Discurso no Senado Federal

LANÇAMENTO DA OBRA DO POETA GERARDO MELLO MOURÃO INTITULADA 'INVENÇÃO DO MAR'.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA CULTURAL.:
  • LANÇAMENTO DA OBRA DO POETA GERARDO MELLO MOURÃO INTITULADA 'INVENÇÃO DO MAR'.
Publicação
Publicação no DSF de 07/03/1998 - Página 3517
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • SAUDAÇÃO, LANÇAMENTO, LIVRO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, GERARDO MELLO MOURÃO, POETA, ESCRITOR, ESTADO DE ALAGOAS (AL).
  • SOLICITAÇÃO, DEPARTAMENTO, CULTURA, MINISTERIO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL E REFORMA DO ESTADO (MARE), MINISTERIO DA EDUCAÇÃO (MEC), PRESIDENCIA DA REPUBLICA, EMPENHO, DIVULGAÇÃO, AMBITO NACIONAL, AMBITO INTERNACIONAL, OBRA LITERARIA, AUTORIA, GERARDO MELLO MOURÃO, POETA, ESTADO DE ALAGOAS (AL).

O SR. ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, sob a proteção de olorum, inicio este meu pronunciamento.

Esta semana está marcada por um dos maiores acontecimentos da vida cultural e da história da literatura brasileira: a Editora Record e a Livraria Argumento, do Rio de Janeiro, promoveram, no dia 3 deste mês, o lançamento da última obra do poeta Gerardo Mello Mourão, que tem o título de Invenção do mar.

Não estranhe o Senado que se traga à tribuna desta Casa a celebração de um acontecimento poético. Já ensinaram os mestres da história que tudo o que permanece e resiste à destruição do tempo é aquilo que foi fundado pelos poetas. A própria glória do poder político é efêmera e duvidosa. As gerações guardam os nomes do Dante e do Shakespeare, de Virgílio e de Camões, e assim por diante, ignoram solenemente os nomes dos que presidiram senados e gabinetes ministeriais à época em que aqueles poetas fundavam a verdadeira história de seus povos. E quando cito o nome desses poetas ao tratar de Gerardo Mello Mourão, não faço mais do que repetir o juízo de alguns dos mais altos críticos do país e da Europa, para os quais é a essa linhagem dos criadores do espírito, neste milênio, que pertence o poeta brasileiro.

Já quando do aparecimento da trilogia poética de Gerardo Mello Mourão, Os Peãs, que reúne três livros fundamentais de nossa literatura, a crítica nacional e internacional o saudou como um acontecimento memorável. O escritor Antônio Olinto, que então pontificava na crítica do jornal O Globo, que exerceu por cerca de vinte anos e da qual ainda têm saudades os que se ocupam com as coisas das letras, diria: “no meio de muitas correntes da poesia brasileira de hoje, é Gerardo Mello Mourão um estranho e um solitário. Nada há que se lhe assemelhe. Nenhum fazedor de versos desta parte do mundo tem com ele parentesco.”

O mestre Tristão de Athayde escreveu, a propósito do épico de O País dos Mourões: “Jamais, em nossa história literária, se colocou a poesia em tão alto pódio.” E concluía seu ensaio sobre a poesia gerardiana: “Gerardo Mello Mourão é um poeta planetário. O único poeta planetário na história da literatura brasileira.”

O saudoso poeta Augusto Frederico Schmidt escrevia: “Estamos diante de um poeta cuja obra é tão rara, tão autêntica e tão marcada como suas ásperas raízes no país dos Mourões e como a espantosa trajetória de sua residência na terra, uma existência pungida de rica e patética aventura e de enfurecida beleza humana.”

