Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO ACERCA DO PAPEL DO LIVRO NA VIDA DOS POVOS, POR OCASIÃO DO DIA NACIONAL DO LIVRO, COMEMORADO ONTEM.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • REFLEXÃO ACERCA DO PAPEL DO LIVRO NA VIDA DOS POVOS, POR OCASIÃO DO DIA NACIONAL DO LIVRO, COMEMORADO ONTEM.
Publicação
Publicação no DSF de 31/10/1997 - Página 23351
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, LIVRO.
  • REGISTRO, HISTORIA, LIVRO.

         O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, por ocasião do Dia Nacional do Livro, comemorado em 29 de outubro, é muito oportuno que meditemos um pouco sobre o papel do livro na vida dos povos. É de conhecimento geral que se publicam livros em número sempre crescente, no mundo e no Brasíl. Cada vez mais, aumenta o número de leitores. É muito evidente a forte correlação entre o uso de livros e o progresso social.

         Por outro lado, o livro, essa invenção tão antiga, vê, em nosso século, seu espaço tradicional ser ocupado por outros meios de comunicação. Primeiro, o cinema, capaz de apresentar ao expectador obras de ficção e todo tipo de relato. Depois, o rádio e a televisão, que dão as oportunidades de lazer e informação antes apenas proporcionadas por horas de leitura. Mais recentemente, o computador pessoal, capaz de apresentar ao usuário um CD-ROM e de dar acesso à Internet.

         Não estaria o livro a caminho de tornar-se obsoleto? A história do livro, através dos séculos e dos milênios, pode municiar-nos de argumentos a favor e contra essa tese. O livro mudou de feição através do tempo. Certas técnicas tornaram-se ultrapassadas, enquanto novas formas surgiram. Mas é inegável que o livro exerceu e exerce um papel primordial na transmissão da informação, do conhecimento, dos produtos da sabedoria e da criatividade. Mais que isso: o livro tem sido, e ainda é, um instrumento civilizatório por excelência. É assim desde os primeiros registros da escrita até hoje.

         O que podemos chamar de primeiros livros são as placas de cerâmica com escrita cuneiforme produzidas na Mesopotâmia, desde o terceiro milênio antes de Cristo, pelos sumérios, babilônios, assírios e hititas. As placas tinham, mais comumente, 15 centímetros de lado e as letras eram impressas facilmente pelo escriba na argila fresca, com um estilete. A argila, seca ao sol ou em forno, resultava em cerâmica duradoura. Assim escreviam-se e copiavam-se contratos, éditos de governantes, relatos épicos, poemas, leis, escritos religiosos. Os leitores eram altos administradores, sacerdotes, grandes comerciantes e os especializados escribas. Durante 2 mil anos, uma civilização e sucessivos impérios se viabilizaram graças à placa de cuneiformes.

         Alguns séculos depois dos sumérios, os chineses registravam seus escritos, e os copiavam e reproduziam, em placas de bambu enfeixadas por um cordão. Alguns séculos a mais, e os mesmos chineses inventaram o papel e o livro em forma de rolo de papel.

         Tão antigo quanto o arcaico livro mesopotâmico é o rolo de papiro do vale do Nilo, do Egito antigo. Obtidas de um bambu da região, as folhas de cor creme recebiam a escrita de hieroglifos por meio de penas de bambu e de tinta. As folhas eram costuradas em rolo, o que era um livro. O material não era tão durável como a cerâmica. Sobreviviam os livros que eram sucessivamente copiados e recopiados. Os papiros egípcios registraram e sustentaram uma civilização.

         Os gregos adotaram o rolo de papiro. Papiro em egípcio era biblos, e livro, em grego, passou a ser biblion. Os gregos usavam o seu próprio alfabeto, de origem fenícia, mais prático que o egípcio, o que facilitou a difusão da leitura entre as elites. A civilização grega, que influenciou diretamente a nossa, registrava em seus livros, em múltiplas cópias, dramaturgia, discursos, filosofia, poesia, relatos históricos. Um livro grego tinha 25 centímetros de altura e 3 cm de diâmetro. Desenrolado, podia atingir até 10 metros.

         Havia difusão e comércio de cópias, feitas por escribas profissionais. Alguns governantes e estudiosos formavam coleções. As conquistas de Alexandre, o Grande, que difundiram a cultura helênica pela Ásia Ocidental, espalhando cópias dos livros gregos, levaram também à fundação de Alexandria. Em Alexandria, formou-se a maior biblioteca do mundo antigo: chegou ela a contar com centenas de milhares de livros, isto é, rolos de papiro. Nessa biblioteca atuava uma equipe permanente de escribas e tradutores.

