Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.

Autor
Abdias Nascimento (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RJ)
Nome completo: Abdias do Nascimento
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.
Publicação
Publicação no DSF de 20/03/1998 - Página 4587
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, CRUZ E SOUSA, POETA, ESTADO DE SANTA CATARINA (SC).

O SR ABDIAS NASCIMENTO (Bloco/PDT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, Srs. convidados, sob a proteção de Olorum, inicio este pronunciamento.

Talvez eu jamais tenha ocupado esta tribuna trêmulo de tanta emoção, pungido pela tristeza mais dilacerante. Mas também nunca antes e nem depois deste momento um sentimento de orgulho e de dignidade humana teve ou terá o poder de elevar tão alto minha auto-estima, sintonizada com o orgulho e a auto-estima do povo afrodescendente a que pertenço. Pois não é algo que aconteça freqüentemente na história de um povo o surgimento de um gênio do porte desta figura gigantesca e suprema que estamos reverenciando no centenário de sua morte: João da Cruz e Sousa.

Corria o ano de 1861. Vivia então o Brasil um raro período de paz interna e relativa liberdade -- sem banimentos nem prisões por motivos políticos, sem censura à imprensa --, período esse que se estenderia por cerca de quatro décadas. O País constitucionaliza-se, ensaia um regime representativo, participa do mercado internacional, adota o navio a vapor, o trem de ferro, o consumo do ferro e do carvão, o romance e o drama românticos e, depois, naturalistas.

Todo esse surto de progresso tecnológico e cultural não conseguia ocultar, porém, as divisões profundas que cindiam a nação de alto a baixo. Fermentadas durante décadas pelos adversários do regime, em sua variada coloração política, essas clivagens acabariam provocando importantes transformações em nossa sociedade, afetando profundamente, pelo modo como ocorreram, a vida de todos os brasileiros, vivos e por nascer.

Uma delas era o problema eleitoral. O controle da máquina pelo Ministro da Justiça, num sistema em que o voto não era secreto, propiciava toda sorte de pressões e manipulações, fazendo da fraude a regra, e não a exceção. Esse fato alimentava uma corrente que começara diminuta, por vezes se expressando em frustradas insurreições, mas que acabaria por se tornar um interlocutor importante e respeitado na arena política: a dos republicanos.

A outra contradição fundamental da época dizia respeito às relações entre o Estado e a Igreja. Com o catolicismo como religião oficial, os não-católicos constituíam uma cidadania de segunda classe, impedidos de professar livremente suas crenças divergentes e freqüentemente obrigados a se ocultar sob o manto da hipocrisia. Era um impasse que a sociedade imperial jamais conseguiria resolver.

No entanto, a principal contradição da sociedade brasileira naquele início da década de 1860 era a de uma sociedade que se pretendia liberal, mas abrigava, ao mesmo tempo, a instituição da escravidão. Mais do que isso, o sustentáculo, o pilar de sua economia, então fundamentalmente agrária e extrativista, era o trabalho forçado dos africanos e seus descendentes, que constituíam a quase totalidade da mão-de-obra na lavoura e na mineração. Constituíam também a maioria absoluta de uma população ainda concentrada no campo, numa faixa de terra que acompanhava os contornos de nosso litoral. Sua presença, assim -- como não poderia deixar de ser --, era um traço marcante da vida brasileira, caracterizando essa sociedade aos olhos do mundo, o que então significava aos olhos europeus. Aos do Conde Gobineau, diplomata francês, teórico do racismo e amigo íntimo do Imperador Pedro II, parecia o Brasil um conjunto de “florestas virgens habitadas por mestiços degenerados”, com uma “população toda mulata, com sangue viciado e feia de meter medo”.

Nesse contexto, não podia parecer muito promissor o destino de um menino nascido escravo, naquele ano de 1861, na vila de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, filho de um casal de negros que ganharia a alforria alguns anos depois, quando seu senhor, o Marechal-de-Campo Guilherme Xavier de Sousa, partiu para a Guerra do Paraguai. Mas a sorte, que mais tarde se revelaria tão mesquinha, sorriu na infância daquele menino. Talvez por um humanitarismo inato, quem sabe alimentado numa guerra em que os descendentes de africanos lutaram, sobretudo, para mostrar seu valor como homens, contribuindo para que os militares viessem a rejeitar a escravidão, o Marechal e sua família tomaram-se de afeição pelo menino negro. João da Cruz e Sousa ganhou deles não apenas o sobrenome, mas uma educação esmerada, quase aristocrática. Pôde, assim, estudar os clássicos, aprender línguas estrangeiras, ter até mesmo como professor um naturalista alemão, de nome Fritz Müller, que se correspondia com Darwin. Essa formação permitiu que se expressassem seus extraordinários dotes de inteligência e sua irresistível vocação para as letras.