Meu saudoso amigo Guerreiro Ramos, a quem seus discípulos no Brasil e nos Estados Unidos se habituaram a chamar “O Divino Mestre”, o príncipe maior dos sociólogos deste país, dizia, em artigo famoso, que os estudos brasileiros deviam criar uma nova cadeira e uma nova disciplina na Universidade: a gerardologia. E é ainda o mestre Guerreiro, em artigo no velho Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, que escrevia, depois da publicação dos primeiros grandes poemas do autor de Os Peãs: “Agora podemos morrer. Nossa geração e nosso país estão justificados com a poesia de Gerardo Mello Mourão.”

O poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu: “O país dos Mourões merecia edições contínuas, em escala nacional, para que nele o Brasil se apreendesse a ferro e fogo e palavra indestrutível (...) Peripécia de Gerardo é outro épico esmagador. Leio, releio, me entusiasmo a cada momento. É um poeta que não se pode medir a palmo, e conseguiu o máximo de expressão usando recursos que nenhum outro empregou ainda em nossa língua. Declaro-me possuído de violenta admiração por esse imenso, dramático e vigoroso painel, que atestará sempre a grandeza singular e a intensidade universal de sua poesia.”

Na França, na Inglaterra, na Alemanha e assim por diante, a poesia de Gerardo Mello Mourão é considerada um monumento de nosso tempo, assim como seu famoso romance O Valete de Espadas, com várias edições no Brasil e no exterior, e que críticos franceses, alemães e eslavos situam ao lado da obra de Jorge Luís Borges ou de Franz Kafka.

O poeta Robert Graves, titular, então, da cátedra de Poesia da Universidade de Oxford, diz: “com Gerardo Mello Mourão, esse poeta brasileiro, seu país e seu continente alcançam, pela primeira vez, a voz da grande poesia e da grande poética universal.”

Seria necessário um volume inteiro para consignar as referências importantes à obra de Gerardo Mello Mourão, como a consagração de Ezra Pound, considerado geralmente o pai da poesia contemporânea. Diz ele: “Em toda a minha obra, o que tentei foi escrever a epopéia da América. Creio que não consegui. Quem conseguiu foi o poeta de O País dos Mourões.”

O poeta que agora oferece Invenção do Mar vem confirmar aquilo que nele já identificara o grande Octavio Paz, ao dizer: “os dois primeiros livros de sua trilogia, O País dos Mourões e Peripécia de Gerardo, me levaram a descobrir um mundo - que me prometo mais e mais -, que não é tanto uma geografia e uma história, mas, no verdadeiro sentido da palavra, uma genealogia americana.”

Pois é essa genealogia, de certo modo, de toda a América, mas especialmente a genealogia deste País chamado Brasil, que compõe o painel espantoso de Invenção do Mar.

Metáfora da aventura dos navegadores, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos padres jesuítas, dos índios que habitavam a terra em suas tribos inumeráveis, dos milhões de africanos escravizados que pagaram com sua liberdade, seu sangue e seu suor a construção da riqueza nacional, a epopéia não é um livro de história. Mas a palavra “invenção” deve estar aí em seu primeiro sentido: inventar significa achar. Os navegantes acharam o mar. O poeta acompanha todos os momentos dessa invenção. Começa com a memória de outro poeta, o rei D. Dinis, a quem chama de Diônisos, poeta e rei, o Dioniso dos gregos, o Osíris do Egito africano, que plantou os pinhais, para inventar as tábuas, com que se inventaram as caravelas. O infante inventou os sabedores do mar alto. E o mar inventou o Brasil. Já se disse que a ficção de Tolstoi no romance Guerra e Paz expressa a História da Rússia e das guerras napoleônicas melhor que qualquer compêndio de história. Este poema é, assim, um marco, talvez o marco maior, da posse e do conhecimento da História do Brasil, contada, cantada e iluminada pela metáfora de seu achamento, de sua colonização, de seu desbravamento, das guerras em que morreram centenas de milhares de fundadores da terra, índios e brancos, portugueses, franceses, holandeses, ingleses, padres e principalmente negros da África, protagonistas todos da criação de uma geografia, de uma genealogia e de uma história, que se tornou possível a partir da expulsão dos holandeses do Nordeste - episódio culminante da crônica dessa empresa de fundação deste País até também de brancos, mas sobretudo de negros e mestiços.

