Discurso no Senado Federal

ANALISE DA VIGENCIA DO NOVO CODIGO NACIONAL DE TRANSITO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CODIGO DE TRANSITO BRASILEIRO.:
  • ANALISE DA VIGENCIA DO NOVO CODIGO NACIONAL DE TRANSITO.
Publicação
Publicação no DSF de 27/01/1998 - Página 1301
Assunto
Outros > CODIGO DE TRANSITO BRASILEIRO.
Indexação
  • ANALISE, PARTICIPAÇÃO, IMPRENSA, MEIOS DE COMUNICAÇÃO, DIVULGAÇÃO, LEGISLAÇÃO, CODIGO NACIONAL DE TRANSITO.
  • ANALISE, CRITICA, INCOERENCIA, EMPRESA JORNALISTICA, DIVULGAÇÃO, NORMAS, DISCIPLINAMENTO, TRANSITO, SIMULTANEIDADE, OMISSÃO, IDEOLOGIA, PROPAGANDA COMERCIAL, INDUSTRIA AUTOMOTIVA, INCENTIVO, VELOCIDADE, FALTA, SEGURANÇA, AUTOMOVEL, FABRICAÇÃO, INDUSTRIA AUTOMOBILISTICA.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, com a visita do Papa a Cuba, com os problemas erótico-institucionais enfrentados pelo Presidente Clinton, o assunto do novo Código de Trânsito dominou o noticiário desse fim de semana em toda a imprensa brasileira.

Um setor da opinião pública tem idéia de que uma lei, tão logo seja votada, de imediato tem de ser do conhecimento das pessoas. Assim jamais foi. Por outro lado, há um dispositivo na Constituição que determina a obrigatoriedade do conhecimento da lei. Em outras palavras, o desconhecimento da lei não implica no seu não cumprimento. Alguns chegaram até a atribuir ao Congresso o dever de explicar ao País a lei.

Isso mostra, portanto, um aspecto muito interessante da contemporaneidade. Primeiro, o de que as leis são cada vez mais complexas, porque a sociedade é cada vez mais complexa. A Lei de Trânsito tem 340 artigos, se não me engano. A Lei de Doação Presumida de Órgãos é uma lei de alta complexidade. Logo, nenhuma dessas leis pode, de imediato, ter absorção pelo conjunto da população. Não é de se esperar que isso seja possível.

Nessa hora, quem assim pensa ou assim pede esquece-se de que a lei tem um caráter dialético, ou seja, dinâmico. Ela penetra na sociedade como a chuva penetra na terra e. gradativamente, ali se dá um procedimento de natureza biológica. Assim é a lei. Ela penetra gradativamente na sociedade, e esse fato dá azo a que muitas pessoas no Brasil -- como vimos à saciedade nos órgãos de comunicação e como ficou demonstrado em muitas entrevistas -- creiam que não têm compromissos com a lei. Não têm compromissos com a lei, porque não a conhecem, ou porque ela não foi divulgada devidamente, ou porque há outros males na sociedade que acabam por justificar o descumprimento da lei.

Esse é um hábito brasileiro, inculcado pela dificuldade - que é latina talvez - da compreensão de que os direitos e os deveres são pessoais, e que nada têm a ver com a importância da pessoa em questão.

Nisso gostaria de destacar um aspecto para análise. Aliás, tenho sempre muito mais a preocupação de analisar os fatos do que de opinar sobre eles. Talvez por isso eu seja um político coadjuvante e não um político de primeira linha, já que a política de primeira linha parece exigir mais opinião do que análise.

Gostaria de analisar um aspecto muito interessante da contemporaneidade. Creio que os instrumentos da democracia participativa hoje crescem ao lado dos instrumentos da democracia representativa. Nós somos a democracia representativa. Escolhidos pelo povo, representamos partidos e aqui estamos a votar matérias de importância nacional. 

Paralelamente à força do Congresso, que já não é a mesma, surgem - por isso mesmo - na sociedade instituições que vão correr paralelas às instituições da democracia representativa, buscando a participação da população. Um exemplo são os meios de comunicação. Louvo o trabalho dos meios de comunicação com relação ao Código de Trânsito nesses últimos dias. Ali estava um exemplo de como a democracia participativa, que julga e mobiliza a população, pode, numa sociedade aberta, equilibrar-se com a democracia representativa, que discute e vota.

Países como a Suíça resolvem facilmente esse problema por meio de referendos, que não são tão fáceis de fazer no Brasil. É um instituto muito interessante: o Parlamento vota leis de maior complexidade, que vão imediatamente ao referendo popular; se aprovadas, entram em vigor; se não, voltam ao Parlamento. Isso ocorre na Suíça, que é dividida em três “suíças” ou em cantões e onde a autoridade regional possui muita força.

