores ganhem mais, conservando-se a intocável taxa cambial, o preço das exportações não poderá baixar. Caso os preços se reduzam, aliviados do "custo Brasil", o favor fiscal concedido por Estados, Municípios e União se transferirá para os compradores externos, importadores das matérias-primas, dos produtos primários e semi-elaborados brasileiros.

      Para que a desoneração tributária funcione como um substituto da desvalorização cambial, elevando as receitas dos exportadores, é necessário que o preço das exportações não se contraia, ou seja, que o chamado "custo Brasil" continue a limitar as exportações.

      Para que o Brasil não perca com o assustador sistema Kandir, na hipótese de concretizar-se uma redução dos preços de exportação, faz-se necessário que esta induza um aumento da quantidade comprada pelos importadores externos, capaz de compensar a queda das receitas dos exportadores decorrente da redução dos preços das mercadorias exportadas. Dependerá, portanto, daquilo que em economês se denomina elasticidade - preço da demanda das mercadorias exportadas.

      Puxando para cima os próprios sapatos, o criativo Keynes tucano conseguirá, no máximo, criar o mais complicado e incontrolável subsídio às exportações, que não se sabe se beneficiará alguém e a quem beneficiará.

      A lei determina que máquinas e materiais de uso das empresas brasileiras possam ser importados com isenção de Imposto de Importação. Em nome da modernização das indústrias beneficiadas com mais esse favor fiscal, sucateiam-se definitivamente os setores nacionais que produzem máquinas e materiais concorrentes com os estrangeiros que a Lei Kandir desonera.

      Se no Brasil triste de hoje fosse permitido o humor britânico de 1928, alguém diria que Kandir conseguiu criar relações semelhantes àquelas que o casamento gera, por ser uma sociedade na qual a mulher tudo perde e o marido nada ganha...

      O Brasil tudo perde e ninguém nada ganha com esta Lei Kandir.

É isso que aconteceu. É a respeito disso que ouço um clamor quase diário neste plenário e há mais de um ano eu disse que isso ocorreria inexoravelmente. Não é preciso ter bola de cristal, é preciso apenas acompanhar as conseqüências que as medidas emanadas do Governo autoritário podem causar sobre a economia e saber que estamos mergulhados num mundo em que o que realmente vale é o que aparece na televisão, um mundo virtual, de um lado, e um mundo mentiroso, de outro lado.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/10/1997 - Página 20926