Discurso no Senado Federal

REFLEXÕES ACERCA DO PROJETO DE LEI QUE GARANTE A GRATUIDADE DO REGISTRO CIVIL.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • REFLEXÕES ACERCA DO PROJETO DE LEI QUE GARANTE A GRATUIDADE DO REGISTRO CIVIL.
Publicação
Publicação no DSF de 25/10/1997 - Página 22842
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • IMPORTANCIA, APROVAÇÃO, PROJETO DE LEI, REGULAMENTAÇÃO, DIREITO CONSTITUCIONAL, GRATUIDADE, REGISTRO CIVIL.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, ONUS, CARTORIO, BAIXA RENDA, GRATUIDADE, REGISTRO CIVIL, POSSIBILIDADE, FALENCIA.
  • CRITICA, COMPETENCIA, PREFEITURA MUNICIPAL, EXERCICIO, TITULARIDADE, REGISTRO CIVIL, APREENSÃO, FRAUDE, POLITICA.
  • SUGESTÃO, CRIAÇÃO, FUNDO ESPECIAL, RECURSOS, CARTORIO, AUSENCIA, INTERFERENCIA, PODER PUBLICO, GESTÃO, ASSOCIAÇÃO DE CLASSE, OBJETIVO, COMPENSAÇÃO, ONUS, GRATUIDADE, REGISTRO CIVIL.

O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o tema que me traz à tribuna nesta manhã é motivado, talvez, muito mais por uma série de indagações do que por certezas. Talvez as reflexões que trago aqui não visem e nem logrem convencer os Srs. Senadores dos tantos e quantos temas que temos abordado no Congresso Nacional ao longo desta semana. Não creio que este seja um tema de menor importância, pois está entre os mais básicos, os mais primaciais da cidadania.

Ontem, aprovamos um requerimento de urgência para a votação do projeto de lei que trata do registro civil. Nada mais justo, mais correto, mais adequado. O Senado irá aprovar projeto de lei, já aprovado na Câmara, e enviá-lo à sanção sem modificações.

No entanto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero fazer algumas argüições em torno do projeto. Primeiro, não deixando de salientar o quanto este projeto é importante, porque o registro civil é o primeiro ato de cidadania de um homem ou de uma mulher. O cidadão que nasce tem a sua entrada na vida civil, passando a ser sujeito de direitos e deveres; ele passa a ser um ente do mundo jurídico quando faz o seu registro civil. Portanto, é o ato mais básico e mais primacial da cidadania. É um direito que tem que ser assegurado a todos, indiscriminadamente. Daí porque a Constituição assegurou a gratuidade do registro civil, e daí porque este projeto de lei pretende regulamentar e concretizar essa gratuidade, através das normas nele estabelecidas.

Há alguns dias, recebi a visita de um dos mais ilustres Desembargadores do Rio Grande do Sul - hoje, aposentado, mas, sem dúvida nenhuma, respeitadíssimo por toda a sua trajetória no Poder Judiciário, como Juiz, como Desembargador, como homem de letras jurídicas -: refiro-me ao Desembargador Décio Erpen, uma figura notoriamente respeitada e reconhecida no mundo jurídico do Rio Grande do Sul. E dele recebi um depoimento a respeito da vida dos registradores no interior do Brasil. Sendo ele filho de registradores, deu-me um depoimento que considero, vindo da parte de um homem sério, de uma testemunha que merece muito reconhecimento e que, pela sua qualificação e pela sua ética inatacável, ao longo de toda a sua vida, não pode ter suas palavras postas em dúvida em nenhum momento. Ele me deu o depoimento de que os Cartórios de Registro Civil, principalmente no interior do Brasil, são muito pobres, têm uma arrecadação muito baixa e são muito limitados. São muito estreitas as fontes pelas quais chegam recursos aos Cartórios de Registro Civil, principalmente no imenso interior, onde, inclusive, há um grande despovoamento de cartórios, onde há falta de cartórios, onde há falta de titularidade no exercício dessa função, que, como eu disse, é básica para a cidadania.

Agora estamos obrigando esses cartórios, que já têm uma grande precariedade de arrecadação, a fornecerem gratuitamente o registro civil de cerca de 4,5 a 5 milhões de pessoas no Brasil. Não há nenhuma objeção quanto à gratuidade do registro civil, penso que deve ser realmente gratuito.