         Concorrente de Alexandria era a biblioteca dos reis de Pérgamo, cidade situada no litoral leste da atual Turquia. Para limitar o poder da concorrente, os governantes helênicos do Egito proibiram a exportações de papiro. Pérgamo passou a usar rolos de couro curtido de maneira refinada, material mais caro, porém mais resistente que o papiro: é o pergaminho, que gradualmente iria substituir o papiro. Os judeus copiavam suas escrituras sagradas, o Velho Testamento, em rolos de pergaminho.

         Roma herdou a cultura grega, traduziu seus livros para o latim e teve sua própria e vasta criação cultural. A expansão geográfica de Roma propiciou a expansão do alcance dos livros. Com a cristianização dos domínios romanos, isso significou não só a difusão da cultura grega e romana, mas também a dos escritos de pregação do cristianismo.

         A atividade de produção de livros dos romanos era intensa. Um livro, rolo, era chamado em latim de volumen. Particulares formavam coleções. Editavam-se e comerciavam-se livros. Havia editoras que funcionavam por meio de um scriptorium, local em que um leitor, em voz alta, ditava uma obra para até 30 copistas: uma verdadeira produção em massa. Na época do imperador Constantino, ano 300 depois de Cristo, um censo indicou a existência de 28 bibliotecas públicas. Mas o rolo de papiro só resistia às guerras e aos séculos se fosse copiado e recopiado. Com as invasões bárbaras e a agonia e fim do Império Romano, a quase totalidade desse acervo desapareceu.

         Quanto à forma do livro, estava ocorrendo uma mudança, nesses séculos iniciais da Era Cristã. Começou a ser usado o códice, isto é, o formato de folhas manuscritas superpostas e costuradas de um lado, semelhante ao que hoje chamamos livro, mas sempre em grande formato. O códice, geralmente, era em folhas de pergaminho, no qual se podia escrever dos dois lados. Num rolo cabia um evangelho; já num códice cabiam os quatro evangelhos e mais os Atos dos Apóstolos. Era mais fácil folhear do que desenrolar, principalmente para se estudar; os cristãos não liam, meramente: estudavam.

         Durante 4 séculos coexistiram rolos de papiro, rolos de pergaminho, códices de papiro e códices de pergaminho, como hoje coexistem livros, CD-ROM, disquetes, filmes e microfilmes. Os cristãos usavam o pergaminho, até mesmo por tradição das escrituras sagradas judaicas, e de preferência em forma de códice. Os autores pagãos que continuaram a produzir no contexto da cultura greco-romana, preferiam o rolo de papiro, até mesmo por resistência conservadora à cultura cristã, que lhes parecia um sistema de pensamento inferior.

         Com a dissolução do Império Romano, a vida cultural do Ocidente continuou apenas nos monastérios, que se espalhavam do sul da Itália ao norte da Irlanda, com seus códices de pergaminho, seus copistas e suas coleções, principalmente de livros religiosos, mas também de obras clássicas, matemática, medicina, direito, filosofia e história, quase sempre em latim.

         Nos meados da Idade Média, começaram a surgir algumas universidades. Ao seu final cresceu, com os autores humanistas, a produção cultural, tanto em latim como nos idiomas vernáculos. Sobreveio o movimento cultural da Renascença, com o interesse pelas coisas da antigüidade grega e latina e pela cultura não-religiosa em geral. Por essa época, início do século XV, foi introduzido o papel no lugar do pergaminho. Cresceram, então, a publicação e o comércio privado de livros, que se haviam extinto com Roma. Os governantes locais passaram a formar bibliotecas fora dos monastérios, e a elite começou a comprar e a ler: primeiro a aristocracia e o clero, depois também comerciantes e mestres-artesãos. Era muito vivo o interesse por livros. A situação, em meados do século XV, era tal, que pareceu vir no momento justo, e quase naturalmente, a invenção do livro impresso e multiplicado mecanicamente.

         É difícil dizer se foi a nova situação cultural que provocou a nova invenção ou se foi a invenção do livro impresso que deflagrou nova situação cultural. O mais certo é que ambas as afirmações sejam verdadeiras.

