Discurso no Senado Federal

REFLEXÃO SOBRE A PROPOSTA DO PMDB EM APRESENTAR O SEU PROPRIO CANDIDATO A PRESIDENCIA DA REPUBLICA.

Autor
José Fogaça (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
Nome completo: José Alberto Fogaça de Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA PARTIDARIA.:
  • REFLEXÃO SOBRE A PROPOSTA DO PMDB EM APRESENTAR O SEU PROPRIO CANDIDATO A PRESIDENCIA DA REPUBLICA.
Publicação
Publicação no DSF de 10/02/1998 - Página 2569
Assunto
Outros > POLITICA PARTIDARIA.
Indexação
  • COMENTARIO, CONTRADIÇÃO, ETICA, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DO MOVIMENTO DEMOCRATICO BRASILEIRO (PMDB), INDICAÇÃO, CANDIDATO, DISPUTA, CARGO ELETIVO, PRESIDENCIA DA REPUBLICA.

O SR. JOSÉ FOGAÇA (PMDB-RS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, antes de assomar a esta tribuna fazia uma reflexão e me recordava de uma figura arquétipica da obra do poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: a figura grotesca de Ricardo III.

Ricardo III é uma das tragédias mais brilhantes de Shakespeare em razão da conformação de uma personalidade doentia e contraditória, na qual se expressa o elogio da morte e a exaltação da traição. Ricardo III mandou matar o seu irmão, mandou enforcar o Primeiro-Ministro, Lord Hastings, e pediu que aniquilassem os seus sobrinhos, porque tinha medo de que os descendentes do Rei Edward lhe tomassem de volta o trono. Como disse, é o elogio da morte e da traição.

Talvez a figura emblemática e trágica de Ricardo III -- e foi por isso que ela me veio à mente -- tenha muito a ver não com uma pessoa da nossa época nem com determinado cidadão ou representante político, mas lembro-me da figura de Ricardo III quando olho para o comportamento do meu Partido político: uma figura de corpo deformado, com uma mente horrenda, consumido pela doença da ambição, pela supressão absoluta de qualquer ética e pelo domínio irrefreável da busca do poder.

Faço essa reflexão, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, porque não consigo entender o comportamento esquizofrênico de um corpo político coletivo que é um partido político. Um partido político tem e precisa ter como característica fundamental história, povo e ideologia. Partido que não tem história não é partido; partido sem povo não é partido e partido sem unidade ideológica e política também não é partido.

O PMDB tem história, o PMDB tem povo, sim. Nos últimos vinte anos, nenhum outro partido brasileiro, sequer de longe, alcançou a base popular de apoio político que o PMDB logrou obter. Mas, neste momento, Sr. Presidente, este Partido parece-me um emaranhado de contradições, de idéias disformes e, no dizer de um crítico literário ao citar Ricardo III, um corpo deformado numa mente horrenda, dominado pela falta de ética e pelo excesso de ambição.

Não me refiro a nenhuma pessoa entre nós, membros deste Partido, mas ao corpo coletivo que ele representa. Não fora isso, Sr. Presidente, como entender que um Partido político permaneça três anos e meio integrando um Governo, dele participando, para ele contribuindo e dele usufruindo, ocupando posições desde as mais elevadas até as mais subalternas e tendo o privilégio de se ver representado em dois Ministérios dos mais importantes - o mais importante Ministério político, que é o da Justiça e, talvez, um dos mais importantes ministérios da área de infra-estrutura e investimentos que é o Ministério dos Transportes?

Se algum extraterrestre chegasse hoje à Terra, iria pensar que esse Partido não esteve no Brasil nos últimos três anos, porque aparentemente é um Partido que vive uma dúvida, uma contradição, uma esquizofrenia íntima, que é a de não se adaptar, a de não se incorporar ao sistema dentro do qual já se encontra. Este Partido político vive a tensão e a divergência interna da campanha político-eleitoral de 1998, com a questão que faz a si mesmo sobre ter ou não ter candidato à Presidência da República. Creio que é este o momento de agir diferentemente de Ricardo III; é o momento de agir, talvez, como Quasímodo, que tinha o corpo deformado, mas a mente e o espírito límpidos, como mostrou a imaginação genial de Victor Hugo trezentos anos depois de Shakespeare.

Um partido pode ter contradições, o que ele não pode é suprimir a ética. E a ética também gera compromissos e obrigações de caráter coletivo. Comportamentos coletivos geram compromissos coletivos. Trata-se aqui da ética das conseqüências.

