Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO DIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO DIA DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 11/12/1997 - Página 27680
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.

A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, conforme as Sagradas Escrituras, “Tu és pó, e ao pó tornarás”. No entanto, por mais profunda e espiritualizada que seja a compreensão que tenhamos da existência humana sobre nosso Planeta, em nada essa compreensão colidirá com a nítida percepção - comum a todos os homens e mulheres de bem - de que todo ser humano possui um valor intrínseco, porta uma dignidade que lhe é própria e o torna sujeito de direitos básicos e inalienáveis.

A mais poderosa e duradoura afirmação da dignidade e da liberdade do homem, bem como dos sentimentos de igualdade e fraternidade que devem presidir as relações entre os membros da família humana, vem, indubitavelmente, dos ensinamentos de Jesus Cristo. Ao subordinar todos os direitos e deveres a um novo padrão ético, fundamentado no amor, no perdão e na caridade, a doutrina de Cristo representou o pleno reconhecimento dos atributos que dão ao homem sua dignidade integral, como filho de Deus e irmão de todos os homens.

Neste 10 de dezembro, estamos comemorando o 49º aniversário do documento que representa o ápice de todo esse processo: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada, em 1948, pela Organização das Nações Unidas.

Os representantes dos povos do mundo inteiro firmaram o documento que, em seu preâmbulo, afirma que a liberdade, a justiça e a paz no mundo não poderão existir senão tendo por base o reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais inalienáveis de todos os membros da família humana. Este documento que, em seu art. 1º afirma que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, e que, dotados como estão de razão e consciência, devem comportar-se fraternalmente uns com os outros; o documento, que, indo além de qualquer de seus precedentes, estatuiu não apenas os direitos individuais da criatura humana, mas também seus direitos sociais, relativos ao trabalho, à saúde, à educação, ao matrimônio, à família, à propriedade individual e coletiva, à liberdade de reunião, de associação e de participação política, à sindicalização, ao lazer, à participação na vida cultural, ao gozo das artes e à participação no progresso científico.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi proclamada em resposta à suprema aspiração, ao mais profundo anseio da humanidade: o anseio de coexistir, pacificamente, em um ambiente de pleno reconhecimento dos direitos subjetivos fundamentais de cada criatura humana. Cada homem e mulher deste Planeta sabe que só esse reconhecimento permitirá que atinjamos, um dia, em sua plenitude, o ideal de justiça que consubstancia a esperança dos povos em um futuro melhor.

Trata-se, portanto, não apenas de um ponto de referência nos debates universais, mas de uma estrutura política que gera preocupação de juristas, filósofos, líderes religiosos e pensadores de todas classes sociais, modernos ou fiéis a antigas concepções. Além disso, a Declaração inspirou inúmeras constituições de países democráticos, entre os quais o Brasil, constituindo apoio sólido a quaisquer movimentos reivindicatórios em prol da dignidade humana.

Um ano atrás, desta tribuna, ao prestar minha homenagem ao 48º aniversário da Declaração, relatei reunião que, àquela época, havia sido realizada pela cúpula da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação - FAO, e que concluíra pela existência de um processo de globalização da fome e da insegurança alimentar, situação que, evidentemente, representa violentíssima agressão ao primeiro e mais sagrado dos Direitos Humanos: o direito à vida. Prestei, na ocasião, minha homenagem a Betinho e a sua Campanha da Cidadania contra a Fome. Alertei, naquele contexto, que o mais fundamental dos Direitos Humanos não pode ser desprezado sob pretexto de necessidade de se promover ajuste econômico.

           Hoje, decorrido um ano, Betinho não se encontra mais entre nós. O processo de globalização da economia já mostra, claramente, a sua fisionomia cruel e desumana. A sanha dos especuladores globais arruína a economia das nações em diversas partes do planeta, arrastando-as à recessão, com suas seqüelas de estagnação, desemprego e aumento das carências sociais. Os chamados “tigres asiáticos”, até ontem apontados como modelo de sucesso econômico, encontram-se hoje dependentes da ajuda internacional, impotentes que foram para defender-se dos especulativos. No Brasil, começa-se a perceber que o alto preço já pago para entrar no jogo da globalização foi apenas a primeira prestação. A resposta do Brasil à crise mundial é o aprofundamento da recessão, com elevação de juros, aumento dos impostos, demissão de funcionários públicos. Promove-se, assim, mais quebradeira de empresas, mais achatamento do poder aquisitivo da classe média, mais desemprego. Em resumo, mais desrespeito aos direitos humanos.