É importante destacar aqui que, se esses registradores não têm fontes de arrecadação, não têm fontes de recursos, há para com eles uma certa injustiça, uma certa discriminação, porque os Cartórios de Imóveis, por exemplo, são cartórios ricos, já que registram, muitas vezes, escrituras ou contratos de compra e venda e sobre eles há uma fonte de arrecadação muito mais ampla, muito mais generosa.

O que há aqui de irracional, o que há de incompreensível no que está acontecendo é que, justamente os cartórios mais pobres, que têm fontes mais precárias de sustento e de arrecadação, são obrigados a fornecer o registro gratuito, enquanto os cartórios mais ricos, mais abastados, que têm fontes mais seguras, mais generosas de arrecadação, estes não têm obrigação de nenhuma gratuidade.

Há quem coloque também como extremamente questionável atribuir-se à prefeitura a tarefa do exercício da titularidade do registro civil. Eu próprio me indago muito sobre isso, Sr. Presidente. O registro civil feito pela prefeitura local, em pequenos e distantes Municípios desse Brasil, desse imenso território nacional, pode-se prestar a uso político, a uma manipulação político-eleitoral. Não sei se é recomendável, se é ética e politicamente recomendável que se atribuam às prefeituras os registros dos cidadãos nas pequenas comunidades, por causa da possível prática manipulativa e das possíveis fraudes que inevitavelmente se seguem a essas situações. Primeiro, vem o uso político-eleitoral, depois vem a prática da fraude. Não creio que seja recomendável atribuir tal tarefa às prefeituras. O que talvez seja recomendável é possibilitar a ampliação dos serviços cartoriais e notariais no Brasil.

Há quem queira também - o que me parece equivocado - compensar os Cartórios de Registro Civil com recursos públicos, por meio de pagamentos feitos pelo Erário com os recursos dos impostos pagos pelos cidadãos.

Discordo dessa opção. Os cartórios não podem ser compensados com o dinheiro público, oriundo dos impostos pagos pelos cidadãos. Não creio que seja essa a alternativa cabível. Sei que existe proposta nesse sentido, não me recordo exatamente de quem. Parece-me, se não me falha a memória, que é de autoria do Senador Odacir Soares. Entretanto, não faço aqui nenhuma restrição; apenas divirjo porque não considero que a saída esteja em dar compensações ou subsídios eventuais aos cartórios, para que eles possam sobreviver e, portanto, garantir esse direito básico de cidadania, que é o registro civil. Esse não é o melhor caminho. Isso significaria que o povo estaria pagando.

Podemos, sim, criar uma alternativa, criar uma saída que não vai onerar nem os cidadãos, nem a população, nem aqueles que precisam da gratuidade, que são os cidadãos muitos pobres e que não podem pagar sequer o registro civil. E que não deve onerar também os cartórios que têm recursos mais parcos, mais precários, que têm limitações maiores de arrecadação, localizados nesse grande interior do Brasil.

Poderíamos propor no Senado, já que a Câmara não teve criatividade para isso, já que a matéria está em plenário em regime de urgência, um acordo entre as lideranças, com a maior transparência, com a maior visibilidade pública, com a maior exposição ao julgamento da imprensa, ao julgamento da opinião pública, ao julgamento de quem quer que seja, de que os cartórios que têm mais possam compensar os cartórios que têm menos, já que o serviço é uma titularidade concedida pelo Poder Público, já que, apesar de privatizados, quem concede a titularidade é o Poder Público, é o Poder Judiciário.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, creio que se criássemos aqui, por via de emenda ao projeto, um fundo de equalização pelo qual todos os cartórios ou sistemas notariais contribuíssem com uma parcela da sua arrecadação anual ou mensal - uma contribuição da ordem de 3%, 4% ou 5% - para ser destinada a um fundo gerido pela entidade dos próprios cartórios, sem que houvesse nenhuma interveniência do Poder Público, sem que houvesse nenhuma interveniência de qualquer outra área externa aos próprios cartórios e às suas entidades. E essa entidade se encarregasse, então, de compensar ou de cobrir as possíveis perdas que os cartórios mais pobres pudessem ter ao longo dessa atividade, do exercício dessa titularidade, que é a de realizar o registro civil das pessoas físicas. Quer dizer, conferir cidadania básica aos indivíduos, aos mais pobres, aos menos protegidos, aos mais despossuídos no País.