Temos uma forma inortodoxa, que vem por intermédio dos mecanismos de participação da sociedade: a sociedade organizada, os sindicatos, as comunidades organizadas, as igrejas e a chamada mídia, isto é, a imprensa. Cada vez mais, cresce a força da democracia participativa - sempre que for democrática, porque, às vezes, ela é autoritária também. E, cada vez mais, a democracia representativa é tão importante, talvez até por não se adequar às necessidades de modernização e da compreensão de que a sociedade é hoje muito mais complexa.

No parlamento do passado, estavam a decisão e o comando da opinião pública. Nos partidos políticos do passado, estavam a decisão, o comando da opinião pública de natureza crítica e uma grande massa fora do processo. Na contemporaneidade, o parlamento não detém mais exclusivamente o poder de formar a opinião pública: ele é disputado com os meios de comunicação. Como os instrumentos do parlamento são menores, ele evidentemente perde. O parlamento não faz mais opinião pública. Quem a faz é a mídia.

Nesse caso do trânsito, tivemos uma rara colaboração, que, a meu ver, deveria ser muito maior. O Parlamento não é necessariamente o grande inimigo do País; ao contrário: a democracia representativa não é necessariamente algo vencido. Ela pode estar retardada em alguns de seus processos, ser demorada, ter os vícios da própria representação oriundos do problema eleitoral brasileiro, das dificuldades do País, dos poucos anos de democracia ou da fraqueza partidária. É verdade, mas, quanto mais a democracia representativa e a participativa juntarem-se, melhor a sociedade vive e vibra.

Houve um exemplo que quero destacar. O Congresso Nacional votou e dias maciços de bombardeio da matéria nos meios de comunicação criaram na população uma consciência. Não o tivessem feito os meios de comunicação, e essa lei estaria placidamente em uma espécie de paz tumular, a paz dos cemitérios, esperando o tempo de entrar em vigor.

O SR. PRESIDENTE (Geraldo Melo) - Senador Artur da Távola, desculpe-me interrompê-lo, mas o faço somente para prorrogar a Hora do Expediente pelo tempo necessário para que V. Exª possa concluir e possamos passar às comunicações inadiáveis que alguns Srs. Senadores desejam fazer.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Faço agora a análise de um aspecto ideológico de toda essa questão.

Em todo o material humano, a questão ideológica é presente, queiramos ou não. Até quem diz que é avesso à política está a fazer política porque, pelo menos, está a concordar com o status quo, o que significa uma posição ideológica. Ninguém pensa fora da ideologia. Num certo sentido, até a ideologia nos pensa, porque a ideologia modela os padrões de organização de uma sociedade dentro dos quais são feitas as bases do pensamento, do raciocínio, desde a escola. Reparemos que uma das grandes questões do Papa com Cuba é a educacional.

No caso do Código Nacional de Trânsito, ao mesmo tempo em que tudo isso foi muito bem ventilado e discutido, grande parte dos segmentos que trataram da matéria, de certa forma, ocultam um aspecto ideológico do tema. É muito interessante.

Vejamos esse aspecto ideológico. Primeiro, em nenhum momento em que apareceram todas as mazelas e as dificuldades de comportamento da população em relação ao uso do automóvel, apareceu, por exemplo, uma palavra, sequer - e eu a levanto neste momento -, sobre a natureza da propaganda feita pela indústria automobilística. A glorificação da velocidade é acompanhada por espetáculos de hiper-realismo no campo do esporte, seja nas competições de Fórmula Um, que criam heróis de um esporte - que esporte não é, pois não tem a medida humana, a não ser como subsidiária -, seja naquelas enlouquecidas corridas de motocicleta, uma da maiores barbaridades contemporâneas. Com enorme habilidade, as empresas automobilísticas passam à população essa confusão terrível e hábil - hábil, porque é bem passada para a população, infelizmente, mas terrível -, que é a confusão do conceito de liberdade com o conceito de velocidade. Quantas vezes vimos na propaganda de automóveis ou de motocicletas o alarde do sentimento de liberdade de quem tripula, onipotente, um bólide carregado de velocidade. Quantas? Quantas vezes vimos, na propaganda de automóveis, a velocidade, a frenagem brusca, como o elemento formidável de afirmação das qualidades do veículo?

E mais. O cinto de segurança é um exemplo muito interessante. É evidente que o cinto de segurança é importante e é um grande fator para impedir acidentes graves com o motorista. Mas, num certo sentido, o cinto de segurança representa uma grande vitória da indústria automobilística sobre o cidadão, porque o cinto de segurança transportou o problema da segurança do automóvel para o usuário: “Ele estava sem cinto de segurança”. Claro que o cinto de segurança é útil, mas nele se concentra a idéia de segurança do veículo. E a indústria automobilística, principalmente a brasileira, não cumpre, nem de longe, normas de segurança nos veículos tal e qual obrigatórias em outros países.

