Pronunciamento de Benedita da Silva em 19/03/1998
Discurso no Senado Federal
COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.
- Autor
- Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
- Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.
- Publicação
- Publicação no DSF de 20/03/1998 - Página 4591
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, CRUZ E SOUSA, POETA, ESTADO DE SANTA CATARINA (SC).
A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, depois de ouvir os Senadores Esperidião Amin, Artur da Távola, Ronaldo Cunha Lima, Francelino Pereira, José Fogaça, Casildo Maldaner e Abdias Nascimento, não há muito a acrescentar. Contudo, quero parabenizar a iniciativa dos autores do requerimento, Senadores Esperidião Amin, Artur da Távola e Abdias Nascimento.
Cruz e Sousa, aqui tão bem homenageado na data em que se comemora o centenário de seu falecimento, deixa para nós uma obra que enseja profunda reflexão. Ele enfrentou dificuldades e conseguiu, como poucos, vencê-las. Era um homem das letras: falava, grego, latim, francês e inglês. Poeta, negro e inteligente era desacatado e invejado pela sua inteligência. Chegaram a dizer que era um “negro de alma branca”, pois possuir alma branca significava ser inteligente. Um erro drástico. Diziam que ele possuía a alma branca porque reconheciam nele o seu valor como um grande poeta negro, inteligente, sábio. Era o poeta da alma e falou profundamente aos nossos corações. Os que tiveram a oportunidade de ler sua obra, ao fazê-lo, viajaram em suas utopias
Tivemos, neste plenário, momentos impressionantes que demonstraram o conhecimento desse poeta. Ele penetrou no espírito dos leitores que tiveram a oportunidade de conhecer suas poesias. Cruz e Sousa foi o poeta dos negros, da alma, dos pobres, dos marginalizados, das mulheres, dos sonhos!
A atribuição desse prêmio conta com o nosso apoio para a sua divulgação em todas as universidades e escolas do nosso País. Já estou fazendo isso para resgatar a memória desse grande escritor, ao tempo em que agradeço a Deus por ter dado a esse homem o privilégio da inteligência e de ele ter tido forças suficientes para resistir às pressões sociais do seu tempo.
Sabemos - esta Casa também uma vez que há muitos educadores aqui - que o saber não ocupa lugar. Qualquer que seja a nossa condição, se detemos algum tipo de conhecimento, se somos bem informados, certamente conseguiremos vencer as dificuldades de nossas vidas. E foi assim para esse grande poeta.
Todos os meus Pares já falaram muito a respeito desse homem. Então, gostaria de encurtar o meu pronunciamento. E, à semelhança do que falou o Senador Casildo Maldaner, questiono: depois de tantas palavras, de tantos discursos, o que tenho a fazer senão dar o meu pronunciamento como lido?
Antes, porém, faço uma consideração. As homenagens prestadas aqui a esse ilustre brasileiro foram sinceras, profundas, conhecedores que somos, alguns de nós - não me incluo entre eles - da obra de Cruz e Sousa. Entretanto, tive oportunidade de viajar na sua utopia e pude verificar que ele não era apenas o poeta da alma, do negro, da mulher. Ele preocupava-se - e fiquei torcendo para que ninguém mencionasse isso porque era o que me restava, diante de tantos discursos aqui proferidos -, com as crianças negras. É sobre essas crianças que quero falar, usando suas palavras e seus pensamentos sobre elas.
CRIANÇAS NEGRAS
Em cada verso um coração pulsando,
Sóis flamejando em cada verso, e a rima
Cheia de pássaros azuis cantando,
Desenrolada como um céu por cima.
Trompas sonoras de tritões marinhos
Das ondas glaucas na amplidão sopradas
E a rumorosa música dos ninhos
Nos damascos reais das alvoradas.
Fulvos leões do altivo pensamento
Galgando da era a soberana rocha,
No espaço o outro leão do sol sangrento
Que como um cardo em fogo desabrocha.
A canção de cristal dos grandes rios
Sonorizando os florestais profundos,
A terra com seus cânticos sombrios,
O firmamento gerador de mundos.
Tudo, como panóplia sempre cheia
Das espadas dos aços rutilantes,
Eu quisera trazer preso à cadeia
De serenas estrofes triunfantes.
Preso à cadeia das estrofes que amam,
Que choram lágrimas de amor por tudo,
Que, como estrelas, vagas se derramam
num sentimento doloroso e mudo.
Preso à cadeia das estrofes quentes
Como uma forja em labareda acesa,
Para cantar as épicas, frementes
Tragédias colossais da Natureza.
Para cantar a angústia das crianças!
Não das crianças de cor de oiro e rosa,
Mas dessas que o vergel das esperanças
Viram secar, na idade luminosa.
Das crianças que vêm da negra noite,
Dum leite de venenos e de treva,
Dentre os dantescos círculos do açoite,
Filhas malditas da desgraça de Eva.
E que ouvem pelos séculos afora
O carrilhão da morte que regela,
A ironia das aves rindo à aurora
E a boca aberta em uivos da procela.
Das crianças vergônteas dos escravos,
Desamparadas, sobre o caos, à toa
E a cujo pranto, de mil peitos bravos,
A harpa das emoções palpita e soa.
Ó bronze feito carne e nervos, dentro
Do peito, como em jaulas soberanas,
Ó coração! és o supremo centro
Das avalanches das paixões humanas.
Como um clarim a gargalhada vibras,
Vibras também eternamente o pranto
E dentre o riso e o pranto te equilibras
De forma tal que a tudo dás encanto.
És tu que à piedade vens descendo.
Como quem desce do alto das estrelas
E a púrpura do amor vais estendendo
Sobre as crianças, para protegê-las.
És tu que cresces como o oceano, e cresces
Até encher a curva dos espaços
E que lá, coração, lá resplandeces
E todo te abres em maternos braços.
Te abres em largos braços protetores,
Em braços de carinho que as amparam,
A elas, crianças, tenebrosas flores,
Tórridas urzes que petrificaram.
As pequeninas, tristes criaturas
Ei-las, caminham por desertos vagos,
Sob o aguilhão de todas as torturas,
Na sede atroz de todos os afagos.
Vai, coração! na imensa cordilheira
Da Dor, florindo como um loiro fruto,
Partindo toda a horrível gargalheira
Da chorosa falange cor do luto.
As crianças negras, vermes da matéria,
Colhidas do suplício à estranha rede,
Arranca-as do presídio da miséria
E com teu sangue mata-lhes a sede!
Cruz e Sousa, com a força e a garra expressas em seus poemas, viu nascerem e morrerem muitas crianças.
O grande poeta deixou para nós uma herança: sua obra e suas herdeiras: Ercy Cruz e Sousa; Dina Tereza, sua filha; e Emilene, sua neta. A elas também prestamos nossas homenagens. Ajudar essas mulheres é garantir a presença física entre nós desse grande, desse poeta, desse cisne, desse pássaro, dessa criança, desse jovem, desse homem, dessa mulher, desse cidadão, Cruz e Sousa.
Obrigada. (Palmas)