           Numa sociedade ainda injusta como é a do Brasil, com graves desigualdades de renda, promover os direitos humanos torna-se mais factível se o equacionamento dos problemas estruturais - como aqueles provocados pelo desemprego, fome, dificuldades do acesso à terra, à saúde, à educação, concentração de renda - for objeto de políticas governamentais. Para que a população possa assumir que os direitos humanos são direitos de todos, é fundamental que os direitos civis elementares sejam garantidos e, especialmente, que a Justiça seja uma instituição garantidora e acessível para qualquer um.

           Sobre os direitos humanos em nosso País, ressalto as constatações do recente relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA): “o Brasil é racista, desrespeita os direitos humanos e privilegia os ricos”.

“Sem desconhecer os avanços obtidos pelo atual Governo do Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CDIH) da OEA considera que o Estado ainda não tem oferecido as garantias necessárias a setores importantes da população brasileira com o objetivo de assegurar seus direitos humanos”.

           O relatório, preparado por uma comissão que viajou pelo Brasil com a autorização do Governo, traça o perfil de uma Nação vibrante, violenta e discriminatória, ressaltando que “a discriminação racial é fato consumado”.

           Um trecho do relatório diz: “A distribuição dos gastos públicos com serviços sociais - saúde, educação e previdência social - convergem a favor dos ricos”.

           Sobre a reforma agrária, indica uma agravante: existem 120 milhões de hectares cultiváveis não aproveitados e, portanto, constitucionalmente sujeitos à desapropriação. O relatório ressalta que, até fevereiro passado, foram desapropriados apenas 4,5 milhões de hectares.

           O documento destaca os esforços do Governo para corrigir essa omissão. Mas afirma que o que tem sido feito ainda é pouco.

           O problema não é a falta de recursos, mas sim a falta de vontade política: “Seria possível eliminar a pobreza no Brasil dando a cada pessoa pobre o suficiente para colocar-se acima da linha da pobreza, com o equivalente a menos de 1% do Produto Interno Bruto”. Cálculos do Banco Mundial mostram que as soluções estão ao alcance das autoridades.

           Para a OEA, a sociedade brasileira é a que construiu a união mais abrangente de origens e culturas. Mas demonstra que, nem por isso, essa combinação é harmônica e igualitária, pois “os trabalhadores brancos ganham 2,5 vezes mais que os negros”.

           Quanto à violência policial, a conclusão é a seguinte: “Apesar das profundas transformações políticas por que passou o País desde o fim do regime militar, a Polícia Militar continua a seguir o modelo repressivo desse regime, motivo pelo qual os membros dessas polícias orientam-se em sentido de atuar de maneira violenta, a fim de prevenir ou aniquilar possíveis movimentos então considerados subversivos”.

           Às vésperas do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, quando o Plenário do Senado Federal promove sessão de homenagem ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, tivemos a infeliz notícia da chacina, ocorrida em meu Estado, Rio de Janeiro, contra moradores de rua, mortos a tiros. Quatro anos e meio depois da chacina de oito menores na Candelária, ocorrida em 23 de julho de 1993, no centro do Rio de Janeiro, a história se repete. Dessa vez, as vítimas foram quatro pessoas, fuziladas de madrugada enquanto dormiam sob uma marquise. Testemunhas contam que os tiros foram dados por dois homens que chegaram num monza vermelho, de placa não anotada.

           Os tiros acordaram meninos de rua que dormiam no local. Disseram ter escapado da morte porque a arma do bandido “engasgou” na hora de atirar: “Eu vi a morte de perto, mas a sorte estava do meu lado”. Outros ouviram os bandidos gritando para ninguém correr e ficaram deitados, fingindo-se de mortos, tal como os que conseguiram escapar do massacre ocorrido na Candelária.

           As versões para a tragédia: rixa de traficantes e ordens de comerciantes da área, incomodados com os assaltos. Seja o que for, outras pessoas inocentes são vítimas da violência e, neste dia 10 de dezembro, são a imagem e o símbolo da violação dos direitos humanos em nosso País.

           Iguais a essa, outras se sucederam: o massacre da Candelária, como eu já disse; e a chacina de Vigário Geral, quando homens encapuzados executaram 21 moradores daquela favela em 30 de julho de 1993.

           Tanto tempo depois, ocorre um crime igual ao da Candelária. Pergunto: vamos apelar para quem? Este é um País que viola os direitos humanos.

           A sessão desta tarde, em que o Senado Federal reflete sobre os direitos humanos, é oportuna para reafirmar nossa convicção: a proteção e a defesa dos direitos humanos devem ser a diretriz fundamental de toda política pública. A nada se pode subordinar esses princípios. Ao comemorarmos mais um aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, não podemos permitir que a realidade de sua freqüente violação nos conduza ao esmorecimento. Ao contrário, reforcemos nossa compreensão de que o denominador comum a todas as violações dos direitos humanos são as contradições que opõem, entre si, Estados nacionais, classes sociais, grupos e indivíduos. E que, portanto, a garantia dos direitos do homem passa pela superação dessas contradições, mediante a afirmação, cada vez mais vigorosa, do princípio dos postulados da Declaração: o princípio da igualdade entre todos os homens e mulheres.