Esse Fundo de Equalização poderia ser uma forma de estabelecer uma justiça social no âmbito do sistema, sem que isso gerasse ônus para a sociedade. Não haveria custos do ponto de vista de subsídios governamentais, não sairia qualquer tostão de cofre público e ainda constaria do texto da lei que seria vedado - vejam bem que isto enfatizo com a maior veemência - repassar aos custos do cartório a quantia ou a porcentagem referente a esta contribuição, até porque a alteração de custos nos cartórios se faz mediante lei estadual.

De modo que esta contribuição não poderia e nem significaria, de fato e concretamente, qualquer repercussão no preço final dos serviços cartoriais, que deveriam ser cobrados no mesmo nível.

Se o que estou falando é algum “lobismo”, alguma defesa particular, preferencial, privilegiada de interesses dos cartórios, quero ouvir isso dos Srs. Senadores e da opinião pública. Se estou fazendo alguma colocação injusta, não terei dúvidas de recuar na minha posição e dizer para deixarmos como está. Mas se o que estou falando tem um certo senso de justiça, um certo sentido de equilíbrio social e econômico, um certo fundo de razão, tenho a impressão de que nós, no Senado, deveríamos caminhar nesta direção: estabelecer justiça econômica, estabelecer justiça social; e mais, com isso, garantir que os registros civis, no imenso interior do Brasil, não fechem e, ao fecharem, deixem de atender a essa necessidade cidadã que é o registro civil das pessoas físicas que nascem, porque se esses cartórios, que já têm arrecadação muito baixa, já têm fontes muito estreitas de sustento financeiro, vêem essas fontes mais limitadas, mais sufocadas, mais reduzidas, a tendência, que me parece natural e inevitável - isto é uma lei básica da economia - é os cartórios fecharem por falta de financiamento, por falta de fonte de sustento, por falta de base econômica.

Ao fecharem os cartórios, a conseqüência dramática social é a inexistência do registro civil e, ao transferir para as prefeituras o registro civil, é a certeza de que, no futuro, conceder certidão vai ter uso político eleitoral. Conceder uma certidão a um cidadão pobre será um presente do poder político e, mais tarde, quem sabe, se não servirá à manipulação e à fraude.

Considero isso profundamente não-recomendável, Sr. Presidente! E proponho:

1 - Garantir a gratuidade plena à cidadania pobre;

2 - Garantir a permanência, a sobrevivência dos cartórios de registro civil no interior do Brasil;

3 - Não cobrar um tostão a mais dos cofres públicos, nem dos usuários de cartórios, porque não se pode repassar os custos;

4 - Justiça e equilíbrio no interior desse setor.

Pois, hoje ele é privado, e há titulares de registro civil pobres de um lado e, de outro, titulares de cartórios que recebem, muitas vezes, emolumentos de valor bastante mais significativo do que aquele que é pago pelo registro civil.

De modo, Sr. Presidente, que a proposta que faço é para que os Senadores reflitam, para que se dê a esta questão uma consideração política. Mas se eu estiver errado, se eu estiver cometendo um grave equívoco, deixo de fazer essas colocações. Apenas penso que viveremos a grave e triste experiência de fechamento de cartórios, possivelmente num futuro até imediato, e, depois, a transferência para as prefeituras, com uso e manipulação política em grande parte dos Municípios brasileiros. Tudo isso pode ser evitado com soluções inteligentes, criativas e, sobretudo, socialmente justas.

Sr. Presidente, não fiz qualquer emenda porque não sou, não quero ser e não tenho o papel de defender direitos unilaterais de quem quer que seja. Levanto uma questão que considero de ordem social e econômica. Mas, se eu estiver aqui fazendo a defesa privilegiada de algum interesse mesquinho ou menor, retiro aquilo que disse.

O Sr. José Eduardo Dutra (Bloco/PT-SE) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB-RS) - Concedo o aparte a V. Exª.

