Discurso no Senado Federal

REPUDIO AS ACUSAÇÕES A MEMORIA DO SINDICALISTA CHICO MENDES, FEITO PELA REVISTA VEJA, EM ENTREVISTA DO DELEGADO MAURICIO SPOSITO.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
IMPRENSA.:
  • REPUDIO AS ACUSAÇÕES A MEMORIA DO SINDICALISTA CHICO MENDES, FEITO PELA REVISTA VEJA, EM ENTREVISTA DO DELEGADO MAURICIO SPOSITO.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 12/02/1998 - Página 2873
Assunto
Outros > IMPRENSA.
Indexação
  • REPUDIO, DECLARAÇÃO, AUTORIA, MAURICIO SPOSITO, DELEGADO DE POLICIA, ENTREVISTA, PERIODICO, VEJA, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), ACUSAÇÃO, CHICO MENDES, ECOLOGISTA, COLABORAÇÃO, POLICIA FEDERAL.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT-AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, minhas senhoras e senhores, é com tristeza que venho a esta tribuna fazer algumas observações sobre uma acusação perversa contra a memória e a honra do ecologista e sindicalista Chico Mendes.

Conheci Chico Mendes em 1979, quando eu ainda era adolescente, num curso de lideranças políticas da CPT realizado na Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição. A partir daí, começamos uma longa jornada que só teve fim em 1988, mais precisamente no dia 22 de dezembro.

Vivi ao lado de Chico Mendes os seus dramas como pessoa, como político e como sindicalista e sei que as acusações publicadas na revista Veja não são verdadeiras.

Faço esse registro com tristeza porque, neste ano, no mundo todo e no Brasil, todos estamos trabalhando na homenagem que faremos à memória de Chico Mendes por sua luta em prol da Amazônia, pautando o Brasil nas grandes questões ambientais no plano internacional.

Nessa homenagem que está sendo chamada de “Dez anos sem Chico”, queremos fazer um balanço dos avanços conquistados e dos problemas que continuam sem resposta e que foram assinalados por Chico, embora fosse ele um trabalhador simples, um seringueiro.

Lamento o fato de que a memória e a honra do Chico tenham merecido esse tipo de matéria de uma revista importante como a Veja, que tem um grande número de leitores e que tem dado uma contribuição inquestionável à democracia e à informação neste País. Surpreende-me que a mesma revista que recentemente fez uma matéria longa sobre a Amazônia, abordando as dificuldades e os desafios que enfrentamos na região, agora publique apenas a versão do Delegado Maurício Sposito, segundo a qual Chico Mendes era um colaborador da Polícia Federal. Tendo conhecido Chico Mendes, tenho absoluta certeza de que essas acusações não são verdadeiras.

Estranha-me que essa acusação reapareça neste momento. Ela foi feita há dez anos, mais precisamente dezesseis dias antes do assassinato de Chico Mendes pelos meios de comunicação do Estado do Acre, e teve uma resposta dura do acusado. Aliás, até hoje, nós, que éramos amigos e companheiros do Chico Mendes, não entendemos porque o Delegado Maurício Sposito chamou-o de “seu colaborador”. Talvez isso tenha ocorrido porque Chico Mendes - um sindicalista -, juntamente com o Bispo Dom Moacyr Grechi, um advogado e membro da CPT - Comissão Pastoral da Terra, tenha sido o primeiro a entregar a carta precatória, vinda de Umuarama, que determinava a prisão de Darly e seu irmão.

Alegando que o documento estava aberto e que qualquer pedido dessa natureza tinha de estar em envelope selado, o Delegado disse que não podia tomar qualquer providência.

Quando o documento foi expedido pelo Juiz de Xapuri, os Alves já haviam fugido. Lamentavelmente, depois da fuga, ocorreu o assassinato de Chico Mendes. Isso porque Darly ficou com ódio ao saber que Chico Mendes havia feito a Justiça se movimentar para que a carta precatória com seu pedido de prisão chegasse até o Estado do Acre.

Chico Mendes, depois, foi acusado de ser colaborador; mas ele dava informações sobre aqueles que poderiam matá-lo. Entretanto, providências não foram tomadas.

Agora, ser chamado de colaborador, nos termos postos na entrevista, é aviltante à memória de Chico Mendes, é dizer que ele fazia isso em troca de gasolina ou de passagem de ônibus. Pelo amor de Deus!