Suponhamos, Sr. Presidente, Srs. Senadores, que um grupo de pessoas, e cada um quer ter razão na esfera em que se encontra, não estou me eximindo dessas contradições, dessa esquizofrenia, que entende que o PMDB deve ter um candidato - para combater de maneira contundente, feroz, crucial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso - se sair vencedor esse grupo ou esse pensamento, como é que o Partido vai se apresentar para a opinião pública diante da seguinte pergunta: Mas então o PMDB levou três longos anos e mais seis meses no Governo para descobrir, na véspera do último dia antes de uma convenção, que vai definir o candidato? Na véspera apropriada e precisa, o Partido descobre que não gosta do Presidente da República, que não gosta da sua política, que não gosta do seu programa econômico, que não gosta do seu Governo, que não gosta do que fazem os seus Ministros. É esquizofrênico, Sr. Presidente. É profundamente paradoxal.

Quando o ex-Governador Ciro Gomes resolveu - e tem todo o direito de fazê-lo - pensar no projeto de ser Presidente da República, não quis subordinar a coletividade em que vivia aos seus interesses, ao seu projeto pessoal. Pois seria absolutamente esquizofrênico, também, se o Ciro Gomes resolvesse convencer o PSDB de que deveria apoiá-lo para Presidente da República. Ele viu que o caminho era integrar-se a um novo quadro, a um novo corpo político íntegro, coerente, com caminho definido. E por isso, embora discorde do ex-Governador Ciro Gomes quanto ao seu comportamento no processo político de hoje, eu o respeito porque vem divergindo pessoalmente há muito tempo, não quis inverter a lógica do grupo no qual se encontrava e buscou um outro corpo político que tivesse absoluta inteireza ética, absoluta coerência moral. E dentro desse novo projeto, seja ele pequeno partido, seja grande partido, seja um projeto arriscado ou não, seja ele difícil ou não, quero dizer que merece respeito o Dr. Ciro Gomes. Partiu para uma empreitada de coragem, de firmeza, ao meu ver de integridade e de coerência.

Agora, Sr. Presidente, um partido político fica três anos e meio dentro de um Governo, usufruindo dos cargos e Ministérios, e na véspera do último dia descobre que não era nada daquilo que queria e, muito oportunamente, consegue retirar da escuridão, enfim, a certeza que ele mantinha até então escondida de que só ele tem a salvação definitiva para o País. O Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, estando ele certo ou errado, vem sendo coerente com os seus projetos políticos. Desde o início do Governo, está claro o que é a base do programa econômico e do pensamento político, qual é o eixo moral que conduz o Governo Fernando Henrique. De lá para cá progrediu nessa linha mas não mudou. Portanto, não há surpresas, não há fatos novos, não há situações inesperadas, não há desvios de conduta. Estando Sua Excelência correto para uns e errado para outros, uma coisa é certa, o Presidente da República tem uma linha que traçou no início de seu Governo e vem, dentro das possibilidades, avançando nessa linha. O PMDB, durante três anos e meio, durante mais de mil dias, acreditou que isso era muito bom, mas, no milésimo primeiro dia, justamente no momento preciso da véspera da eleição, conseguiu descobrir que não era nada disso que lhe interessava e vai-se apresentar à população com uma posição divergente, contrária, contundentemente oposicionista.

Ora, Sr. Presidente, Srs. Senadores, não posso deixar de fazer essa reflexão porque sou parte disso. Trata-se de uma autocrítica. Parece que, na verdade, estamos diante de uma situação na qual o espírito se desintegra. O projeto político não é apenas o de se construir um país novo, mas é, isto sim, o de ocupar a cabeça primacial do poder. Só que, talvez diferentemente de Shakespeare, isso não seja um elogio da traição, mas a paródia da traição. Não creio que possamos, neste momento e nesta hora, como partido político, como corpo coletivo, como uma espécie de personalidade jurídica orgânica, fugir do rumo, da rota que nós nos traçamos. Porque se não o tivéssemos feito, teríamos a obrigação de já ter deixado este Governo há muito tempo, e deveríamos fazê-lo conjunta e integramente, ou seja, todos ao mesmo tempo abandonando o Governo; e aqueles que não abandonassem o Governo deixariam o partido, ou o inverso, aqueles que não aceitassem o apoio ao Governo deveriam lutar para mudar isso, mas não na véspera da eleição. Infelizmente, o prazo moral para tomada dessa decisão já venceu. O período eticamente aceitável para se autoflagrar, para se autodescobrir como um oposicionista desde criancinha já passou, já venceu, já se esgotou para o PMDB.

