Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE FALECIMENTO DO POETA CATARINENSE CRUZ E SOUSA.
Publicação
Publicação no DSF de 20/03/1998 - Página 4591
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, MORTE, CRUZ E SOUSA, POETA, ESTADO DE SANTA CATARINA (SC).

A SRª BENEDITA DA SILVA (Bloco/PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, depois de ouvir os Senadores Esperidião Amin, Artur da Távola, Ronaldo Cunha Lima, Francelino Pereira, José Fogaça, Casildo Maldaner e Abdias Nascimento, não há muito a acrescentar. Contudo, quero parabenizar a iniciativa dos autores do requerimento, Senadores Esperidião Amin, Artur da Távola e Abdias Nascimento.

Cruz e Sousa, aqui tão bem homenageado na data em que se comemora o centenário de seu falecimento, deixa para nós uma obra que enseja profunda reflexão. Ele enfrentou dificuldades e conseguiu, como poucos, vencê-las. Era um homem das letras: falava, grego, latim, francês e inglês. Poeta, negro e inteligente era desacatado e invejado pela sua inteligência. Chegaram a dizer que era um “negro de alma branca”, pois possuir alma branca significava ser inteligente. Um erro drástico. Diziam que ele possuía a alma branca porque reconheciam nele o seu valor como um grande poeta negro, inteligente, sábio. Era o poeta da alma e falou profundamente aos nossos corações. Os que tiveram a oportunidade de ler sua obra, ao fazê-lo, viajaram em suas utopias

           Tivemos, neste plenário, momentos impressionantes que demonstraram o conhecimento desse poeta. Ele penetrou no espírito dos leitores que tiveram a oportunidade de conhecer suas poesias. Cruz e Sousa foi o poeta dos negros, da alma, dos pobres, dos marginalizados, das mulheres, dos sonhos!

           A atribuição desse prêmio conta com o nosso apoio para a sua divulgação em todas as universidades e escolas do nosso País. Já estou fazendo isso para resgatar a memória desse grande escritor, ao tempo em que agradeço a Deus por ter dado a esse homem o privilégio da inteligência e de ele ter tido forças suficientes para resistir às pressões sociais do seu tempo.

           Sabemos - esta Casa também uma vez que há muitos educadores aqui - que o saber não ocupa lugar. Qualquer que seja a nossa condição, se detemos algum tipo de conhecimento, se somos bem informados, certamente conseguiremos vencer as dificuldades de nossas vidas. E foi assim para esse grande poeta.

           Todos os meus Pares já falaram muito a respeito desse homem. Então, gostaria de encurtar o meu pronunciamento. E, à semelhança do que falou o Senador Casildo Maldaner, questiono: depois de tantas palavras, de tantos discursos, o que tenho a fazer senão dar o meu pronunciamento como lido?

           Antes, porém, faço uma consideração. As homenagens prestadas aqui a esse ilustre brasileiro foram sinceras, profundas, conhecedores que somos, alguns de nós - não me incluo entre eles - da obra de Cruz e Sousa. Entretanto, tive oportunidade de viajar na sua utopia e pude verificar que ele não era apenas o poeta da alma, do negro, da mulher. Ele preocupava-se - e fiquei torcendo para que ninguém mencionasse isso porque era o que me restava, diante de tantos discursos aqui proferidos -, com as crianças negras. É sobre essas crianças que quero falar, usando suas palavras e seus pensamentos sobre elas.

           CRIANÇAS NEGRAS

           Em cada verso um coração pulsando,

           Sóis flamejando em cada verso, e a rima

           Cheia de pássaros azuis cantando,

           Desenrolada como um céu por cima.

           Trompas sonoras de tritões marinhos

           Das ondas glaucas na amplidão sopradas

           E a rumorosa música dos ninhos

           Nos damascos reais das alvoradas.

           Fulvos leões do altivo pensamento

           Galgando da era a soberana rocha,

           No espaço o outro leão do sol sangrento

           Que como um cardo em fogo desabrocha.

           A canção de cristal dos grandes rios

           Sonorizando os florestais profundos,

           A terra com seus cânticos sombrios,

           O firmamento gerador de mundos.

           Tudo, como panóplia sempre cheia

           Das espadas dos aços rutilantes,

           Eu quisera trazer preso à cadeia

           De serenas estrofes triunfantes.

Preso à cadeia das estrofes que amam,

Que choram lágrimas de amor por tudo,

Que, como estrelas, vagas se derramam

num sentimento doloroso e mudo.

Preso à cadeia das estrofes quentes

Como uma forja em labareda acesa,

Para cantar as épicas, frementes

Tragédias colossais da Natureza.

Para cantar a angústia das crianças!

Não das crianças de cor de oiro e rosa,

Mas dessas que o vergel das esperanças

Viram secar, na idade luminosa.

Das crianças que vêm da negra noite,

Dum leite de venenos e de treva,

Dentre os dantescos círculos do açoite,

Filhas malditas da desgraça de Eva.

E que ouvem pelos séculos afora

O carrilhão da morte que regela,

A ironia das aves rindo à aurora

E a boca aberta em uivos da procela.

Das crianças vergônteas dos escravos,

Desamparadas, sobre o caos, à toa

E a cujo pranto, de mil peitos bravos,

A harpa das emoções palpita e soa.

Ó bronze feito carne e nervos, dentro

Do peito, como em jaulas soberanas,

Ó coração! és o supremo centro

Das avalanches das paixões humanas.

Como um clarim a gargalhada vibras,

Vibras também eternamente o pranto

E dentre o riso e o pranto te equilibras

De forma tal que a tudo dás encanto.

És tu que à piedade vens descendo.

Como quem desce do alto das estrelas

E a púrpura do amor vais estendendo

Sobre as crianças, para protegê-las.

És tu que cresces como o oceano, e cresces

Até encher a curva dos espaços

E que lá, coração, lá resplandeces

E todo te abres em maternos braços.

Te abres em largos braços protetores,

Em braços de carinho que as amparam,

A elas, crianças, tenebrosas flores,

Tórridas urzes que petrificaram.

As pequeninas, tristes criaturas

Ei-las, caminham por desertos vagos,

Sob o aguilhão de todas as torturas,

Na sede atroz de todos os afagos.

Vai, coração! na imensa cordilheira

Da Dor, florindo como um loiro fruto,

Partindo toda a horrível gargalheira

Da chorosa falange cor do luto.

As crianças negras, vermes da matéria,

Colhidas do suplício à estranha rede,

Arranca-as do presídio da miséria

E com teu sangue mata-lhes a sede!

Cruz e Sousa, com a força e a garra expressas em seus poemas, viu nascerem e morrerem muitas crianças.

O grande poeta deixou para nós uma herança: sua obra e suas herdeiras: Ercy Cruz e Sousa; Dina Tereza, sua filha; e Emilene, sua neta. A elas também prestamos nossas homenagens. Ajudar essas mulheres é garantir a presença física entre nós desse grande, desse poeta, desse cisne, desse pássaro, dessa criança, desse jovem, desse homem, dessa mulher, desse cidadão, Cruz e Sousa.

Obrigada. (Palmas)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/03/1998 - Página 4591