Não vou ficar aqui lastimando, Sr. Presidente, porque a memória de Chico é maior que todas essas coisas. Ele foi morto, mas talvez existam aqueles não conformados com o fato de que a sua memória permaneça viva - só posso entender essas declarações como uma tentativa de assassinar também a memória de Chico Mendes.

Não sei qual foi o contexto dessa entrevista, não sou especialista em fazer estudos dessa natureza, mas estranho alguns de seus pontos. Na entrevista, é dito que Chico Mendes pediu um porte de arma à Polícia Federal - quando poderia tê-lo feito à Polícia Civil - por ser amigo ou por já conhecer o delegado Sposito. Essa acusação não procede! Chico Mendes pediu um porte de arma à Polícia Federal porque viajava por este País afora e precisava desse porte em São Paulo, no Rio de Janeiro, no Acre, aonde quer que fosse e a UDR o perseguia onde ele estivesse. Além disso, o porte de arma não poderia ter sido expedido pela Polícia Civil porque não teria validade em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro e não porque Chico Mendes tivesse qualquer tipo de deferência ou amizade com quem quer que seja.

Questiona-se, na entrevista, com que freqüência os encontros aconteciam. Responde Sposito que aconteciam uma vez por mês, de quarenta em quarenta dias. No mesmo trecho, em seguida, é dito que os encontros aconteciam de forma tranqüila, no sindicato, na casa de Chico Mendes etc... Quer dizer, há muitas contradições nessa entrevista. Repito: não sei o contexto em que ela foi realizada.

Passo a ler - não sei se conseguirei enxergar - alguns de seus trechos.

Pergunta o entrevistador

       “Veja - Com que freqüência os senhores se encontravam?”

       Sposito - Uma vez por mês ou uma vez a cada quarenta dias, não sei ao certo. Eram sempre conversas muito objetivas, nunca muito demoradas.”

           Em seguida, no mesmo parágrafo, eis a pergunta do repórter:

       Veja: - Os encontros eram secretos?

       Sposito - Esqueça o que viu nos filmes. Estive com ele na sede do sindicato em Xapuri durante o horário comercial. Fui a sua casa, e ele esteve na superintendência da Federal em Rio Branco. Simples assim.”

Num momento, eram encontros reservados de quarenta em quarenta dias, com conversas curtas e objetivas; no outro, com essa tranqüilidade toda. Há muitas contradições no que está posto aqui.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, na entrevista é dito que Chico Mendes prestava colaboração porque ia à Bolívia e observava o que acontecia naquele país. O Chico fazia denúncias às autoridades, ao Governador, ao Bispo, ao Superintendente da Polícia Federal, ou a quem quer fosse, pelos direitos dos trabalhadores brasileiros que ainda vivem aos milhares na Bolívia e que lá são massacrados. Eles não têm os mesmos direitos e, muitas vezes, são perseguidos por estarem naquele território sem a cidadania boliviana e por não serem reconhecidos naquele país. São seringueiros, mas, por não terem tido apoio nos lugares onde viviam, principalmente no meu Estado, foram obrigados a morar no país vizinho, na Bolívia, muitas vezes, sofrendo perseguições terríveis.

Chico Mendes denunciava as condições de vida dessas pessoas, mas não prestava qualquer tipo de trabalho à Polícia Federal com relação ao Sendero Luminoso ou a quem quer que seja.

O entrevistador faz a seguinte indagação:

       “Veja - Por que, na sua opinião, Chico Mendes lhe passava informações?

       Sposito - Arriscaria dizer que Chico Mendes não queria radicalismos na região, com medo de que os excessos pudessem colocar seus companheiros em dificuldade. E aí entregava para a polícia informações sobre o que lhe parecia exagerado. Não vejo outro motivo”.

Portanto, Chico Mendes era um homem tranqüilo, não radical, um homem que tinha medo de que seus companheiros embarcassem em alguma aventura de radicalismo, inclusive, era uma pessoa muito ponderada, tanto é que os embates eram feitos de forma pacífica. Participei de vários deles. Não levávamos sequer um facão, a não ser para quebrar ouriço de castanha para comer quando estávamos com fome. Entrávamos nos locais das derrubadas com os nossos corpos, e não com armas. Chico era uma pessoa ponderada.