Com todo esse preparo, o jovem Cruz e Sousa abraçou, de início, o magistério, lecionando na capital e interior da Província. A marca de sua origem, no entanto, não o deixará seguir uma pacata carreira de mestre-escola. A identificação com a sorte de seus irmãos de raça, submetidos a uma escravidão que já fora extinta em quase todo o mundo ocidental, por pressão da resistência negra, dos nascentes movimentos sociais e de uma triunfante Revolução Industrial, transformaria Cruz e Sousa em um paladino da Abolição. Já em 1882 - aos 21 anos, portanto -, funda, numa primeira colaboração pública com seu colega e amigo Virgílio Várzea, o jornal abolicionista Tribuna Popular. Ganha, assim, ao mesmo tempo, o respeito de uma minoria esclarecida e progressista, mas o ódio mortal das elites conservadoras, que consideravam a escravidão indispensável à manutenção de um modo de vida parasitário, cuja galopante obsolescência não conseguiam - ou não queriam - perceber.

Com efeito, a classe dominante ignorou, o quanto pôde, o problema do chamado “elemento servil”. Nem mesmo a proibição do tráfico, expressa em 1850, por pressão britânica, na chamada Lei Eusébio de Queiroz, conseguira conscientizá-la da inevitabilidade de se pôr um fim à instituição escravista. Não só por ser esta imensamente cruel e desumana, mas por se constituir em um elemento-chave a atravancar o progresso de uma sociedade que se aproximava do século XX com os pés fincados em uma instituição retrógrada, ineficaz e antieconômica. O melhor retrato desse reacionarismo espelha-se na abordagem gradualista com que se deu a Abolição no Brasil, incluindo a Lei dos Sexagenários, cujo verdadeiro resultado foi libertar os senhores da obrigação de sustentar escravos anciãos.

Não pode surpreender, contra esse pano de fundo, a irada reação das elites do Desterro à ousadia daquele negro que, definitivamente, não conhecia o seu lugar. A hostilidade branca impele Cruz e Sousa a deixar a terra natal, o que faz na qualidade de secretário e ponto de uma companhia teatral em tournée de norte a sul do País. No Rio de Janeiro, trava contato com a jovem intelectualidade de então, cuja vanguarda buscava livrar-se dos cânones asfixiantes que a prendiam ao passado. De volta ao Desterro, integra-se ao movimento abolicionista, pela imprensa e pela tribuna. Publica em 1885, em co-autoria com o amigo Virgílio Várzea, seu primeiro livro, Tropos e fantasia. Numa combinação estilística de veia parnasiana e condoreira, Cruz e Sousa compôs, nessa fase inicial, notáveis poemas abolicionistas, como este belo e enérgico “Escravocratas”, possivelmente escrito poucos anos antes da Abolição:

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio

manhosos, agachados - bem como um crocodilo

Viveis sensualmente à luz dum privilégio

na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas

ardentes do olhar - formando uma vergasta

dos mil raios de sol, das iras dos poetas,

e vibro-vos a espinha - enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário

da branca consciência - o rútilo sacrário

no tímpano do ouvido - audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,

vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,

castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar!

Se causavam ódio entre a elite reacionária as posições de Cruz e Sousa e sobretudo seu talento e ousadia em defendê-las, também lhe conquistavam aliados. Em 1886, é surpreendido por uma triunfal recepção em sua chegada ao Rio Grande do Sul, momento de rara euforia numa vida marcada muito mais pela frustração e pela revolta. Estas se manifestam uma vez mais, quando, indicado para o cargo de promotor público na cidade de Laguna, no litoral catarinense, tem sua nomeação barrada por pura e simples discriminação racial. Vai, então, para o Rio de Janeiro, onde viverá a fase mais profícua de sua carreira literária.