No século XVI, no século XVII, transfigurando em versos a nota dos cronistas, diz o poeta que o Brasil era Pernambuco, e Pernambuco era o açúcar e o açúcar era o negro. Depois, o Brasil seria Minas Gerais, e Minas seria o ouro e o ouro era o negro. Mais tarde, o Brasil era São Paulo, e São Paulo era o café e o café era o negro.

Não cabem nesta epopéia limpa as imposturas históricas que nos impingiram ao longo dos séculos. Neste poema fundador, são cantados todos os protagonistas da invenção do mar, que inventou o Brasil. Os que mataram e os que morreram para fazer o País. Protagonistas foram os padres missionários, que guardaram a língua dos índios, e que às vezes morreram de fome, como o padre Manuel da Nóbrega, ou assados e comidos com farinha de pau pelos índios antropófagos. Protagonistas da fundação foram os guerreiros que prearam índios e expulsaram invasores flamengos. Protagonistas foram os capitães das capitanias hereditárias, que quase todos saíram do governo mais pobres do que entraram, e alguns morreram na indigência, passando penúria e fome, e se finaram sem ter um lençol para envolver o corpo na sepultura em que foram enterrados. Protagonistas foram os índios devoradores de gente, devorados pela crueldade implacável dos genocídios da História.

Mas protagonistas foram, sobretudo, os negros, arrancados violentamente de seus reinos na Costa da África, e que aqui construíram com o próprio sangue o país que não haviam escolhido. Criaram os alicerces da riqueza nacional e criaram a raça a que pertence realmente o provo brasileiro. Fala-se muito dos heróis fazedores de pátria. Mas, como lembra o poeta, o primeiro documento da História deste País em que aparece a palavra pátria, em que o Brasil é chamado de pátria, foi escrito e assinado por um negro: o Capitão Henrique Dias, na carta soberba em que repele as tentativas de suborno do Governo holandês, dizendo: “meus soldados têm pouca letra e muita espada. Com ela, expulsaremos os invasores, porque esta é a minha pátria. E respondo igualmente pelo Capitão Felipe Camarão, porque esta é a pátria dele também.”

Foi, assim, embora com seus irmãos de origem acorrentados no eito ou empunhando armas nos quilombos; foi graças à bravura do Governador-Geral dos Negros e Mulatos, como se assinava o Capitão Henrique, que o país se transformou em pátria, criou a segurança do litoral e deu condições aos exploradores para a aventura das bandeiras, da conquista do Centro, do Oeste e do extremo Sul.

O que esse poema ilumina é a expressão da beleza inaugural da história, da geografia e da genealogia de que foram capazes negros, índios e brancos. Com amor, com furor, com crueldade. Dessa nutrição antropofágica foram feitos os ossos e as veias do Brasil. E também os ossos e as veias desse poema.

Ao ler o livro de Gerardo Mello Mourão, ainda no original, o grande filósofo e escritor português Afonso Botelho diria que “com ele, a poesia de língua portuguesa passou a sustentar-se sobre quatro pilares: Camões, Pessoa, a Carta de Caminha e Gerardo.”

Entre as matérias de jornal já publicadas sobre Invenção do Mar, vale a pena destacar longo artigo, verdadeiro ensaio, ocupando mais de meia página do jornal O Estado de S.Paulo, do escritor e filósofo Miguel Reale. Nele, diz o antigo Reitor da USP:

     “Portugal prepara-se fervorosamente para abrir a Expo 98: Os Oceanos, um patrimônio para o Futuro, com magnífico acervo de edificações e de pesquisas históricas, ao mesmo tempo em que a Unesco declara 1998 o Ano Internacional dos Oceanos.