O Sr. José Eduardo Dutra (Bloco/PT-SE) - Senador Fogaça, concordo com quase tudo que V. Exª falou. Creio que, mais uma vez, o Senado fica numa “sinuca de bico”. Porque o projeto tem um aspecto altamente positivo, como já foi ressaltado por V. Exª, mas também tem alguns problemas técnicos, além do problema real, que é a questão dos pequenos cartórios. Além disso, ele mistura a questão do registro civil com a do registro de imóveis. Esse caso é até mais fácil de resolver, e já aconteceu aqui, que é a alternativa do veto presidencial. Essa não é a melhor alternativa do ponto de vista da Casa Legislativa, mas acaba sendo a única viável. Sabemos que existe um lobby poderoso contra este projeto, que não é dos pequenos cartórios, mas sim dos grandes. Então, o risco que se corre é de fazermos as modificações, o projeto voltar à Câmara e acabar sendo sepultado no seu objetivo principal, que é meritório. Confesso que estou em dúvida quanto à posição a ser tomada na sessão de terça-feira. Assinei o requerimento de urgência, concordo com os pontos levantados por V. Exª, além da questão técnica do registro de imóveis, mas, sinceramente, não sei ainda que posição defender aqui, no plenário, na próxima terça-feira. Tenho muito medo de o projeto ser modificado e acabar não sendo votado. Dessa forma, acabaremos “jogando a criança junto com a água”. Mas, repito, concordo, praticamente, com todos os pontos que V. Exª levantou. Muito obrigado.

O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB-RS) - Obrigado a V. Exª, nobre Senador José Eduardo Dutra.

Fico muito satisfeito com suas colocações, porque V. Exª é daqueles Senadores capazes de ter dúvidas. A meu ver, uma das formas mais sinceras de fazer política é a de expor dúvidas. Infelizmente, entre Colegas nossos de todo o Parlamento - não só do Senado - há os que nunca têm dúvidas, só têm certezas, as mais absolutas, e, às vezes, sobre as mais rigorosas imbecilidades estão cheios de convicção. Entretanto, V. Exª tem esta sinceridade profunda de expor uma dúvida, como eu a estou expondo aqui. Eu tenho uma grave dúvida sobre a validade do que estamos fazendo. Se nós não estamos aqui através da ética de um princípio procedendo muito mal em relação a uma ética das consequências pelo princípio da gratuidade do registro civil, vamos ter um fechamento generalizado de pequenos cartórios pelo interior do Brasil, uma entrega da titularidade do registro civil para prefeituras e um possível uso político, manipulativo, fraudulento e corruptivo do registro civil no futuro, com trocas de nomes, muitas vezes utilizando isso para efeito eleitoral.

           Quero aqui, Sr. Presidente, fazer esse registro da minha grande dúvida, íntima, profunda, do meu alto questionamento, dessa intensa auto-indagação que faço, e a proposta que estou fazendo é que há, sim, possivelmente, um lobby dos cartórios mais fortes, mais poderosos, mais ricos, dos grandes cartórios contra esse projeto e estou propondo piorar a vida deles. Estou propondo piorar a vida dos grandes cartórios. Estou propondo tirar dos grandes para dar aos pequenos através de um fundo de equalização. Não consultei as entidades para dizer isso, não sei se as entidades concordam, não sei se os cartórios de imóveis concordam em pagar algo que eles possivelmente não terão que pagar, perdas que eles não irão ter. Mas penso que se deve, para viabilizar o registro civil, pensar nessa alternativa.

Não sou relator do projeto e, se o fosse, talvez tivesse colocando essas questões muito mais avançadamente, mais concretamente. O relator é uma das figuras mais eméritas e ilustres desta Casa, o Senador Josaphat Marinho. Tenho certeza de que S. Exª vai também analisar com o mesmo cuidado e interesse das pessoas que refletem, que suscitam dúvidas, que buscam conclusões e soluções adequadas - S. Exª sempre soube fazê-lo muito bem.

Essa é a colocação que tenho a fazer, Sr. Presidente, e creio que o Senado deve, neste caso, ter a honestidade de levantar e resolver as suas dúvidas com toda a responsabilidade.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/10/1997 - Página 22842