Contudo, na mesma coluna, após ter dito que Chico fazia isso com medo de radicalismo, o entrevistador pergunta:

       Veja - Sendo ele tão especial para o senhor, como é que ele ficou tão vulnerável e morreu nas mãos dos fazendeiros?“

           A resposta é um pouco longa, mas o que vou dizer não sai do contexto:

       Sposito - Todas as vezes em que Chico Mendes me telefonou ou veio até mim pedindo alguma providência, tomei, dentro das limitações da estrutura da Polícia Federal no Acre e da minha responsabilidade. Chico Mendes me pediu certa feita um porte de arma para ter consigo um revólver calibre 38. Poderia ter pedido para a Polícia Civil, o que é mais comum, mas entendeu por bem de pedir a quem já conhecia. O porte foi expedido em janeiro de 1988 e cassado cinco ou seis meses depois. Esse porte de arma me traria uma grande dor de cabeça mais tarde. Como Chico Mendes era um agitador de primeira e andava aparecendo armado em locais públicos, achei por bem cassar seu porte.”

Ora, Sr. Presidente, Srs. Senadores, onde está o homem ponderado que fez denúncias, que entregou pessoas, mas tinha medo de radicalismos? No parágrafo que acabei de ler é dito que Chico Mendes era um radical, que teve o porte de arma cassado porque se temia que cometesse algum tipo de radicalismo. O Chico Mendes não teve mais direito ao porte de arma porque ele poderia agir, talvez, em legítima defesa. Todavia, ele morreu de forma covarde, foi assassinado, sem segurança, sem proteção.

Alguns dias antes de eu viajar para São Paulo - quando ele morreu eu não estava no Acre -, caminhando da casa dele até a sede do sindicato, ele me disse exatamente o seguinte: “Não tem jeito, companheira, agora eles vão me pegar”. Eu disse: “Chico, vamos até Rio Branco, vamos falar com Dom Moacyr Grechi, com a Imprensa”. Ele respondeu: “Não adianta, quando faço isso as pessoas dizem, nos meios de comunicação, que digo isso para me promover. Eles só vão acreditar que querem me matar quando eu morrer”. Foi uma das frases mais tristes que já ouvi da boca de um ser humano, abandonado, desprotegido, impotente.

Aceitar essas acusações é aceitar que se mate o Chico duas vezes, é aceitar que se faça contra ele aquilo que os seus assassinos desejavam que acontecesse, ou seja, eliminá-lo para acabar com essa história de Movimento de Seringueiros e União de Povos da Floresta, para transformar a Amazônia em uma grande festa, onde se possa derrubar árvores, tirar madeiras, queimá-las e substituir homens por bois. Era isso o que unia as pessoas contra Chico e suas idéias. Alguns conseguiram a vitória, ao manchar seu corpo de sangue e levá-lo à morte. Espero que essa mancha não se estenda à sua honra e memória. Estou aqui nesta tribuna para evitar que isso aconteça, assim como milhares de pessoas - tenho certeza - se levantam, indignadas, neste momento. Chico Mendes é maior que todas essas mesquinharias que lhe são feitas.

Repito, não sei o contexto em que essa entrevista foi feita; nem porque pessoas que o conheciam não foram entrevistadas. Creio que seja uma tentativa para desmoralizá-lo após dez anos de sua morte justamente no momento em que estamos preparando uma homenagem à memória de um dos homens mais importantes da Amazônia.

Essa mesma denúncia foi feita há dez anos, e tivemos de ir à imprensa para contestá-la, inclusive essa matéria saiu até no Jornal do Brasil. Assim, não podemos chamar essa matéria de requentada, mas de cremada. E isso deveria ter sido feito junto com Chico Mendes.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - Permita-me V. Exª um aparte?