     Os portugueses têm razão de festejar com tanto entusiasmo a época das grandes descobertas marítimas, porque, assim como se fala em “milagre grego”, no plano de pensamento, das artes e da investigação científica, não haveria exagero em falar em “milagre português” no campo das experiências e expedições marítimas, como de Bartolomeu Dias e Vasco da Gama, tendo seus navegadores, conforme se lê em estudos históricos recentes, antecipado o conhecimento de novas terras a oeste, o que levou a Coroa lusa a apressar a fixação, com a da Espanha, das novas fronteiras do mundo, antes com o Tratado de Alcáçovas (1479) e, depois, com o Tratado de Tordesilhas (1494).

     É nesse amplo contexto que se situa o Descobrimento do Brasil em 22 de abril de 1500 ou, como já se prefere dizer, apenas “descoberta formal”, por se tratar de terras sobre as quais Portugal já possuía informações seguras, o que desfaz a tola versão de um encontro por acaso. Não obstante estarmos a apenas dois anos da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto Seguro, não me consta” - continua Miguel Reale - “que o Governo brasileiro ou nossas instituições públicas e privadas já estejam dedicando a devida atenção à comemoração de tão relevante evento, a não ser que haja historiadores e cosmógrafos pátrios empenhados silenciosamente em tais estudos, e nos venham surpreender com eles.

     Foi por esses motivos que recebi com surpresa e imensa alegria o belo poema que Gerardo Mello Mourão acaba de publicar sob o título Invenção do Mar - Carmen Saeculare, em sete densos cantos, um volume de 367 páginas. Trata-se de uma obra que nos redime do descaso reinante, habilitando-nos a comparecer a Lisboa com algo de valioso nas mãos. Não é de estranhar que um poeta se tenha antecipado nessa meritória e necessária participação, pois a poesia é sempre uma invenção primeira, uma intuição primordial.”

Não é preciso repetir a brilhante e entusiástica apreciação de Miguel Reale sobre o poema. Mas quero marcar a grandeza única da contribuição do poeta brasileiro às comemorações do Quinto Centenário. E faço daqui um apelo ao Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores, onde o atento e competente Ministro que o dirige parece empenhado em incorporar projetos expressivos para celebrar esse marco de nossa história, para que o poema de Gerardo Mello Mourão seja uma referência maior de nossa presença em Lisboa. O Departamento Cultural está no dever de dar relevo a um projeto para que esse poema secular - secular no sentido em que assim se chamou o carmen romano do poeta Horácio -, seja divulgado, celebrado e consagrado, em edições comemorativas, seja na imediata montagem de um CD ou de um CD-ROM que leve aos centros culturais do mundo o texto inigualável de Invenção do Mar.

Apelo semelhante faço aos Srs. Ministros da Educação e da Cultura e ao próprio Presidente da República, por meio de sua Secretaria de Comunicação, que deve funcionar mais para assuntos como este do que para a propaganda do Governo.

O Congresso Nacional não pode omitir-se também do dever cultural que nos é sugerido por essa obra ímpar da poesia brasileira. Vale a pena lembrar que o poeta passou também pelas bancadas do Congresso, como Deputado Federal por Alagoas, e que prestou ainda relevantes serviços a este Senado, cuja história, mandada editar pelo Presidente José Sarney, na última legislatura, com texto do Professor Vamireh Chacon e sua equipe de estudantes, foi elaborada rigorosamente dentro do projeto de trabalho organizado pelo ex-parlamentar, o poeta Gerardo Mello Mourão.

Espero, Sr. Presidente, que minhas palavras cheguem aos ministros acima referidos e ao Departamento Cultural do Itamaraty, enquanto me preparo para oferecer à Casa projeto de lei que inclui versões escritas e audiovisuais de Invenção do Mar nos programas culturais e no currículo das escolas de segundo e terceiro grau do País, como referência obrigatória nos exames vestibulares.

Axé, poeta Gerardo Mello Mourão!

Obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/03/1998 - Página 3517