Em matéria de poesia, a década de 1880 fora dominada pelo parnasianismo, estilo caracterizado pelo culto à forma perfeita, ao helenismo, à impassibilidade diante do mundo e da vida. Por volta de 1890, contudo, novos ventos chegam ao Brasil, soprados da Europa, tendo em Medeiros e Albuquerque o seu principal divulgador. Sob o nome de “decadentismo”, trazem a mensagem de Baudelaire, Mallarmé, Nerval, Huysmans e outros poetas europeus. A nova tendência logo se constitui em pólo aglutinador de jovens escritores, que em 1891 publicam, no jornal carioca Folha Popular, seu primeiro manifesto. Eram signatários B. Lopes, Oscar Rosa, Emiliano Perneta e Cruz e Sousa. Nascia o simbolismo no Brasil. Dois anos depois, em 1893, dois livros de Cruz e Sousa marcariam, pela primeira vez, a concretização dessas idéias neste País: Missal (prosa poemática) e Broquéis (poesia). Embora ambas as publicações passassem praticamente despercebidas aos contemporâneos, Cruz e Sousa trazia algo de novo, tanto em prosa quanto em poesia, à literatura brasileira - uma alta e luminosa novidade, hoje universalmente reconhecida.

O poeta tinha agora 32 anos, e o mundo à sua volta passava por importantes transformações. Cinco anos antes, o Governo Imperial, rendendo-se às evidências da política e da economia, extinguira a escravatura, pondo fim a quase quatro séculos de brutal exploração da mão-de-obra negra. Isso, porém, não significara a redenção da população de origem africana, como sugere o cognome historicamente fixado à princesa que assinou a lei. Muito pelo contrário. Sem terras nem outros meios de enfrentar com êxito um mercado de trabalho em que seu único dote - a força de seus braços - estava longe de ser escasso, os afro-brasileiros, agora “trabalhadores livres”, ingressavam em mais uma etapa sombria de sua história sofrida. Em que pese à sua reconhecida inteligência e ao requintado preparo, Cruz e Sousa compartilharia plenamente esse terrível destino.

Outro evento significativo ocorrido pouco tempo antes - e em estreita correlação com o primeiro - fora a Proclamação da República. A queda da Monarquia, depois de 50 anos de reinado de Pedro II, sem que esta opusesse resistência alguma, pode, na verdade, ser entendida como um momento da história brasileira em que as elites alcançavam um acordo que, fundamentalmente, preservava seus privilégios econômicos, sociais e políticos. Os acontecimentos de 15 de novembro de 1889, a ausência de participação popular e a formação do Governo Provisório demonstram o verdadeiro caráter da transformação republicana. Com a República e o federalismo, consolidavam-se os privilégios do latifúndio, livre agora de Dom Pedro II e dos mecanismos do Estado Imperial que, segundo um historiador, dificultavam a transformação da res publica em coisa privada. Estava aberto o caminho para a consolidação do coronelismo, o aprofundamento das desigualdades regionais e a hegemonia política dos Estados do Sudeste, amplamente favorecida pelo Governo central.

Apesar de seu imenso talento de escritor, Cruz e Sousa só encontrou má vontade nos órgãos de imprensa em que trabalhou - os periódicos Folha Popular, Novidades e Cidade do Rio. Não conseguindo firmar-se num emprego mais à altura de sua formação, é obrigado a aceitar a humilde e mal remunerada função de amanuense na Central do Brasil. Não por acaso, a mesma sorte que teria, poucas décadas mais tarde, um outro gênio negro de nossa literatura, um outro amanuense que o talento tornaria imortal: Afonso Henriques de Lima Barreto. Casado com a bela negra, Gavita, Cruz e Sousa imerge num terrível calvário, obrigado ao convívio com a miséria e a doença. Não pára, contudo, de produzir. Pelo contrário, extrai de sua dolorosa experiência de vida a motivação e os temas de uma poesia que consegue casar, com infinita beleza, a expressão simbolista com as vivências ancestrais, como exemplifica esta comovida e profética “Litania dos pobres”:

Os miseráveis, os rotos

São as flores dos esgotos.

São espectros implacáveis

Os rotos, os miseráveis.

São prantos negros de furnas

Caladas, mudas soturnas

(...)

Ó pobres! O vosso bando

É tremendo, é formidando!

Ele já marcha crescendo,

O vosso bando tremendo...

Ele marcha por colinas

Por montes e por campinas

Nos areais e nas serras

Em hostes como as de guerras.

(...)