Em relação a esse ponto, vejam como, quando se trata de um aspecto ideológico da questão ou de um aspecto que fere os interesses dominantes, o silêncio predomina, e exatamente um outro elemento de consciência que era necessário à população fica calado. Esse é o aspecto negativo dentro do aspecto positivo da democracia participativa via mídia. Os jornalistas destacam o problema, mas as empresas não tocam nele porque têm nas empresas automobilísticas seus maiores anunciantes. E tudo que as empresas automobilísticas determinam acaba por ser, digamos assim, não passado para a população, mas oculto da população. É quando a comunicação serve não propriamente para esclarecer, mas para ocultar.

Um outro aspecto, a meu ver, interessante da natureza ideológica desse problema está também no fato de que a indústria automobilística é a maior beneficiária de um esforço do País que está além daquilo que o País já lhe dá e já lhe deu no passado para que ela se implantasse. Não nego as virtudes puramente econômicas, puramente produtivas da presença crescente da indústria automobilística no mundo, mas verdade é que, ao lado dos financiamentos por ela recebidos ao longo dos anos, o povo, quando paga o imposto, está financiando também aquilo que lhe dá base - financia estrada, viaduto, ponte. Na medida em que o automóvel “estupra” as cidades, quando é erigido como instrumento de transporte dominante, ele obriga o poder público à criação de viadutos, ruas etc., que são feitos com os impostos pagos pela população. E vai aí um outro aspecto oculto da questão, de natureza ideológica, que compele o povo a servir aos desígnios da indústria automobilística.

           É lógico que há uma série de vantagens na área econômica, não o nego; entretanto, é lógico também - essa é uma questão política - que, há cerca de 40 anos, o País desistiu - essa matéria é diariamente tratada por políticos, por pessoas da área de produção - da abertura do transporte de massas nas grandes cidades e da ferrovia como o grande e mais barato meio de escoamento da produção, a fim de investir no automóvel, no caminhão. Hoje, o resultado são estradas arrebentadas, filas enormes de caminhões, consumo brutal de petróleo.

           Nada disso é trazido à baila no momento em que uma lei como essa passa a viger. Sua entrada em vigor mostra como é profunda e importante a ação de um Parlamento, pois foi a partir de uma complexa votação como a dessa matéria que a sociedade se viu, de repente, diante de um quadro aterrador, de natureza patológica, doentia, sem condições de enfrentá-lo. Por quê? Porque a vitória da indústria automobilística sobre a inteligência humana é total. No mundo inteiro, o automóvel talvez seja o ícone de consumo mais desejado do século XX por todos nós, em torno do qual montam-se estruturas de mitificação as mais gloriosas: grandes pilotos, homens que arriscam a vida. Na Fórmula 1, inclusive, a indústria automobilística leva para milhões a idéia de que coragem é enfrentar a morte, sem nem de longe aludir à idéia tão mais profunda de que coragem deve existir para enfrentar a vida, pois essa é feita de dificuldades, de penares, de luta diária, de construção permanente.

           Essas considerações, Sr. Presidente, existem na medida em que esse tema, por entrar na sociedade com tanto vigor, estimula - como muito bem o fez os meios de comunicação - a tornar clara para a população a idéia do respeito alheio. Os meios de comunicação desta vez, com um ou outro equívoco em uma ou outra entrevista, trabalharam muito bem, levando essa matéria à população. E, ao mesmo tempo, devem levar-nos, por isso mesmo, a reflexões desta ordem, que são de natureza ideológica, doutrinária. O País, como vários outros, abandonou a ferrovia, o sistema hidroviário e erigiu o sistema rodoviário como a grande saída para os seus problemas. Ele aí está a provocar tantas dificuldades.

           Todas as vezes em que qualquer povo ou sociedade utiliza uma tecnologia que por ele ou por ela não foi criada, esse uso é de natureza predatória. A tecnologia do automóvel não foi criada pela nossa sociedade; ela nos veio importada, e hoje a temos como qualquer outra. O automóvel entrou tão célere na sociedade, que seu uso passou a ser muito mais predatório do que equilibrado.

           Ao mesmo tempo, como não vivemos em um país em que os direitos da cidadania são superiores aos das organizações coletivas, das grandes instituições e corporações, cada pessoa, ao tripular um automóvel, considera-se portadora do poder e, como tal, digna de todas as vantagens e direitos. Eis outra questão ideológica importante: a classe dominante nunca se julga presa aos deveres da lei, pois considera seu o país; portanto, tudo aquilo que ela lhe fornece significa a sua superioridade. O automóvel é o símbolo de status que essa classe determinou na sociedade. Um tema como esse, Sr. Presidente, abre-nos inúmeras perspectivas de reflexão.

Era o que pretendia trazer a esta Casa, na tarde de hoje. Agradeço a atenção de V. Exª e das Srªs. e Srs. Senadores.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/01/1998 - Página 1301