Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM A MEMORIA DO CANTOR SILVIO CALDAS, FALECIDO ONTEM, NO MUNICIPIO PAULISTA DE ATIBAIA.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM A MEMORIA DO CANTOR SILVIO CALDAS, FALECIDO ONTEM, NO MUNICIPIO PAULISTA DE ATIBAIA.
Publicação
Publicação no DSF de 05/02/1998 - Página 2337
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, SILVIO CALDAS, MUSICO, CANTOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Para uma comunicação inadiável. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, é profundamente importante e inadiável uma palavra dos setores da cultura brasileira sobre a morte de Sílvio Caldas. Inclusive, há um requerimento à Mesa solicitando o voto de pesar, razão pela qual a Casa se pronunciará.

O SR. PRESIDENTE (Antonio Carlos Magalhães) - Já foi votado o requerimento. E seria inadiável se pudéssemos salvar a vida do grande cantor Silvio Caldas.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Não, Presidente. O destino segue seu caminho inexorável, e nos cabe render o preito às memórias que assim o merecem. Pode parecer estranho que o Senado Federal, diante de tantos e magnos problemas como os que aqui se votam e se discutem, tome uma parte do tempo para saudar - não em forma de homenagem - a vida de um homem como Sílvio Caldas. Porém, Sr. Presidente, modestamente, penso que cultura é bem de primeira necessidade. E sei que é o de V. Exª também. Veja-se o que fez V. Exª na Bahia, até hoje uma obra propriamente imorredoura.

Por que a cultura popular, em geral, é sempre posta de lado nas manifestações? É uma dúvida que tenho, razão pela qual prefiro dirigir uma sentida palavra a este Senado, brevemente, nos cinco minutos regimentais, sobre o que representaram os 60 anos de vida artística de Sílvio Caldas.

Em primeiro lugar, Sílvio Caldas representa, a meu modesto juízo, a exata interseção entre a música branca do Brasil e a música negra do Brasil. A música branca do Brasil vem do século XVII, XVIII, pela modinha brasileira, que teve outras acepções, o lundu; mas como modinha pode ser caracterizada. Inclusive, os estudiosos debatem se a modinha é uma criação do Brasil ou uma criação de Portugal. Não importa esse debate, importa dizer que essa forma de canção provinda dos setores de elite desde a Colônia até a República encontrou também vetores populares. Tanto temos a modinha clássica, romântica, a cantar permanentemente o amor não-correspondido - lembro a V. Exª, inclusive, que Castro Alves é autor de letras de modinhas ou tem versos transformados em modinhas brasileiras no século XVIII - como temos a modinha humorística popular de Xisto Baía e tantos outros que trazem esse gênero branco da música brasileira, intimamente relacionado com o teor literário de alguns de nossos principais poetas. Entrementes, recordo, além de Castro Alves, Manuel Bandeira, autor de uma modinha famosa com Jaime Ovalle; Vinícius de Moraes, em parceria com Tom Jobim; Chico Buarque de Hollanda; Olegário Mariano; Joubert de Carvalho e Adeumar Tavares, o grande trovista brasileiro. A modinha, portanto, é um gênero de música branca e urbana que, em determinado momento de evolução, encontra-se com o ritmo negro, formidável e maravilhoso.

E há no Brasil uma fusão muito interessante que pode ser comparada, por antagonismo, ao que aconteceu nos Estados Unidos. Com um grau de discriminação maior nos Estados Unidos do que no Brasil, o jazz negro norte-americano - a mais forte e poderosa manifestação de música popular daquele país - funciona em guetos isolados, só posteriormente ganhando a opinião pública média e geral daquele povo. Alguns cantores de jazz, como Billie Epstein, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e instrumentista como Louis Armstrong eram atacados pelos próprios negros norte-americanos, na medida em que começavam a ser aceitos e cantados por essa sociedade branca e discriminatória no grau da sociedade norte-americana.

No Brasil, deu-se uma fusão de natureza diferente. Não que não houvesse preconceitos e formas de discriminação no todo da sociedade. Em determinado momento - talvez nos anos 20 ou nos anos 30 -, houve uma fusão formidável da música de origem negra com a velha modinha, de formação branca e das elites dominantes, conservadoras, deste País. Essa fusão se deu com o ritmo chamado samba, que nada mais é do que uma incorporação de todo o lirismo da corrente proveniente da modinha mais todo o vigor, o ritmo, toda a pujança, a força, toda a nostalgia e toda a carga de amarguras e, ao mesmo tempo, de ironias. Isso ocorreu com o jazz do músico negro brasileiro, que mantém as suas bases rítmicas, fundindo-as com a modinha, de origem branca.

Por uma questão de idade, Sílvio Caldas vive exatamente nesse período. Nasceu em 1908, no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão, um bairro profundamente carioca, no sentido do espírito carioca, se podemos assim dizer. Por volta dos anos 20, começou sua carreira; em torno dos anos 30, apareceu em grande destaque, como um representante dessa fusão.

Ora, direis: “Abominável Senador Tavola, o que tem isso a ver com a política?” Tem, e muito. Em primeiro lugar, porque ali estava, muitas vezes, o canto dos oprimidos. Eu nem diria muitas vezes; diria quase sempre. Ali está um fenômeno da cultura brasileira, do Rio de Janeiro, de alto significado. A cultura popular dominante no Brasil, e no Rio de Janeiro em particular, não é a cultura proveniente das elites. Curiosamente, as elites brasileiras, voltadas para a cultura francesa, a esse tempo, para a cultura européia, deixaram de formar uma cultura própria. Tinham apenas a herança, no caso musical, que vinha da modinha - lembro Villa-Lobos, entre outros nomes que esqueci de citar antes. As elites brasileiras, por falta de uma cultura própria e peculiar a elas, somaram-se à cultura popular, que incorporaram.

Hoje, o fenômeno das escolas de samba é dominante no Carnaval do Rio de Janeiro a provar que a cultura do povo, na sua autenticidade, possui um caráter intuitivo, um caráter de alcance e um aspecto genuíno que lhe dá substância, a substância que fez com que as classes dominantes no Brasil, hoje, consumam muito mais a cultura popular, oriunda do povo, do que uma cultura própria dessas mesmas elites.

Lembro que Sílvio Caldas foi cantor, compositor, homem de cinema, homem de teatro, da comédia musical, além de ser uma pessoa encantadora - e posso dizer porque o conheci -, causeur, cozinheiro de comidas brasileiras, uma pessoa de muita alegria, com uma memória prodigiosa e uma carreira que cumpre 60 anos de atividade na vida brasileira a cantar o Brasil.

Sr. Presidente, não fosse tudo isso, eu não ocuparia o tempo dos Srs. Senadores com esta breve lamentação pela partida de uma figura do valor de Sílvio Caldas. E também não fosse nada disso, bastaria que ficassem, como ficaram, no lugar comum da sensibilidade brasileira, os versos de Orestes Barbosa na melodia de Sílvio Caldas, no “Chão de Estrelas”, considerados hoje por muitos algum dos momentos mais elevados da lírica nacional:

“A porta do barraco era sem trinco

mas a lua furando nosso zinco

salpicava de estrelas nosso chão.

Tu, tu pisavas os astros distraído

sem saber que aventura desta vida

é a cabrocha, o luar e o violão.”

Se essa beleza poética não é política, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, eu não sei o que é política.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/02/1998 - Página 2337