         Por volta de 1450, ocorreram na Alemanha as primeiras edições de livros sacros impressos. A difusão da máquina de imprensa, com a técnica de tipos metálicos móveis, foi tão rápida, que, em 1500, já se contavam na Europa 40 mil edições, feitas com a média de 200 exemplares cada. A técnica de impressão com tipos móveis existia, há séculos, no Extremo Oriente, mas foi na Europa que se combinaram técnica aperfeiçoada de impressão, mercado leitor e produção cultural, para dar nascimento ao livro moderno. A máquina impressora do século XV era tão eficiente, que seu modelo só recebeu aperfeiçoamentos substanciais a partir de 1800.

         Presidiu a invenção do livro moderno a idéia de informar por meio da leitura, o impulso da difusão cultural, e não o da pregação religiosa. Foi um avanço promovido por mestres-artesãos e comerciantes de livros, e não por príncipes, sacerdotes ou intelectuais.

         Em termos de formato e de estilo das letras, os primeiros livros impressos ainda imitavam os códices então conhecidos. A língua mais usada ainda era o latim. O tema mais freqüente, ainda a religião. Logo surgiram edições de formato menor e mais baratas. Aperfeiçoaram-se as técnicas de impressão de ilustrações, impulsionando ramos da ciência como anatomia e cartografia. Em poucas décadas, os preços dos livros caíram a 1/5 do preço dos códices manuscritos.

         Ao longo do século XVI, as edições publicadas foram em número de 520 mil. Ao longo do século XVII, foram 1 milhão e 250 mil! A enorme difusão dos livros provocou uma verdadeira revolução cultural. Surgiram autores, publicados e muito lidos, como Cervantes, Shakespeare, Descartes, Galileu, Molière, Newton. O livro foi veículo que aprofundou as mudanças sociais. Ele difundia ciências, literatura, comentários religiosos, história, biografias, relatos de viagens. Surgiram livros didáticos, almanaques, revistas periódicas científicas e literárias, nos idiomas de cada país. O uso do latim para difusão cultural foi caindo em desuso. Era tal a quantidade de livros que um estudioso tinha que absorver, que data do século XVII o início do hábito de ler em silêncio e rapidamente, e não em voz alta, como era a tradição medieval.

         Tornava-se mais e mais difícil a imposição de censura sobre livros, seja laica ou religiosa, se bem que ela sobreviveu por séculos. O relaxamento da censura começou formalmente em 1695, na Inglaterra, quando se permitiu que livros fossem publicados em qualquer cidade e não só em Londres.

         No século XVIII, foram 2 milhões as edições. Foi o século que inventou as enciclopédias. Foi também o século que difundiu a crença de que mesmo uma pessoa sem muita cultura poderia instruir-se e adquiri-la por meio da leitura de livros.

         No século XIX, a industrialização, a urbanização, a escola pública, a democracia multiplicaram a publicação de livros: foram 8 milhões de edições.

         Em nosso século, que chega agora ao final, explodiu a produção cultural, acadêmica, científica. Mas é a época em que outros meios de transmissão de informação e conhecimento vieram competir com o livro. No entanto, o livro contém a informação duradoura, de posse pessoal. O livro é mais generoso, variado, seus temas são mais aprofundados, sua mensagem e seu conteúdo mais permanentes. Isso explica a contínua ascenção do livro.

         Os meios eletrônicos oferecidos pelo computador pessoal acabam por estimular a sede por mais informação, por informação mais completa, e isso encontra-se nos livros. A própria elevação do nível educacional das populações acaba por aumentar o consumo de livros. E vice-versa: tornar disponível, facilitar o acesso aos livros é receita certa para elevar o nível educacional e cultural de um país.

         Sr. Presidente, da marcha das civilizações fica evidente a importância do livro. Se queremos um País com mais progresso social, devemos cultuar o livro. Há boas iniciativas, hoje, no Brasil, que merecem todo nosso apoio, no sentido de dotar cada bairro de uma biblioteca pública; e cada escola, por modesta que seja, de uma pequena biblioteca. É preciso formar o hábito da leitura. Ele é o pressuposto do interesse por leitura de melhor qualidade; ele é o pressuposto do progresso pessoal e do progresso do País.

         Antes restritos aos monastérios, os livros chegaram às elites e depois às massas. Hoje, acenam nas bancas de jornais. Mas ainda há excluídos. Quando formos todos leitores, seremos plenamente uma civilização.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 31/10/1997 - Página 23351