O Simbolismo de Cruz e Sousa é, além de atitude estética, uma necessidade superior de atingir, por meio da síntese do mundo, as verdades essenciais - o que não só lhe confere autenticidade no movimento, mas também o projeta, no tempo e no espaço, como um dos maiores poetas da literatura brasileira. Partindo de um estado de aguda tensão interior, do seu drama íntimo, gerado pelo desajuste com uma sociedade racista e até recentemente escravocrata, com a incompreensão e a inveja dos meios literários dominantes, Cruz e Sousa é levado a uma poesia de tendência espiritualizante e transcendentalista.

Este caminho é cor de rosa, é de ouro

Estranhos roseirais nele florescem

Folhas augustas, nobres reverdescem

De acanto, mirto e sempiterno louro.

Sai em busca de um mundo de idéias puras, de formas aladas, verdadeira válvula de escape de suas angústias e compensação para suas insatisfações. A forte interiorização do mundo exterior traduz-se na tendência plástica de exprimir a Natureza por meio de símbolos dominantes, como o branco, o cristal, a caveira. Em vez de “extroversão do complexo de ‘poeta negro’”, como pretendem alguns críticos, trata-se antes de formas de exprimir realidades exteriores, deformadas pelo poeta. É uma poesia de intensa emoção, singularmente expressa no metaforismo, no jogo vocabular, na música das palavras, na matização de cores e na força encantatória, tudo isso que o alçaria aos píncaros do lirismo. Uma poesia também presente em sua prosa:

Esse luto, essa noite, essa treva é o que eu desejo. Treva deliciosa que me anule entre a degenerescência dos sentimentos humanos. Treva que me disperse no caos, que me eletrifique, que me dissolva no vácuo, como um som noturno e místico de floresta, como um vôo de pássaro errante. Treva, sem fim, que seja o meu manto sem estrelas, que eu arraste indiferente e obscuro pelo mundo afora, arredado dos homens e das coisas, confundido no supremo movimento da natureza, como um ignorado braço de rio, que através de profundas selvas escuras vai sombria e misteriosamente morrer no mar.

Mortos o pai, a mãe e dois dos seus quatros filhos, e depois de ver a esposa enlouquecida pela miséria, Cruz e Sousa sucumbe, ele próprio, a uma tuberculose violenta. Vai tratar-se na cidade mineira de Sítio, onde os parcos recursos da medicina da época não conseguem evitar-lhe o falecimento, aos 37 anos, a 19 de março de 1898. Não sem antes ter lançado, naquele mesmo ano, seu último livro publicado em vida: Evocações. Dois outros ainda sairiam, em edições post mortem: Faróis (1900) e Últimos Sonetos (1905).

A primeira repercussão da obra de Cruz e Sousa no estrangeiro ficou demarcada pela conferência do poeta simbolista boliviano, naturalizado argentino, Ricardo Jaimes Freyre, realizada no Ateneo de Buenos Aires ainda em 1889. Seu impacto nos meios literários portenhos foi tão grande a ponto de os influentes Juan Más y Pi e Julio Noé verem em Cruz e Sousa a fonte inspiradora de Leopoldo Lugones, considerado o maior poeta argentino. Já Roger Bastide o situa ao lado de Mallarmé e Stefan George, vendo neles a tríade suprema do movimento simbolista universal - mas dando visível preeminência a esse gênio afro-brasileiro. Para outros críticos ainda, como é o caso de Ventura García Calderón, além dos citados Pi e Noé, Cruz e Sousa é simplesmente um dos maiores poetas do mundo, em qualquer tempo e lugar. Dele diria a inspirada poetisa Cecília Meirelles: “Que outros poetas viessem sofrendo, desde os tempos clássicos, nada mais evidente, dada a continuidade do sofrimento humano. Mas nenhum tivera esta linguagem deslumbrada diante da Dor, acolhendo-a como a um dom de fecundas promessas: ‘Vê como a Dor te transcendentaliza’.”

O centenário de falecimento de Cruz e Sousa ensejou minha parceria com o ilustre Senador Esperidião Amin, conterrâneo do grande poeta, na elaboração de projeto de Resolução aprovado por esta Casa e pela Câmara dos Deputados, criando o Prêmio Cruz e Sousa de Monografia, cuja premiação está prevista para o próximo mês de junho. Espera-se com isso reverenciar a memória desse grande escritor, desse grande negro, desse grande brasileiro, desse grande homem, para que sirva de exemplo da capacidade humana de triunfar na adversidade e de transformar o sofrimento em matéria-prima das mais sublimes realizações.

Axé, João da Cruz e Sousa! (Palmas)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/03/1998 - Página 4587