           Frente à violência representada pelo descaso no atendimento à população nas questões de saúde, educação, segurança, habitação, acesso à terra e tantos outros itens mencionados na Declaração dos Direitos Humanos, vamos responder com a união daqueles que têm no respeito à dignidade da pessoa humana o princípio norteador básico de sua ação política e sua participação cidadã.

           Gostaríamos tanto de, neste dia, falar de forma diferente, mas a violação dos direitos humanos no Brasil continua: há discriminação de raça e gênero. Já dissemos várias vezes que encontramos mulheres sendo violentadas, sendo espancadas; a violência doméstica existe; o rendimento das mulheres consideradas pelo IBGE como "pretas e pardas" é menor. Isso é uma violência aos direitos humanos. Há também uma constatação feita pela OEA da existência de discriminação racial. Essa violência tem dado conta de que as mulheres são as mais agredidas neste País, seja no ambiente doméstico, domiciliar, seja fora, nas relações de trabalho. Sabemos que existem essas violências no cotidiano e convivemos naturalmente com elas. São os direitos humanos das mulheres sendo violentados.

           Também estamos violentando os direitos humanos de nossas crianças e adolescentes, quando sabemos que cerca de 3 milhões de crianças e 4,6 milhões de adolescentes estão no mercado de trabalho, sem qualquer garantia ou proteção da legislação trabalhista. Trabalham muito, alguns ganham pouco e outros nada ganham. Estamos assistindo a essa situação, em que não há, nos direitos humanos, o respaldo necessário. Pode haver nas letras frias da Carta de Intenções do Brasil, mas não há ações afirmativas para que os direitos humanos da criança e do adolescente sejam garantidos. Isso verdadeiramente não está sendo aplicado, pelo menos no que se refere a acabar com o trabalho infantil neste País.

           Estamos também violando os direitos humanos quando aceitamos a exploração sexual e a prostituição infanto-juvenil em nosso País. Aceitamos naturalmente que as crianças e adolescentes se prostituam, sejam vendidos como animais, como objetos e, muitas vezes, pelo preço de um almoço ou de um lanche. Essa também é uma violação dos direitos humanos. Não é apenas um sentimento ou um discurso emocionado ou emocional, mas é uma verificação de dados estatísticos. E esses números são cada vez mais acrescidos pela indiferença de quem pode perfeitamente radicalizar no processo de políticas públicas voltadas para a criança e o adolescente.

           Infelizmente, a face desta dramática realidade já não atinge apenas a criança pobre, já se verifica uma repercussão na classe média.

           O Brasil violenta os direitos humanos de quase 50 milhões de clandestinos, porque são 50 milhões de brasileiros que não possuem o registro de nascimento e, por isso, não têm existência legal. Convivemos com essa situação em que pese recentemente termos aqui votado um projeto polêmico que propiciará a essas pessoas que se registrem de forma gratuita.

           Com o salário mínimo brasileiro, estamos violentando os direitos humanos; com a política econômica do Governo, estamos violentando os direitos humanos; a situação dos presidiários no nosso País, que não conseguem se recuperar porque não há uma política para mudança e reformulação do sistema penitenciário também é uma violação dos direitos humanos.

           O UNICEF, em seu informe “Progresso das Nações - 1997”, comparou o Brasil a Bangladesh, quando afirmou que as condições de saneamento básico no Brasil são quase tão precárias quanto as de Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo. Alertou ainda que existe o risco de eclosão de epidemias de cólera ou diarréia de enormes proporções. Esse alerta eu já havia feito desta tribuna.

           Assim, hoje, no Dia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao invés de estarmos aqui contando as iniciativas governamentais ou da sociedade civil, estamos, lamentavelmente, fazendo o registro de uma situação dessa natureza.

           Enquanto persistir esse modelo econômico, que é injusto, enquanto não existir o trabalho como prioridade, não haverá direitos humanos. Vivemos uma situação de desemprego e demissões e precisamos de uma política de inclusão dos excluídos, como está tratando hoje a II Conferência de Assistência Social no Brasil. E como fazer se não nos dermos as mãos, Governo Federal, Estadual e Municipal, Congresso Nacional e sociedade civil, para que possamos acabar com todas essas mazelas?.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, concluo fazendo mais uma vez um apelo no sentido de que possamos criar a Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, proposta já acatada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

           Vamos tratar com igualdade os diferentes.

           Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/12/1997 - Página 27680