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT-AC) - Ouço o aparte do nobre Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - Senadora Marina Silva, V. Exª dá o testemunho de quem conheceu muito proximamente Chico Mendes, porquanto companheira de muitas batalhas ao lado do principal líder seringueiro da História do Brasil, aquele que conseguiu, em que pese o sacrifício de sua morte, chamar a atenção do mundo para a luta dos que, ao mesmo tempo em que querem preservar a floresta amazônica, desejam permitir que o homem possa usufruir de sua riqueza, ensinando-o como não destruir a floresta e seus ingredientes. Conheci Chico Mendes e do pouco que pude estar com ele sempre verifiquei a sua integridade, o seu modo de ser. Mas V. Exª fala com o conhecimento muito mais profundo de quem vivenciou com ele as suas batalhas, participou de movimentos sociais e a maneira como tantas vezes ele organizou os homens e as mulheres da floresta amazônica para impedir que houvesse aquelas grandes derrubadas e para também mostrar que era possível aos seringueiros, aos que trabalham na extração da borracha, conseguir viver daquela riqueza, mas, sobretudo, sabendo preservar a floresta amazônica. O testemunho de V. Exª, diante da reportagem que procura destruir Chico Mendes, exatamente por ocasião do décimo aniversário da sua morte, é da maior importância, e certamente muitos dos amigos de Chico Mendes - e mesmo muitos de seus adversários, que o acabaram respeitando - são gratos a V. Exª, assim como eu, como membro do Partido dos Trabalhadores, porque consideram da maior relevância esse registro. Portanto, agradeço a V. Exª, Senadora Marina Silva.

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT-AC) - Agradeço o aparte de V. Exª.

Sr. Presidente, qualquer documentação apresentada como tentativa de prova para essas acusações, no mínimo, pode caracterizar que, em alguns momentos, as correspondências de Chico Mendes foram violadas. Chico Mendes falava respeitosamente com as autoridades e com o Superintendente da Polícia Federal. Falava também com Governadores e com jornalistas. Foi até aos Estados Unidos. Para muitas pessoas, ele pedia socorro. Não é justo que ele apareça nessa situação aviltante de prestar informações. Prestar informações, ser um colaborador, nos termos aqui postos, é aviltante para qualquer pessoa que tenha um compromisso de respeito a suas idéias e a seus ideais, ainda mais quando se diz que Chico Mendes fazia isso em troca de gasolina. Fica até ridículo falar, mas Chico Mendes não tinha nem carro. Só se a gasolina fosse para beber. Chico Mendes não era incendiário, aliás, lutou a vida inteira contra os incêndios na Amazônia.

Essa acusação feita a Chico Mendes é aviltante à sua memória, à sua família, aos seus companheiros, à sua luta. Por isso, venho a esta tribuna, com tristeza, para defender a honra de Chico Mendes, porque em vários momentos se tentou desmoralizá-lo. Em alguns casos, como pessoa, usando a sua família; em outros, tentou-se desmoralizá-lo junto aos seus companheiros; depois, com essa história de colaborador, também se tentou desmoralizá-lo junto aos companheiros, junto à esquerda, junto às pessoas que o respeitavam. Na época, não foi possível. Aliás, só sei que, no período em que discutiam a morte de Chico Mendes, existiam duas posições: uma que defendia matá-lo, e a outra que defendia a sua desmoralização. Foi vitoriosa a que conseguiu a eliminação. Por várias vezes, pessoas tentaram desmoralizar Chico Mendes. Lamento que, nesse caso específico, a pessoa a desmoralizá-lo tenha uma importante função pública e que, à época, tinha a responsabilidade pública, o dever institucional de proteger a vida do Chico, e a quem, de forma completamente desprotegida e despretensiosa, ele buscou quando foi entregar a carta pessoalmente, junto com D. Moacir Grechi, como que a dizer: “Agora temos como tirar o Darli da perseguição a mim e aos seringueiros. Temos como evitar que ele nos mate. Chegou um pedido de Umuarama, dizendo que ele é assassino. Ele pode ser preso pelos crimes que cometeu em Umuarama e, assim, não vai me matar.”

Entregou a carta, mas havia um problema técnico: ela estava aberta, quando deveria estar selada. Sendo assim, esperou-se para seguir pelos trâmites legais. Enquanto isso, Darli fugiu e depois, com ódio, disse na frente do delegado: “O Chico Mendes está pegando no meu pé. Nem a minha mulher pega no meu pé. Ele vai pagar caro por isso.” Disse isso na frente de um delegado! Dias depois, Chico Mendes pagou muito caro, com a sua vida.

Por isso, conhecendo Chico e sabendo da sua história, não aceito que, além do seu corpo manchado de sangue, agora se tente manchar sua honra e sua memória.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/02/1998 - Página 2873