Sr. Presidente, não tem como essa decisão não ficar tisnada pela marca da esquizofrenia e da ambição contraditória, por essa mancha shakespeariana da traição, pela busca pura e simples do poder. Ou será que o PMDB terá, para apresentar ao povo brasileiro, ao longo dos seis meses de campanha, um projeto político-econômico crucial, essencial e profundamente contrário, divergente do que está hoje em andamento no País, mantido pelo atual Governo? Mas se o PMDB tem esse projeto, como explicar a sua adequação, o seu acostamento nas espaldas deste Governo que aí está durante tantos anos? Se ele tem um discurso, um projeto que é de oposição, ele tem todo o direito de ser um partido de oposição e tem todo o direito de apresentar-se como partido de oposição numa eleição como esta que vem aí. O que nenhuma pessoa de sã consciência, de pensamento sadio poderá aceitar, Sr. Presidente, é que ele, em tendo esse projeto, só o descobriu agora na véspera. Não há quem consiga entender. Sei que alguns candidatos vão imaginar que isso lhes diz respeito. Não, Sr. Presidente.

Creio que todo e qualquer político tem o direito de construir o seu projeto pessoal. O que não consigo entender é como um projeto coletivo tem que se subordinar a um projeto pessoal. Porque o que tem que acontecer é o contrário: todos os projetos pessoais têm que estar subordinados ao projeto coletivo. E daí vem a esquizofrenia. Não deste ou daquele, porque cada um, na sua individualidade, é coerente consigo mesmo. O resultado coletivo é que é esquizofrênico, doentio, shakespeariano. Digo isso de espírito aberto, digo isso de alma e coração, Sr. Presidente.

Passei, como tantos outros da minha geração, os melhores anos da nossa mocidade para construir este Partido, para fazer deste Partido um grão de areia da nossa contribuição: o que ele é, o que ele foi e possivelmente o que ele possa vir a ser. Digo isso com o espírito aberto, mas também derrubado, Sr. Presidente, de ver que o Partido que serviu de instrumento para a restauração da democracia no Brasil hoje tem uma face shakespeariana de Ricardo III.

Não quero que este Partido consagre perante a opinião pública brasileira a idéia de que todo embuste é válido em política, que toda farsa é aceitável, que toda mentira é válida, que toda traição é útil e necessária. Não, Sr. Presidente, não!

Às vezes, contra a própria vontade, membros de um partido político aceitam um projeto coletivo de boa-fé. Só que há prazos. Há uma coerência temporal que não pode ser escondida, que é a de que se havia alguma discordância profunda em ir contra o Presidente da República, essa discordância não pode ter sido descoberta agora, porque o Presidente não mudou. O Presidente não mudou! Se havia divergência, ela já tinha que ser marcada e já teria que produzir seus efeitos e suas conseqüências há muito tempo.

Sendo assim, Sr. Presidente, quero dizer que, como todo e qualquer peemedebista de boa-fé, vou participar da convenção de 8 de março, darei meu voto e minha contribuição. Sinto-me umbilicalmente ligado a este Partido não só pela história da minha vida, mas porque exerci a Presidência Nacional do PMDB por quase um ano. Sei que é difícil conduzir um corpo coletivo, uma comunidade orgânica, dotada de vontade política, que é um partido. Já tive essa experiência. Mas uma das coisas mais importantes que alguém pode aproveitar da vida política é esta: não há nenhum projeto pessoal que possa ser mais importante do que o projeto coletivo de um partido político. Essa lição eu a tive para mim e a aproveitei ao longo desses tantos anos em que exerço o mandato parlamentar; há vinte anos, Sr. Presidente, mais propriamente dito. E quero deixar bem claro que para mim, infelizmente, que não desejo que este corpo morra, que ainda aceito que ele possa ser deformado fisicamente, cheio de contradições, só não lhe admito um aleijão moral, uma contradição ética tão profunda e tão inaceitável como essa para um corpo coletivo.

E isso, Sr. Presidente, foi o que me trouxe à tribuna, nesta tarde.

Obrigado a V. Exª.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/02/1998 - Página 2569